José Saramago: um memorial do filho pródigo de Azinhaga

por Lucas Brandão,    6 Agosto, 2018
José Saramago: um memorial do filho pródigo de Azinhaga
José Saramago / Fotografia de Juan Ramón Iborra/FJS

José Saramago. Autor, jornalista, Nobel, comendador, comunista, ateu. Uns são apreciadores, outros depreciadores. Entre os polos que o deambulam na perspetiva a diversidade de quem é outro, é um dos autores de referência, que se demarca declaradamente na literatura europeia. Da vila modesta da Azinhaga até à serena ilha de Lanzarote, o percurso foi marcado por uma série de ocupações, de dissensões, de construções narrativas e de reflexões filosóficas. Aos nossos dias, chega o repertório literário que se complementa na universalidade com que viu e interpretou o mundo, entre questões passadas e presentes que se reservam, decerto, para o futuro.

José de Sousa Saramago. É este o nome que perpetua Azinhaga e o seu concelho, Golegã, no mapa português. As origens são modestas, origens que remontam às tradições agrícolas familiares. 16 de novembro de 1922 vê, então, o seu filho pródigo nascer, vendo-o partir dois anos depois para Lisboa, a capital do país. No entanto, por mais que o conhecimento concentrasse os seus desejos e as suas atenções, a sua família passava por privações económicas e o jovem Saramago, que desejava a universidade, viu-se formado numa escola técnica, trabalhando como serralheiro mecânico. No entanto, isso não inibiu a sua paixão livresca, com as noites a serem usufruídas na Biblioteca Municipal, no agora Palácio Galveias.

A tentação de iniciar a escrita conheceu a sua primeira publicação formal em 1947, com “Terra do Pecado”, uma obra que seria revalorizada nos anos 90. Este lançamento culminou com o nascimento da sua filha, Violante, fruto do casamento com a artista Ilda Reis. Este seria o primeiro matrimónio de dois, tendo, entre ambos, vivido com a autora Isabel da Nóbrega. De 1988 até à sua morte, viria a estar com Pilar del Rio, jornalista e tradutora espanhola, que conheceu dois anos antes, relação que é documentada em “José e Pilar” (2010), num documentário de Miguel Gonçalves Mendes; para além dos “Cadernos de Lanzarote” (1993-1998), com o seu quotidiano e suas reflexões e indagações sobre o mundo e demais obras literárias e filosóficas. O seu percurso profissional passou por ser funcionário público, embora o complementasse com algumas traduções que foi fazendo, de autores como Leon Tolstoi ou Charles Baudelaire.

Entretanto, escreveu “Claraboia”, embora só fosse lançado em 2011, após ser rejeitado na altura da sua redação, nos anos 50; com a história dos moradores de um prédio que tem uma claraboia, representativa da luz que se procura trazer para o comportamento humano e para as suas consequências sociais. Entretanto, alterou a direção da sua produção literária e escreveu em verso, chegando a “Os Poemas Possíveis” (1966), “Provavelmente Alegria” (1970) e “O Ano de 1993” (1975). Neste período, já se encontrava a colaborar com a Editorial Estudos Cor, da qual passou para o Diário de Notícias e para o Diário de Lisboa. Após a Revolução de 25 de abril, assumiu o cargo de diretor-adjunto do Diário de Notícias, sob a direção de Luís de Barros. O seu socialismo convicto entrou em conflito com os militares que tentavam interferir no dia-a-dia editorial, já após a nacionalização do jornal. Foram vários os textos que, como editorial, iam surgindo e que criticavam vários dos rostos políticos de então. Em nome das suas convicções, demitiu vários dos funcionários do periódico, embora acabasse, ele próprio, por sair, após o 25 de novembro de 1975 findar com as esperanças de uma revolução completa, por intermédio da esquerda radical.

Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há-de vir.

