Godspeed You! Black Emperor no Lisboa ao Vivo: monumentos em volume e beleza
No passado sábado à noite, o Lisboa ao Vivo foi o palco privilegiado que recebeu uma das mais famosas e importantes bandas do post-rock, e que ao longo dos últimos (quase) trinta anos tem vindo a construir uma carreira sólida e inspirada dentro do género. Casa praticamente cheia, mas ainda assim um ambiente tranquilo, sem atropelos nem complicações – fruto de um público sóbrio e respeitador, com quem tive muito gosto de partilhar a assistência. Um primeiro disclaimer: o post-rock não é a minha praia, contam-se pelos dedos de uma mão os concertos que já ouvi dentro do género (sem ser em festivais), e ainda nunca ouvi nenhum trabalho de estúdio dos Godspeed You! Black Emperor (GY!BE). Foi uma aventura, e considerem esta reportagem isso mesmo – um primeiro mergulho, meio às cegas, no universo criativo de uma banda com uma reputação enorme.
Os GY!BE são conhecidos por darem concertos com o volume desreguladamente elevado. Trata-se, aliás, de um critério que poucas bandas de post-rock estão dispostas a abdicar, principalmente quando a sua vocação está tão ligada aos crescendos épicos e à acumulação de instrumentos na construção de uma imensa torre de som. Logo ao primeiro de todos esses crescendos, na introdução lenta e progressiva com que decidem abrir o concerto, muitos arrepios me correm o corpo. Estão abertas as portas para uma noite de muita dinâmica sónica – a passear-se entre o pianíssimo e o fortíssimo – e a pescar coisas muitos bonitas pelo meio.
Embora alguns dos membros do colectivo vão saltando de lugar de vez em quando, ou alternem entre um e outro instrumentos, uma mera listagem da base instrumental deste concerto é por si muito promissora – deixa água na boca, porque é o mais próximo que o rock se pode aproximar de uma orquestra sem perder a sua identidade. Três guitarras eléctricas, um baixo e um contra-baixo em simultâneo, duas baterias (quatro mãos e quatro pés em simultâneo na percussão), e um violino a imprimir aquela emoção que só ele é capaz de convocar.
Desta sopa de possibilidades erguem-se, no concerto, sete concretizações. São sete temas apenas, desenvolvidos ao longo de praticamente duas horas de espectáculo. Ideias que se apresentam sem pressa, e com muito bom gosto. Frequentemente, as músicas constroem-se a partir de uma base repetitiva mas nada óbvia – uma cadência melódica intrincada, apontamentos criativos que complementam as linhas anteriormente apresentadas, um exercício de somas sucessivas que originam monstros fantásticos.
Esta é a fórmula do concerto. Resulta bem sem resultar perfeita. Na potência mais elevada, com o volume a subir aos 107 decibéis de acordo com o medidor da sala, a mescla é demasiado intensa para se poderem continuar a sentir os pormenores de que é feita – e ficamos com a impressão de que as composições concentram mais beleza nos minutos que antecedem o clímax do que no clímax propriamente dito. Nesses momentos de maior euforia, o som é como que esmagado e, embora nos sintamos de imediato convidados a balançar o corpo e a cabeça ao ritmo da música, perde-se o fio à meada. É uma impressão muito particular, que não devem ler como julgamento. Os momentos de catarse sónica, são, como é óbvio, muito intensos e especiais – só não me conquistaram tanto como a fase que os antecedia.
O espectáculo dos GY!BE é também marcado por uma componente visual muito sui generis. São projectadas imagens citadinas na tela de fundo; grandes planos de prédios, pontes, estradas, ruas, edifícios abandonados – e, ocasionalmente, a relação da natureza com estes espaços humanizados. Mas a banda opta por uma abordagem que elimina qualquer jogo de luzes – não há projectores em movimento, não há mudanças na cor do palco, não há qualquer espectáculo visual a não ser os filmes projectados a sépia. Uma vez vi um concerto de Four Tet absolutamente colorido em termos sónicos, em que o músico esteve às escuras no palco durante todo o espectáculo, sem qualquer luz ligada; se nessa circunstância senti que isso era um convite a fecharmos os olhos e a nos focarmos unicamente no som, no caso dos GY!BE já não tive a mesma certeza. Esta indecisão entre deixar embrulhar-me no caos do som ou em tentar, visualmente, perceber o que é que cada músico estava a contribuir para o todo (observação algo infrutífera, porque no cume da música não distinguíamos a repercussão sónica dos movimentos acelerados das mãos), deixou-me num estado de alguma inquietude. A experiência há-de ser diferente para cada um.
Não quero, contudo, que estas minhas reticências contagiem a impressão global do concerto – que é a de admiração por estas obras singulares. Embora o concerto tenha dado mais foco ao seu mais recente trabalho, Luciferian Towers, foram outras as faixas a roubarem-lhe o foco: para além da introdução, “Hope Drone”, destacou-se especialmente a penúltima faixa, “Moya”, do EP Slow Riot for New Zero Kanada (1999), que a banda tocou na íntegra em Lisboa. A bonita e assombrosa melodia vai-se desdobrando e crescendo de uma forma inspiradora, e reclama um lugar na alma do ouvinte. Foi um dos momentos mais belos e arrepiantes de toda a noite, como também se sentiu pelo calor do público.
Uma última nota sobre a presença fervorosa de quem veio assistir: era palpável a devoção dos seguidores da banda. Ouvimos um grito de libertação segundos antes do momento-chave da última canção do concerto, cinco metros à nossa direita – e estava dado o testemunho do que a música pode fazer por nós. Pode parecer um pormenor, mas a partilha, posta em comum com o restante público, é das coisas mais importantes e marcantes na música ao vivo.
Fotoreportagem de Sofia Matos Silva do concerto da banda no Porto.