Mário Viegas, “o actor em estado geral de graça”
Mário Viegas, relembrado como contestatário, com consciência social elevadíssima e um génio bastante frontal e acutilante quando preciso, nunca separou a poesia do teatro. Tanto assim era que, actualmente, o actor e encenador é recordado tanto pelo que deu aos palcos e às câmaras como, também, pela poesia que declamou desde Fernando Pessoa e Eugénio de Andrade a Jorge de Sena. Morreu precocemente, aos 47 anos, mas a forma recta e poética como viveu a sua vida é mais do que razão para ser lembrado e não ser deixado no esquecimento. E quando se fala em viver a vida de forma poética, também se inclui a coerência que a pessoa mantém com os seus valores. Contemporaneamente sim, pode-se considerar tal atitude poesia, até pela coragem que exige.
Já desde pequeno que António Mário Lopes Pereira Viegas, nascido em 1948, sonhava ser actor, não obstante grande parte dos seus familiares do lado paterno terem seguido o ramo farmacêutico. Como excepção demarcou-se a sua mãe, Mariana Lopes Viegas, professora de filologia clássica de grego e latim, também vanguardista para a época uma vez que fez parte da primeira equipa feminina de hóquei em patins em Portugal; criou e dirigiu o primeiro suplemento juvenil de banda-desenhada dedicado ao público feminino, ‘A formiga’, do célebre jornal ‘O Mosquito’, e foi, igualmente, das primeiras professoras portuguesas de literatura para crianças. Mário Viegas, pela via materna, era também sobrinho de António Cardoso Lopes Jr., mais conhecido por ‘Tiotónio’, fundador, no caso português, do pioneiro jornal de banda-desenhada ‘O Mosquito’. O jornal tinha uma variante mais antiga, proveniente do Brasil, que contou com a colaboração de Rafael Bordalo Pinheiro.
Como a sua irmã relembra no documentário ‘Mário Viegas’, disponível nos arquivos online da RTP, quando crianças ambos elaboravam bonecos ou bonecas de papel e Mário adicionava cordéis para os poder movimentar tal como se fossem marionetas – posteriormente inventava a sua história e interpretava-a com esses mesmos bonecos. A sua relação com a leitura também começou precocemente e, sem os próprios pais saberem que já o conseguia fazer, aos quatro anos leu do nada, em voz alta, a placa de um café enquanto, distraidamente, passeava com a sua família.
A efabulação, a história e a representação caminharam sempre, de alguma forma, ao seu lado e, por trás de tudo isso, subjaziam as palavras e a sua importância – palavras essas que se transfiguravam em textos que tinham de ser bem lidos, bem ditos, bem interpretados e respeitados. Era para o que Mário Viegas vivia e era para isso mesmo que a sua intransigência era canalizada. O encenador Hélder Costa não deixou de focar no mesmo documentário da RTP o seu processo de trabalho pouco ortodoxo, que consistia em ir rasgando as páginas da peça em questão à medida que as ensaiava e as decorava, mastigando-as depois, o que punha os restantes actores em sobressalto no ensaio porque o texto da peça poderia voltar a ser preciso. Como o próprio dizia, o teatro era a sua vida e a sua morte, uma frase que queria explicar que o teatro, para si, era tudo, indissociável da sua pessoa.
No Teatro Experimental de Cascais [TEC] teve a sua estreia profissional, em 1968, mas vale a pena recordar que foi, justamente, através da declamação de poemas que a sua aventura na representação começou, ainda em Santarém, a sua cidade natal. Segundo o próprio, numa entrevista concedida a Simone de Oliveira no programa Piano Bar, da RTP, começou a dizer poesia em 1966, “ainda muito novo, sou natural de Santarém, queria ser actor e a única maneira que eu tinha de poder exibir-me em público era na altura, em Santarém, dizer poesia. Estreei-me, precisamente, no dia 12 de Março de 1966, é a minha data histórica.” Os seus primeiros poemas declamados foram, então, ‘Um Adeus Português’ (também o título do filme de João Botelho de 1986) e ‘O Poema Pouco Original do Medo’, de Alexandre O’Neill. Este último tratava-se de uma escolha arrojada de um jovem convicto num Portugal ditatorial ainda prévio à queda da cadeira de Salazar. Mas outros poetas e poemas faziam já parte do seu repertório como, por exemplo, ‘Mataram a Tuna’, de Manuel da Fonseca, sem esquecer Gastão Cruz.
