Manoel de Barros, o poeta que quis renovar o Homem usando borboletas
Drummond de Andrade disse, certa vez, que não era o maior poeta brasileiro vivo, existia ainda Manoel Wenceslau Leite de Barros, Manoel de Barros o poeta das “desimportâncias”. Manoel de Barros, esse homem que só queria “fazer brinquedos com as palavras”, e coisas “desúteis” à vida, nasceu para ela a Dezembro de 1916 e morreu para o corpo em Novembro de 2014. Advogado, fazendeiro e poeta, Manoel de Barros apresentava-se assim: “Sou filho e neto de bugres, andarejos e portugueses melancólicos. Minha infância levei com árvores e bichos do chão. Penso que a leitura e a frequentação das artes desabrocha a imaginação para um mundo mais puro. Acho que uma inocência infantil nas palavras é salutar diante do mundo tão tecnocrata e impuro”.
O primeiro livro deste poeta, que tão pouco era um livro de poesia, foi apreendido pela polícia política, depois de este vandalizar uma estátua com a frase “Viva o Comunismo”. Esse livro, que se chamava “Nossa senhora de minha escuridão”, era cópia única e perdeu-se na rusga policial. Assim, a primeira publicação chegava ao grande púbico, em 1937, com o nome de “Poemas Concebidos sem Pecado”. Em 1945, desapontado com o partido comunista, rompe com este e parte à procura de uma nova visão das coisas, do “acto poético do olhar”. Viaje e vive em países como Bolívia, Peru e Nova Iorque, onde frequenta cursos de cinema e pintura. Em 1960, regressa para Mato Grosso, onde se dedica à criação de gado, e às “coisas desimportantes, aos seres desimportantes” descobrindo que o seu “quintal é maior do que o mundo”.
Barros descobriu, muito cedo que tinha nascido para “ter orgasmo com as palavras”. Esta descoberta fez nascer e amadurecer uma poesia repleta de neologismos; sinestesias; imagens; na desconstrução e reconstrução do vocabulário, do sentido das palavras; da função dos verbos, porque, para ele, “o sentido normal das palavras não faz bem ao poema”. Manoel de Barros brinca com as palavras como ninguém e seria possível criar todo um léxico com essas novas palavras e frases, reinventadas e adaptadas de todas as outras já existentes: “raízes crianceiras; “ o desnome”; “brincativo”; “não sou da invencionática”; “livre sem comparamentos”. E tantos mais exemplos de desarrumação da linguagem poderíamos encontrar no que, para o poeta, era pura “terapia literária”, uma vez que este compor e descompor das palavras servia para “expressar os mais fundos desejos” do homem.
O poeta, para quem “escrever em absurdez faz causa para a poesia”, encontra verso de poema em tudo o que o rodeava. Tudo pode servir de poema, “tudo aquilo que a nossa civilização rejeita, pisa, meija em cima, serve para poesia”. E é este olhar para as coisas de ancião sábio, mas com um entendimento de criança, que seduz e atrai na poesia de Manoel de Barros. É o olhar para o que o rodeia sem inteligência, ver coisas no nada e não entender o óbvio (como o óbvio que ele é), mas ver antes do óbvio antes das coisas serem o que são e adquirirem um nome. É ser criança sem fala, e só possuir sentidos.
A poesia de Manuel é tão mais encantadora, quanto mais simples parecem ser os seus objetos de observação, que são pensados de forma que, nessa nossa vida de correria, não conseguimos observar e compreender, como a “comunicação por encantamentos dos pássaros”; ou reparar que o “caracol é uma casa que anda e a lesma é um ser que reside”; isso de olhar para as coisas pequenas e “descobrir em todas uma razão de beleza”. Tem, pois, esse talento de criar uma sensação, a quem o lê, de identificação, quando nos fala da infância, do bom que é ter direito a uma; quando nos fala dos amigos que já não vemos, porque a vida nos apressa e empurra em direções opostas, mas existe essa vontade de ligar-lhes a contar toda a nossa vida e reuni-los a uma mesa. O poeta das subtilezas, do nada, que sem dúvida, é tudo.
Retrato do Artista quando Coisa
A maior riqueza
do homem é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.
Com Manoel de Barros, compreende-se que é “preciso ser Outros” e não viver essa existência onde se olha o relógio e se vai “comprar pão as seis horas da tarde” e que “poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e das nossas).
Manoel de Barros, este poeta que depois de estudar, de viajar, de assistir às desumanidades da Guerra, encontrou na simplicidade do seu quintal a explicação para o mundo. Sendo que, dessa explicação, tinha o “privilégio de não saber quase tudo”. E, bom, isso explica o resto.