João Villaret, a totalidade funcional da representação nacional
João Villaret tornou-se um dos principais responsáveis pela profissionalização do teatro no século XX. Proeminente figura das artes performativas portuguesas, foi ator, encenador e produtor nos palcos, e apresentador e declamador de poesia no pequeno ecrã. Também no cinema causou sensação, sendo um dos pioneiros na participação cinematográfica, figurando em filmes do imaginário coletivo nacional. No entanto, os seus préstimos sentiram-se substancialmente na representação cénica, sendo crucial naquilo que se tornou hoje o teatro em Portugal, estando omnipresente no engenho de se criar e de se ser arte.
João Henrique Pereira Villaret nasceu no dia 10 de maio de 1913, na cidade de Lisboa. No seio de uma família bastante tradicional, a sua vontade artística não foi acolhida de forma unânime por parte dos seus pais, assim como a do seu irmão Carlos, que seria pianista, e que o acompanharia nos recitais de poesia. Não obstante apreciarem os devaneios performativos do seu filho, não os encarava com a seriedade e a obstinação do pequeno João. Um eventual “não” numa representação teatral em tempo escolar reforçou-lhe a motivação de se tornar ator, transportando para onde fosse o desejo de vingar nos palcos. Foi no Liceu Passos Manuel que encontrou uma docente que lhe favoreceu esse intento de se tornar um artista a sério, e que reconheceu o prodígio daquele rapaz que tão bem recitava “Os Lusíadas”. Pelo seu sucesso na leitura e interpretação da poesia, era frequentemente levado à sala das turmas dos anos acima do seu para a declamar e a explicar aos alunos. Esta paixão pelas estrofes e pelo lirismo levá-lo-ia a nunca abandonar a poesia da sua extensão de expressão oral e emocional.
Antes de fazer 15 anos, em 1928, decidiu concorrer ao curso de representação dramática, ao abrigo do Conservatório Nacional de Lisboa. Proclamando dois vilancetes e um soneto de Luís Vaz de Camões, não se livrou de uma reprimenda por parte do júri, que considerava a sua leitura prosaica. No entanto, e questionando o cariz dos mesmos, acabou por ingressar pelo seu caráter extremamente arguto e perspicaz. Bastariam três anos para se estrear profissionalmente num palco a sério. A 16 de outubro de 1931, ascendeu ao Teatro Nacional D. Maria II, na peça “Leonor Teles”, de Marcelino Mesquita. Interpretando o papel do cronista Fernão Lopes, integrou a companhia de teatro Amélia Rey Colaço/Robles Monteiro, que o levou a atuar em adaptações de Gil Vicente, Almeida Garrett, Shakespeare, Molière, entre muitos outros.
Na revista, começou em fins dos anos 30 e inícios dos 40, desvalorizando quem a conotava de “arte menor”, e pasmando os que diferenciavam o teatro da revista, desprezando esta última e censurando a mistura encetada pelo artista. Neste período bastante produtivo, envolveu-se também na criação individual e/ou coletiva de peças no Teatro Nacional, levando ao palco “A Nossa Revista”, com Maria Clementina; e “Diz-se por Música”, em conjunto com Lucien Donnat. Em “Belezas de Hortaliça” (1942), entoou o tema “C’est Mon Homme”, numa crítica subtil a António Oliveira Salazar.
Em 1947, conheceu “Fado Falado”, um recitativo sobre o fado, numa peça sobre a história da música e do teatro em Portugal, essencialmente nas suas origens populares. Representada em “’Tá Bem ou Não Tá’?”, o trio de escritores constituído por Aníbal Nazaré, Nélson de Barros, e António Ascensão Barbosa viu a sua obra ter um eco pronunciado e evidenciado na representação cantada de Villaret, levando o trabalho a um estatuto de estrelato. Na sua sucessão, surgiram declamações no âmago de revistas, como “Lisboa Nova” (1952), “Melodias de Lisboa” (1955), e “Não Faças Ondas” (1956). Outro dos sucessos que levou Villaret a assumir uma ressonância crescente foi “Esta Noite Choveu Prata”, de Pedro Bloch, e que foi apresentada no Teatro Avenida. Neste projeto, assumiu três papéis: um de um comerciante português, outro de um músico italiano, e ainda outro de um ator brasileiro. A sua versatilidade tornou-se num muito satisfatório cartão de visita para todos aqueles que apreciavam a arte da representação dramática. O seu prazer pela revista e por estimular o mais profundo dos ânimos do seu espectador levou-o a integrar os Comediantes de Lisboa, grupo que, criado pelos irmãos António Lopes Ribeiro e pelo seu irmão “Ribeirinho”, elaborava trabalhos dramáticos em palco e na rádio; sendo que a última peça do género que representaria seria em 1959, de título “Champanhe Saloio”.
