Haruki Murakami recebe o Prémio Hans Christian Andersen e discursa sobre sombras
O escritor japonês Haruki Murakami foi anunciado como o vencedor do prémio Hans Christian Andersen há um ano mas foi somente galardoado no passado fim-de-semana em solo dinamarquês. O prémio foi, para além de simbólico, monetário, encaixando o autor à volta de 67 mil euros. Esta honra destina-se a reconhecer autores que partilhem semelhanças temáticas com Andersen ou com qualidades artísticas narrativas acima da média. Sendo conquistado previamente por autores como J.K. Rowling ou Salman Rushdie, o asiático, de 67 anos, foi reconhecido pela sua capacidade de mesclar a narrativa clássica com a cultura pop, mais a tradição milenar japonesa, um realismo que atravessa a dimensão dos sonhos e pela discussão filosófica emergente. Para além destes predicados, também a alusão a elementos mágicos e oníricos e as descrições cénicas foram premissas que contribuíram para a nomeação.
Na cerimónia de entrega, o autor de obras como “Kafka à Beira-Mar” esteve na casa do malogrado autor dinamarquês e discursou, deixando um apelo à sociedade como um todo. Citando o autor, “há tempos em que parecemos ter aversão à nossa sombra, a essas partes negativas, ou em que a tentamos eliminar. Isto porque as pessoas querem evitar o máximo possível olhar para o seu lado negro e para as suas fragilidades. No entanto, e para um estátua se erigir sólida e tridimensionalmente, deve ter sombras. Se estas desaparecerem, o que resta é uma ilusão plana. A luz que não cria sombras não é uma luz verdadeira. Devemos aprender a viver em conjunto com a sombra que possuímos e forma paciente. Para além disto, devemos observar e acompanhar o negrume que reside em nós.”
Este discurso de aceitação do galardão (nomeado “The Meaning of Shadows“) baseou-se no conto de Hans Christian Andersen de título “A Sombra“. Este relata um homem que a expele mas que regressa em forma humana e que o mata. Esta história é, na opinião do escritor nipónico, “negra e despojada de esperança” e que reforça a convicção deste de “eventualmente enfrentarmos o nosso lado obscuro.” Para melhor fundamentar esta visão, o japonês afirma que “se não o enfrentarmos, a nossa sombra tornar-se-á cada vez mais forte e regressará para bater à porta das nossas casas.”
Sobre este tema, o autor não se estendeu muito nas suas declarações, embora a imprensa japonesa seja unânime em relação ao objetivo destas. Desta forma, referia-se ao sentimento que emana na Europa e que se pinta com tons de antipatia perante cenários de imigração dos refugiados provenientes do Médio Oriente. Todavia, em 2009, quando recebeu o prémio Jerusalém pela Liberdade do Indivíduo na Sociedade, criou a seguinte analogia, embora referente aos conflitos com os pró-palestinos: “Se existir um muro alto e resistente e um ovo que é arremessado a este, embora pese a razão do muro e o erro do ovo, estarei sempre do lado do ovo.. Porquê? Porque cada um de nós é um ovo, uma alma única que se concentra num frágil ovo. Cada um de nós confronta um muro elevado. Este é o sistema que nos força a fazer coisas que não nos agradam como seres diferentes e individuais. Não há esperança perante tamanho obstáculo: é demasiado alto, escuro e frio. Para o enfrentarmos, devemos aliar as nossas almas e procurar conforto e força. Não devemos permitir que o sistema crie controle aquilo que somos. Afinal de contas, fomos nós que criamos o sistema.”
Foi de forma natural que Haruki Murakami se viu galardoado com mais um prémio, corroborando os predicados que a sua literatura assume nas intervenções que protagoniza. Com um elevado cunho social e realista, nem por sombras descarta a magia que habita uma realidade marcada pelo valor da individualidade.