“If I Was A Folkstar”: mapa de audição de uma música preferida
No coração de Wildflower, o álbum editado em 2016, que interrompeu os quinze anos de silêncio dos The Avalanches, mora um tema que se infiltrou em mim de uma maneira única. “If I Was a Folkstar” não destoa do exercício criativo que pauta toda a carreira da banda: um inspirado aglomerado de recortes e colagens sónicas, um baú de samples reciclados, com um groove colorido e motivador. Mas não há nenhuma outra faixa na sua breve discografia que brilhe tanto aos meus ouvidos como este exercício de quatro minutos e meio.
As primeiras dez vezes que ouvi esta música, sempre no contexto da audição completa do álbum, ela servia de remate à minha secção preferida do disco – uma fronteira que dividia o meu deleite pela “Because I’m Me” e “Subways”, do resto de Wildflower (que não me atingia como aquela sequência inicial de quatro ou cinco faixas). “If I Was a Folkstar” tinha um sabor agridoce: era super agradável, punha-me a dançar, propunha-me alguma coisa que não conseguia agarrar, mas assinalava o fim da minha parte preferida do disco. A partir dali era a descer. Entretanto passei a gostar de Wildflower como um todo, mas isso é outra história.
Uns meses depois aconteceu que esta música se abriu para mim. Tem sabor a glória, o momento em que uma canção de repente se conecta connosco a um nível diferente, e vemos a uma nova luz a força que ela gera em nós. Escutava deslumbrado os pozinhos brilhantes, as rasteiras da construção harmónica, o êxtase vocal do segmento final. E, acabada, punha-a a tocar do princípio novamente. Lembro-me de estar Sol, ser quase hora de almoço, eu de chinelos, estar a voltar da praia a pensar que tinha descoberto qualquer coisa importante.
Seguiu-se uma terceira etapa: ao longo dos últimos anos, e revisitando tantas vezes a “If I Was a Folkstar”, apercebi-me que embora adorasse aquele tema ainda não tinha uma compreensão global da sua estrutura interna. Percebi isto quando, sentado ao piano a descobrir de ouvido os acordes que moravam na minha imaginação, não conseguia cantar a música. Em que momento entravam as palavras? A melodia estava sempre a par da mesma sequência harmónica, ou ia brincando e não encaixava de maneira tão convencional?
Com o propósito de a compreender melhor, fui ler sobre ela. Pelo caminho descobri algumas das músicas originais que haviam sido recortadas e sampladas. Comecei a compartimentar os meus pormenores preferidos da música, a perceber a força gravitacional do baixo, a reviravolta das notas de piano no virar de cada compasso e… bem. Cheguei a uma conclusão divertida: continuava a trocar-me todo na estrutura interna, quando a cantava ou reproduzia. Não sabia quantos tempos aconteciam antes de cada segmento entrar. Não tendo tentado até à exaustão, desisti. Percebi que gostava muito da música e apesar disso não a conseguia apreender.
Neste texto, vou atrever-me a construir um mapa em que localizo cada momento essencial à minha fruição da “If I Was a Folkstar”. É um passeio pela magia e pela impressão – mais do que pela técnica e pela teoria musical, que aliás pouco domino. É um testemunho sincero de quem quer pôr por palavras coisas difíceis de explicar.
A partida ocorre ao segundo 14, quando o baixo se apresenta. É a linha condutora que serve de carril a toda a música. Mas tem tanta força que, com facilidade, poderíamos deter nela toda a nossa atenção. Ao segundo 50, tem-se um vislumbre de uma quebra do padrão, mas é interrompida abruptamente por uma transmissão radiofónica. Felizmente, no minuto 1:36 temos a oportunidade de a ouvir completa. Repare-se como é o baixo a criar, quase completamente sozinho, uma nova plataforma harmónica na música. E vai continuar a ser responsável por esse desenho de fundo até ao fim.