“Os Poemas Possíveis” (1973)

Este foi o catalisador necessário para se dedicar em exclusivo à literatura, iniciando esta espécie de regime com “Os Apontamentos”, crónica que sucedeu “Deste Mundo e do Outro” (1971), “A Bagagem do Viajante” (1973) e “As Opiniões que o DL Teve” (1974). Porém, são os romances que abarcam a abrangência literária de Saramago, arrancando em “Levantado do Chão” (1980), obra que introduz o seu estilo muito próprio, despojado de pontuação e ajustando o discurso escrito ao oral. Sendo um trabalho que se debruça sobre a pobreza da população do Alentejo, retrata a luta perante as forças opressoras existentes, entre os sacrifícios feitos na miséria rural em que se encontram. Este é antecedido por uma espécie de obra transitória, que regressa ao mundo ficcional, sendo este “Manual de Pintura e Caligrafia” (1977, uma espécie de tratado autobiográfico sobre a capacidade da pintura e da caligrafia traduzirem e imitarem o mundo).

Este lote seria seguido pela obra que tantos conhecem, tanto do tempo de escola, como das suas repercussões. Blimunda, símbolo da Lua, Baltasar, símbolo do Sol, cruzam-se no célebre “Memorial do Convento” (1982). Nos tempos da corte de D. João V, o magnânimo, ergue-se a promessa a ser cumprida de erigir um convento, a situar-se em Mafra. Para isso, contará com os préstimos de um povo que, ao olhar histórico, surge como a classe trabalhadora e operária, a anónima construtora da história, num cunho que não deixa de ser marxista. Entre esta realidade, a ficção quis fazer voar o Padre Bartolomeu de Gusmão, que sonhava num pássaro voador, mas que se remeteu ao degredo que a Igreja, castradora de sonhos e de projeções científicas, fazia o favor de anunciar. Aliás, fora a própria Igreja, na forma da Ordem dos Franciscanos, a destinada ao benefício dos seus aposentos e da opulência associada a esse convento; tornando-se numa das visadas da crítica de Saramago, num papel íntimo ao da opressão monárquica e da construção de conflitos, descaraterizada dos seus valores primários. Esta obra não deixa de procurar uma crítica que remonta às estruturas políticas e aos valores sociais do período em que foi escrita, naquilo que se concretizava por entre todas as potencialidades e possibilidades do pós-25 de abril.

Obras de vulto que se sucedem percorrem os anos 80 e iniciam-se com o lançamento de “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (1984), o único heterónimo de Fernando Pessoa que permanecia vivo na escala cronológica traçada pelo poeta. Cruzando com as aparições do próprio, Saramago fá-lo voltar a Lisboa, vindo do Rio de Janeiro, e encerra o seu circuito de vida, anunciando a sua morte numa narrativa que não se esquece de Lídia. De seguida, a deambulante “Jangada de Pedra” (1986), que, na separação da Península do continente europeu, reivindica o iberismo do autor, desejoso de uma identidade ibérica, de uma autonomia que se dissidisse da Europa e que a unisse à emergente América. “História do Cerco de Lisboa” (1989) mostra a força de um não em toda a narrativa histórica que se conta por escrito, no papel de um revisor que é tentado a colocar essa negação, naquilo que foi a ajuda dos cruzados perante a tomada de Lisboa pelos muçulmanos. As tentações também se estendem ao ateísmo crítico que começa por ser declarado em “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (1991), na emancipação da figura de Cristo, aqui meramente humano, perante o seu destino de sofrimento e de uma penosa morte, revoltando-se da profecia divina de filho de Deus. As questões tocam no lugar deste e em toda a prédica cristã, onde toda a mística associada à divina trindade se faz sentir.

Ora, a solidão, ainda vai ter de aprender muito para saber o que isso é, Sempre vivi só, Também eu, mas a solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no meio duma planície onde só ela esteja, é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz, Você está a tresvariar, tudo quanto menciona está ligado entre si, aí não há nenhuma solidão, Deixemos a árvore, olhe para dentro de si e veja a solidão, Como disse o outro, solitário andar por entre a gente, Pior do que isso, solitário estar onde nem nós próprios estamos.

