Gilberto Gil ao vivo: fica tudo em família
Apenas há um mês, o Coliseu dos Recreios recebia um veterano da música brasileira. Caetano Veloso escolheu apresentar-se sozinho para uma retrospectiva da sua carreira, envergando apenas sua voz e seu violão. Ontem, foi Gilberto Gil que passou pelo mesmo palco no decurso de uma tour europeia, fazendo-se acompanhar de uma banda de família e amigos para uma celebração da sua carreira e mais umas surpresas. O espectáculo repleto de calor humano reflectiu-se bem na plateia quase esgotada, animada pelo regresso do génio Gilberto, assim como de uma experiência quase normal de assistir a um concerto, devido ao afrouxamento das medidas de segurança relativas à pandemia.
O concerto dividiu-se notavelmente em duas partes. A primeira, mais tranquila, seguiu as ramificações do samba pelas suas variantes do rock, blues e, particularmente, jazz. Gilberto, sentado com a sua guitarra, comandou a banda pelo trio inicial de “Expresso 2222”, “Viramundo” e “Chiclete com Banana”, que nos levou à tropicália baiana dos anos 60 e 70 e àquele ambiente fulgurante eternamente cristalizado no repertório de discos como Louvação ou Expresso 2222.
Como é apanágio em concertos dos clássicos artistas brasileiros, fizeram-se ouvir umas quantas versões de outros artistas, algo representativo da cultura de partilha que caracterizava (e felizmente continua a caracterizar) a MPB. Com “Upa, Neguinho” e “É Luxo Só” celebrámos o Brasil, enquanto que a internacionalização se fez com a ajuda de uma das netas Gil. Flor Gil, de apenas 13 anos, atirou-se a “Volare” (clássico italiano que se tornou conhecido pelas mãos dos Gipsy Kings) e a “I Say a Little Prayer” na companhia do avô.
O momento terno abriu as portas para a subida de Adriana Calcanhotto ao palco. Notavelmente, os dois apresentaram a canção composta em conjunto, um samba-homenagem, de nome “Elogil”, que personaliza a experiência de admiração por Gilberto Gil.
Quando se dirigia ao público, o artista fazia-o de forma serena e lenta. As respostas às suas histórias e pequenas intervenções faziam-se ouvir com a ânsia de comunicar com o respeitado artista, fosse através de uma risada cúmplice e generalizada ou pelo costumeiro grito de “Fora Bolsonaro!”. Gilberto reagia de forma comedida mas reconfortante, exsudando uma certa sabedoria intemporal, mas também algum cansaço que por momentos nos entristece. No entanto, depois da emotiva canção de separação, “Drão”, o ânimo muda. Gilberto levanta-se para não mais se sentar e tem início a galopante segunda parte, num crescendo até ao êxtase.
O lado mais intervencionista de Gilberto Gil vem à superfície quando recorda o exílio em Londres que inspirou “Back in Bahia”, mas, principalmente, em duas canções que exaltam a negritude. “Touche Pas à Mon Pote”, canção composta para um concerto organizado em 1985 pela associação francesa SOS Racisme, adiciona a língua francesa ao acervo linguístico do concerto. Por outro lado, a viciante “Sarará Miolo” faz o elogio ao cabelo crespo e recorda-nos Realce, o entusiasmante álbum lançado em 1979.
Pelo meio das dançáveis canções “Palco” ou “Andar Com Fé”, Gilberto ia apresentando Bem Gil, João Gil (que nos presenteou com um fabuloso solo de guitarra na electrizante “Back in Bahia”) e os restantes elementos da banda com um orgulho que era como estar num almoço da família Gil. Por vezes, a experiência fazia lembrar uma espécie de passar de testemunho. A gigante herança cultural do patriarca, quando dividida pelos diferentes elementos, será certamente mais fácil de carregar. Alenta-nos pensar que inclusivamente se poderá multiplicar.
Tornava-se cada vez mais difícil ficar sentado, por isso alguns elementos do público não o fizeram. A concentração nos lados do palco engrossou-se até “Aquele Abraço”, o samba dedicado a Dorival Caymmi, João Gilberto e Caetano Veloso, que é uma das canções determinantes da carreira do artista. Nessa canção, abraçámos o mundo, desde o Rio até Luanda, e gritámos em nome da alegria, terminando o concerto com uma ovação em pé.
Mas, como não poderia deixar de ser, o clamor por um encore não se fez esperar, assim como o regresso da banda ao palco. Já em pé, o público serpenteou-se ao som da versão da doce “Fico Assim Sem Você”, um clássico mais recente, mas não menos reconhecido, de Adriana Calcanhotto. No entanto, o final foi todo Gil. Que melhor maneira de fechar um concerto assim que com um bloco de Carnaval? Por isso, escutamos a campestre “Madalena” e dançamos efusivamente ao som de uma das suas canções mais amadas, “Toda Menina Baiana”, o claro clímax do concerto. Depois de todos os “oh-oh-oh-oh” e “ah-ah-ah-ah”, a sensação que fica é de pura efusão. Longa vida a Gilberto Gil!