Quanto ao cinema, figurou em diversos projetos conceituados e incipientes no panorama luso, tais como “Bocage” (1936, de José Leitão de Barros), “O Violino do João” (1944, de José Braz Alves), “Inês de Castro (1945), e “Camões (1946, estes de José Leitão de Barros). Para além destes, participou também em “O Pai Tirano” (1941, como figurante, e sobre a orientação de António Lopes Ribeiro), “Três Espelhos” (1947, uma coprodução luso-espanhola), “Frei Luís de Sousa” (1950, no famoso papel do aio Telmo Pais), “A Graça e a Serpente” (1952, de Arthur Duarte), e o Primo Basílio (1959, de António Lopes Ribeiro). No cinema, contracenou com contemporâneos e futuros nomes grandes da representação portuguesa, tais como Vasco Santana, Eunice Muñoz, António Vilar, Leonor Maia, entre outros. Quanto à sua sensibilidade para a recitação, pôde-a explorar no documentário “Mar Português” (1950), onde declamou poesia de Fernando Pessoa, Luís de Camões, Guerra Junqueiro e António Nobre. No pequeno ecrã, também entoou composições líricas de José Régio (“Cântico Negro), Augusto Gil, António Lopes Ribeiro (“A Procissão”) ou António Botto, para além de ter recitado poesia canarinha, destacando-se a de Carlos Drummond de Andrade.
Os predicados que foi revelando ao público viveram sempre no âmago da sua génese, aliando uma sensibilidade apurada a uma elevada intensidade comunicativa. Tanto ao vivo – como numa célebre sessão no Teatro São Luiz, que seria compilada num álbum – como no televisor e na rádio, era a mesma a devoção com a qual se dedicava e se entregava à mensagem e à substância do que lia. Como meta das suas recitações, procurava reproduzir as sensações que ebuliam nas estrofes escritas por poucos, mas sentidas por tantos. Funcionava, assim, como um intermediário fulcral e empático, que, precursor de Mário Viegas, ajudava à libertação presencial e funcional do valor intrínseco da própria poesia. Estas caraterísticas tornaram-se motivos de apreço por parte de autores de renome, tais como Miguel Torga. Um dos poemas marcantes que viria a pronunciar seria “Tabacaria”, do heterónimo pessoano Álvaro de Campos; assim como a cantiga “Santo António”, composta liricamente por Fernando Santos, e musicalmente por João Nobre. Tornar-se-iam célebres as declamações dominicais, onde a graça e a virtude de Villaret se eternizariam na história dos conteúdos audiovisuais em Portugal. Grande parte destas recitações seriam materializadas em discos editados e lançados de forma póstuma.
O estado de graça do ator era quase imensurável, mas foi no seu apogeu que foi traído pela sua saúde. Padecendo de diabetes, acabaria por falecer no dia 21 de janeiro de 1961, aos 48 anos. Na véspera da sua morte, havia decorado e recitado um poema de Pessoa, autor que foi promovendo e ajudando a que se tornasse imprescindível do memorial luso. De forma a homenagear o nome e a figura de Villaret, sucedeu-se um recital de poesia em pleno Cinema São Jorge, assim como a atribuição, por parte de Raul Solnado, do nome do declamador ao teatro que abriu, no ano de 1965. Para celebrar os seus 30 anos de carreira, a RTP vinha preparando um programa onde constavam alguns dos seus colaboradores, muitos deles sem nunca terem participando em iniciativas televisivas. Por Villaret, dispunham-se Amélia Rey-Colaço, Mariana Rey Monteiro e Beatriz Costa, três das mais conceituadas atrizes de teatro, e que eram assessoradas pelo realizador Leitão de Barros, pelo jornalista Armando Vieira Pinto, e por outros nomes do seio cultural nacional.
João Villaret era conhecido, para além de um colossal talento e de uma imensa orla de influência, por ser alguém loquaz e capaz de cativar através do humor e da profundidade com que abordava diferentes assuntos. Irónico por natureza, era um traço do seu ser que cativava e que reclamava, de forma silenciosa, pela perpetuação da sua personalidade. Assim, era com naturalidade que preenchia os recantos mais vazios e inaudíveis dos palcos, dos ecrãs, e dos seus bastidores. No fundo, um virtuosismo inestimável, que se desdobrava nas lides da poesia, do teatro, e do cinema. No âmago de tudo isto, uma vontade intensa de representar e de dar vida, expressão e entoação ao mundo e àquilo que os grandes autores deste deixaram escrito e vivido. Villaret foi, na sua própria vida, um homem com muitas vidas. Como artista, como personalidade, em busca de um sentido de totalidade e de felicidade.