“O Ano da Morte de Ricardo Reis” (1984)

O percurso não termina aqui, mas desloca-se dos contextos do espaço e do tempo totalmente definidos. Alcança, assim, a promessa universalista e existencialista em “Ensaio Sobre a Cegueira” (1995), narrando uma epidemia de cegueira que se espalha por uma cidade, colocando em alvoroço os seus habitantes, as respetivas estruturas sociais e políticas existentes e que faz a humanidade regressar ao mais primitivo de si. A brutalidade e o sofrimento que emanam no seu enredo ameniza em “Todos os Nomes” (1997), onde um escriturário de um cartório vai colecionando recortes de gente famosa, seguindo-se os detalhes daqueles que eram menos conhecidos, desses tantos. A quantificação da vida e do mundo torna-se numa problemática que, no hermetismo das informações que cruzam todas essas pessoas, anuncia a necessidade de refazer a vida. “A Caverna” (2001) inicia uma crítica acentuada sobre a massificação capitalista, que afeta uma família de oleiros perante a emergência de um centro comercial. A alegoria de Platão é pensada a partir desse centro, em que os indivíduos que aí trabalham se remetem às suas condições de sombras.

O traçado que faz seguidamente resulta em “O Homem Duplicado” (2002), em que o suspense suspende um professor de História que descobre ter um sósia seu como ator, sendo ele a sua duplicação. A cegueira regressa pouco depois com o “Ensaio Sobre a Lucidez” (2004), desta feita no seu contraponto. Ocorre uma votação numa cidade e mais de metade da sua população vota em branco, descredibilizando as figuras governamentais, que decidem abandonar a cidade à sua própria responsabilidade, emergindo as personagens do “Ensaio Sobre a Cegueira”. Neste trilho, chegam “As Intermitências da Morte” (2005), que acentuam o registo sarcástico e satírico de Saramago em relação à sociedade moderna e todas as suas partes integrantes, entre o clero, os políticos, os economistas, os filósofos, os serviços públicos e os privados e os órgãos de comunicação social. A morte assume o protagonismo e interage diretamente com todas estas partes, proclamando a sua presença/ausência e fazendo desencadear uma série de paradoxos e de questões sobre a humanidade.

Seria neste período que, já contemplado com o Prémio Camões em 1996, receberia o célebre Prémio Nobel da Literatura, no ano de 1998, “que, com parábolas portadoras de imaginação, compaixão e ironia torna constantemente compreensível uma realidade fugidia” (citando a Academia Sueca). Foi o rescaldo de um percurso em que a sociedade foi vista e revista nos seus padrões capitalistas e a existência humana sentenciada com a sua morte. É um percurso que parte da introspeção para um ideal que corresponde a toda a existência humana, e que conhece uma fundamentação na sua mudança para Lanzarote, uma ilha vulcânica no arquipélago espanhol das Canárias. Procurava distanciar-se, ao lado de Pilar del Rio, de uma civilização que se ia ajustando ao que de moderno se fazia enquadrar e imiscuir no quotidiano daqueles que ficavam no continente e que abraçavam essas mudanças. Mesmo assim, o seu olhar percorria o oceano e alcançava a península, observando criticamente as injustiças e as causas sociais consequentes. Em Lisboa, na Casa dos Bicos, deixou a sua Fundação José Saramago, criada em 2007 com o intuito de defender a Declaração Universal dos Direitos Humanos, promover a cultura nacional e apoiar as causas ecológicas e ambientais.

Porém, a saúde fazia-o retrair na quantidade de produção literária, sobrando “A Viagem do Elefante” (2008, na sua viagem até à Áustria, como presente do rei D. Manuel I ao então noivo, o arquiduque Maximiliano da Áustria), “Caim” (2009, num trabalho similar ao “Evangelho Segundo Jesus Cristo”, embora direcionado aos protagonistas do Antigo Testamento e ao próprio Deus). Ao mesmo tempo, conseguir alcançar o auge do seu ser e da sua sabedoria, experienciando o mais sereno, estável e pleno sentimento de amar. Foi nesta tranquilidade que viria a partir, no dia 18 de junho de 2010, por via de uma leucemia. As suas cerimónias fúnebres receberam honras de Estado, estando as suas cinzas aos pés de uma oliveira na cidade de Lisboa, aquela que o adotou e o perfilhou como um dos seus filhos pródigos. Postumamente, foi lançado, no ano de 2014, o livro “Alabardas”, protagonizado por um trabalhador nos serviços de faturação de uma fábrica de armamento, nomeadamente nos armamentos ligeiros. Ambicionando chegar aos mais pesados, é referido, pelo autor, com letras minúsculas.

