Luiz Ruffato retrata São Paulo, em ‘Eles Eram Muitos Cavalos’
Numa mesma cidade encontra-se de tudo, e tanto mais quanto maior for a cidade. Gentes de todas as classes sociais, de todas as ocupações profissionais, com todo o tipo de histórias de vida, coabitam na mesma metrópole, ainda que invulgarmente dentro do mesmo bairro, ou na mesma zona da cidade. Inevitavelmente, os mais pobres acabam empurrados para as zonas suburbanas ou para guetos próprios, para zonas desfavorecidas e menos cuidadas, caso das favelas. Tal torna-se ainda mais exacerbado se falarmos de uma cidade como São Paulo, no Brasil, metrópole infinita capaz do melhor e do pior.
Desta cidade, e dos seus 12 milhões de habitantes, parte o primeiro romance do autor brasileiro Luiz Ruffato, Eles Eram Muitos Cavalos. Publicado originalmente em 2001, e responsável pela aclamação crítica de um autor premiado com, entre outros, o Prémio Machado de Assis, revelou Ruffatto ao Brasil e ao mundo, com uma obra dita pós-moderna e experimental, conjugação de várias vozes e de várias histórias, um mosaico da cidade de São Paulo em pinceladas autónomas que compõem as 69 partes deste livro.
Agora editado em Portugal pelas mãos da editora Tinta-da-China, a obra de Ruffato, nascido em Minas Gerais em 1961, parte de certa forma da mesma ideia de A Vida Modo de Usar, do francês Georges Perec. Como a obra do autor francês, ambiciona caracterizar um local através da sobreposição das histórias de quem nele se encontra. Mas enquanto o livro de Perec, construído à volta das histórias de vida dos habitantes de um bloco de apartamentos, compõe uma narrativa maior, com sobreposição entre as personagens e as suas narrativas, Eles Eram Muitos Cavalos apresenta histórias e episódios soltos, sobrepostos uns aos outros apenas na localização, a cidade de São Paulo, e numa mesma exploração da tragédia humana. Todas decorrentes no mesmo dia, 9 de Maio de 2000, são raras as vezes que uma das 69 partes, que no fundo se lêem como micro-contos em sucessão, apresenta um olhar optimista em relação à vida na cidade. Independentemente da classe social dos visados, que ocupam um espectro que se concentra quase totalmente nos graus mais baixos do mesmo, o que sobressai é uma crueza nas condições de vida, uma certa inevitabilidade da tragédia, a par com um horizonte de vida que praticamente não tem como ir além da sobrevivência.
Ao longo dos diversos micro-contos, Ruffato recorre a todo o género de vozes narrativas. Há bastante mérito nesta exploração de diferentes estilos, pelos quais o autor consegue saltar com relativo à vontade, mas acaba por existir uma certa repetição nos temas abordados e nas histórias relatadas. Seguramente que tal é parte do objectivo, Luiz Ruffato deseja mostrar as vidas destruídas por entre sórdidos acontecimentos, impensáveis até para aqueles nunca tenham tido de se preocupar com questões de sobrevivência. No entanto, essa imagem chega infalivelmente à custa de uma saturação das temáticas ao longo das diferentes histórias, e algumas delas, francamente, afiguram-se dispensáveis quer do ponto de vista narrativo quer na vontade do autor de compor o ramalhete final.
Ainda assim, há várias que são de extrema força, capazes de prevalecer enquanto peças autónomas, se desligadas do contexto geral da obra. Em Táxi, a quadragésima primeira, um taxista conta toda a sua história de vida ao cliente que transporta por entre o trânsito da metrópole engarrafada. Em O Que Quer Uma Mulher, o décimo episódio do livro, uma mulher discute com o marido, não conseguindo mais comportar estar com alguém que se conformou com a pobreza, já somente preocupado em continuar a ler o seu Foucault e dar as suas aulas. Na vigésima oitava, Negócio, um pai vai buscar o seu filho à escola no dia do seu aniversário, presenteando-o com um kart e uma ida ao McDonald’s, aterrado que o filho descubra que ganha dinheiro a contrabandear armas. Um dos últimos, Insônia, surge como avalanche de todas as temáticas abordadas ao longo do livro, encavalitar de desgraças que vêem à mente, como o nome indica, enquanto não chega o sono, e servem como relembrar de tudo o que se abordou ao longo da obra.
Estas são histórias de São Paulo e de um Brasil imensamente desigual, mas são também histórias de qualquer parte do mundo, se retiradas as especificidades da realidade brasileira. E se Luiz Ruffatto acaba por se repetir por diversas vezes ao tentar esclarecer ao máximo o ponto que quer passar ao leitor – essencialmente o da desgraça que assola os mais desfavorecidos – a verdade é que consegue que o seu ponto passe para o leitor. Eles Eram Muitos Cavalos cumpre o seu propósito consciencializador e, nem que seja por isso, vale a pena mergulhar neste mosaico de São Paulo.