Lembro-me que o primeiro elemento isolado que me chamou a atenção na “If I Was a Folkstar” foi o pianinho que faz uma espécie de pirueta brilhante a cada oito segundos (ouvimo-lo pela primeira vez no minuto 0:18, depois no 0:26, e por aí fora) – três notas rápidas, no virar do compasso. São balizados imediatamente antes de ocorrerem e, após, por uns sininhos brilhantes, o que talvez ajude ao sentimento mágico que me transmitem. Mas as três notas de piano propriamente ditas propõe-me uma reviravolta, uma rasteira. É um plot twist sónico. Eu sei que essa breve sequência vai lá estar no virar de cada compasso, mas, ainda assim, funciona como surpresa, como um bom filme que, cada vez que nos lembramos dele ou o vemos, volta a ser mindblowing. A música a pregar-me uma rasteira, a mudar de caminho, uma alteração à rota a cada oito segundos. Tenho quase essa imagem literal, de troca de passo.
Rocei ainda há pouco o segmento que se inicia aos 50 segundos. O sample coral dos The Beach Boys confere mais uma camada de força emocional à música. É uma modulação bonita, sequência de quatro notas a deslizarem suavemente. Mas o segredo está na interacção com o resto, no jogo com o baixo e as teclas de diferentes timbres. O som torna-se mais cheio. Quase metade da canção funciona como uma longa introdução, um percurso instrumental estruturado, adornado de efeitos, num carrossel em torno de uma ambiência optimista.
Até ao minuto 2:01, em que Chaz Bundick (Toro y Moi), o vocalista e letrista convidado exclusivamente para esta faixa, entra com o timbre descontraído que lhe é tão característico. Num primeiro momento, a forma como a sua voz se afirma na música é quase casual, como se a parte cantada fosse mais um acessório do que continua a acontecer instrumentalmente. Mas é impressionante a maneira sorrateira com que a melodia vocal se vai impondo ao longo dos trinta segundos seguintes.
Aos 2:31, numa sincronia com a mudança da linha de baixo, a música abre-se definitivamente. “Let’s wake up side by side“. Os Beach Boys de fundo no coro, repescados de gravações dos anos 60. O piano brilhante a continuar a fazer a sua magia cíclica. Num refrão lindo, festivo, que é fonte de tantas coisas boas para mim. Mas não é que o melhor momento ainda está por vir? Acontece em dois passos: primeiro no fugir de tapete debaixo dos pés, ao minuto 3:36, num acorde que ocorre uma única vez em todo o tema; e depois no acorde que se lhe segue, aos 3:41. Este segundo já nos aparecera antes noutras passagens da música, mas depois de se levantar vôo aos 3:36, é impossível que ao pousar o pé nos 3:41 soe à mesma coisa. Não soa. Soa a resolução perfeita. Conheço poucas mudanças de acordes tão impactantes na minha vida como a do minuto 3:36 da “If I Was a Folkstar”.
Queria ainda deixar um ou outro apontamento sobre a letra, que, obviamente, também não me é indiferente. No refrão, após ouvirmos “Let’s wake up side by side / let’s sleep in ‘til we die”, somos transportados para uma das minhas proposições preferidas: “Don’t make me close my eyes / I won’t believe“. E isto merece um disclaimer, porque não é certo que seja esse o exacto conteúdo da letra. Na verdade, não existindo nenhuma impressão oficial do poema, o que a maior parte das pessoas escuta é “Why won’t they leave?”, ao invés de “I won’t believe”. Mas esta é daquelas teimosias que quero resolver deliberadamente à minha maneira. Contextualmente, “I won’t believe” é uma das pedras angulares do sentido desta música para mim. A ideia de ser tudo tão perfeito para o narrador, de a felicidade daquela companhia ser tão plena, que, se alguém lhe tapar os olhos, ele nem vai acreditar que está mesmo a acontecer. Está tão espantado com a felicidade que sente que nem acredita nisso se não vir. Essa ideia de incredibilidade diante da felicidade mexe muito comigo. E, quer queiramos quer não, a fruição das músicas também é tantas vezes impactada pelos sentidos pessoais que lhes projectamos.
“If I Was a Folkstar” é um monumento. A minha música preferida da última década. A magia, a cor e o brilho de que está repleta tecem uma manta de beleza singular. Muito daquilo que quero ser está aqui proposto: livre, criativo, deslumbrado, num carrossel de brilho, contradição, plot twists, na companhia de quem me faça tão feliz que eu nem sequer acredite. E não há mapas nem guias de audição que consigam explicar isso. Mas felizmente podemos sempre ouvi-la mais uma vez.