A tradição oral é aquela que orienta o “dificílimo” ato de escrever, onde a vivacidade do discurso é sempre mais importante do que a certeza da pontuação. Os diálogos fazem parte da extensão textual, dispensando a utilização dos travessões e dos dois pontos. Este estilo lembra o fluxo de consciência muito utilizado por vários autores europeus nos séculos XVIII e XIX, em que o pensamento se mistura com a narrativa e com as intervenções dos protagonistas em discurso direto. Não obstante, redigiu peças de teatro, como “A Noite” (1979), “A Segunda Vida de Francisco de Assis” (1987) e In Nomine Dei” (1993, nos conflitos cristãos e protestantes); para além de contos, como a coletânea “Objecto Quase” (1978, cruzando humanos e objetos na sua sensibilidade em várias situações), “O Conto da Ilha Desconhecida” (1997, uma alegoria sobre o mundo e o ser humano, entre o sonho e a ficção), “A Maior Flor do Mundo” (2001, em que uma criança procura alimentar e cuidar de uma flor) e “O Silêncio da Água” (2011, lançado postumamente, em que ficciona várias das suas memórias de infância).

Mais do que a própria gramática e do que a semântica, destacaram-se as ideias, as temáticas, os ideais de Saramago. O autor incendiou ainda mais o seu íntimo incendiário quando se assumiu contra a política de Israel contra a Palestina, em 2002, na governação de Ariel Sharon. No entanto, e extravasando no seu tom e nas suas referências (afirma que o Holocausto não serve de pretexto para uma defesa constante dos sionistas), foi visado em críticas de vários quadrantes, muitos deles comuns nas controvérsias religiosas. A oposição ao catolicismo era estridente, comparando-o ao fascismo, mesmo perante a sua elevada influência na sociedade portuguesa. À Bíblia, chamou de “manual de maus costumes”, com o pior da humanidade, exemplificando com o sacrifício de Isaac e a destruição de Sodoma, embora enaltecendo os seus salmos, a parábola do semeador e a qualidade discursiva destas partes.

A animosidade consolidou-se com “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” e “Caim”, que aprofundou as críticas direcionadas pela Igreja Católica. Teólogos e importantes vultos do catolicismo em Portugal apontaram-lhe o dedo na forma pouco apropriada e radical como interpretava a Bíblia, assim como, implicitamente, a figura do Papa Bento XVI. Também essa seria alvo de críticas de Saramago, chamando-o de “cínico” e de “reacionário”. Na sua morte, o jornal oficial do Vaticano, o “L’Osservatore Romano”, não poupou críticas, qualificando-o de “populista extremista”. Esta ambivalência entre a qualidade literária e o seu olhar religioso pautou e pauta ainda, nos dias de hoje, a caraterização de Saramago, muitas vezes mesclando a crença com a virtude, a polémica com a narrativa, a emoção com a razão.

José Saramago não é indiferente a ninguém em Portugal, nem por toda a lusofonia, na qual muitos leem e sobre o qual muitos ouvem. O seu percurso pessoal e profissional direcionou-o a uma identidade sem igual, por mais críticas que se fizessem ouvir e sentir na sua órbita. No auge dos autores lusitanos, nenhum é tão polémico, controverso, subversivo, provocador. Nunca se apagou do seu lugar na sociedade, um lugar consciente e crítico, para a qual olhava a partir dos seus ideais vincados e diferenciados. Do contexto mais ínfimo para a profundeza universal, Saramago olhou, sentiu, criou, criticou, apoiou, socorrendo-se da história e da memória. Com ou sem pontuação, a interrogação do seu ser permanece, até ver, como uma firme exclamação, no pilar que encontrou no sabor do amor.

O destino, isso a que damos o nome de destino, como todas as coisas deste mundo, não conhece a linha recta. O nosso grande engano, devido ao costume que temos de tudo explicar retrospectivamente em função de um resultado final, portanto conhecido, é imaginar o destino como uma flecha apontada directamente a um alvo que, por assim dizer, a estivesse esperando desde o princípio, sem se mover. Ora, pelo contrário, o destino hesita muitíssimo, tem dúvidas, leva tempo a decidir-se. Tanto assim que antes de converter Rimbaud em traficante de armas e marfim em África, o obrigou a ser poeta em Paris.

“Cadernos de Lanzarote” (1993-98)

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