A partir dessa ocasião, foi abrindo caminho e participando em convívios e colectividades da altura, realizando espectáculos de poesia a solo ou acompanhado, principalmente por vários músicos emergentes da época. São incontáveis as iniciativas de poesia que realizou ao longo da sua vida e, ainda muito antes do 25 de Abril, no início da sua juventude, nunca deixou de fazer a ligação entre os poemas que declamava e a contestação contra a ditadura vigente. Segundo o que o próprio confessou na entrevista a Simone de Oliveira – relembrada no documentário ‘Um Rapaz Chamado Mário Viegas’ também disponível nos arquivos online da RTP – antes de 1974 [o ano da revolução] não exigia nenhum valor monetário pelos poemas que declamava. Entendia-os e escolhia-os, principalmente, como forma de combate e como um sopro de liberdade no país fechado de outrora, e isso era-lhe suficiente.
A sua consciência social e política elevadíssima, tal como o teatro e a poesia, também nasceu consigo e o acompanhou sempre ao longo da sua vida. Depois da experiência do teatro amador da sua cidade natal, rumou à capital onde ingressou, primeiro, na Faculdade de Letras, onde começou a cursar História, e no Conservatório Nacional em Lisboa. Foi nessa altura que a sua consciência política começou a apurar-se ainda mais, tendo já como bandeira o fim da guerra colonial e o anti-fascismo.
Neste aspecto em particular, tinha em Zeca Afonso uma referência incontornável. Nutria, igualmente, por Maria Barroso [esposa de Mário Soares] uma grande admiração e, tal como o próprio disse numa entrevista ao jornalista e escritor Viriato Teles, “lembro-me que a vi actuar pela primeira vez em Alpiarça, localidade que era um grande baluarte do Partido Comunista Português e da Oposição, antes do 25 de Abril. Nunca mais me esqueço que as duas primeiras filas da plateia estavam ocupadas por agentes da PIDE e da GNR. Eu também queria fazer aquelas coisas todas. E fiquei com o mito da Maria Barroso, que era uma mulher que, de facto, dizia muito bem e que empolgava as pessoas.” Depois da revolução dos cravos, continuaria a dar expressão à sua consciência social e política, período esse que irá ser focado mais à frente. Desse período pós 25 de Abril que marcou a entrada de Portugal na então CEE [Comunidade Económica Europeia], ficariam para memória, a exemplo, enquanto trabalho próprio, a adaptação do Manifesto Anti Dantas, trocando o nome de Júlio Dantas pelo de Cavaco Silva, de quem era ferozmente crítico, ou peças como ‘Europa não, Portugal nunca!’, o seu último êxito, de 1995.
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No teatro, após a sua estreia no TEC ao lado de Carlos Avilez, ainda passaria um período na Invicta, no Teatro Universitário do Porto. Regressaria, posteriormente, em 1970, ao Teatro Experimental de Cascais. Fez parte da Companhia teatral ‘A Barraca’, fundada por Maria do Céu Guerra e Mário Alberto e, além de actor, destacou-se, igualmente, como encenador e foi responsável pela fundação de três companhia teatrais, incluindo a ‘Companhia Teatral do Chiado’. Dos seus trabalhos mais notáveis no teatro destacaram-se, sem dúvida, ‘Europa não, Portugal nunca!’, o seu último êxito corrosivo e socialmente satírico de 1995; ‘D. João VI’, de Hélder Costa, peça pela qual ganhou o prémio de melhor actor no Festival de Teatro de Sitges, mas não só. Ficariam na memória as suas adaptações de Samuel Beckett, Anton Tchekov, Luigi Pirandello, Eduardo De Filippo e Peter Shaffer, entre muitos outros, sem esconder ou deixar para trás o seu lado satírico, humorístico, ácido e perscrutador que tanto o caracterizava.
Podemos estabelecer, por várias razões, um paralelismo entre Mário Viegas e João Villaret, o seu grande antecessor. Ambos actores de teatro, destacaram-se pela declamação de poemas – poesia, essa, da qual João Villaret também era indissociável – e ficaram conhecidos pelo grande público, essencialmente, pelos seus programas de televisão ligados à poesia e à literatura.
No caso de Villaret, o seu programa homónimo no canal público ficaria imortalizado pela grande capacidade de comunicação do actor, mantendo quase que uma conversa informal com o espectador enquanto contava as suas histórias, de forma bastante simples e despretensiosa, somente com o piano do seu irmão como fundo. Não cedia ao pedantismo, à pomposidade de quem quer ostentar cultura. Cedia, sim, à simplicidade de quem quer dar cultura, de riso afável, sem nunca, em momento algum, perder a classe. Estabelecendo uma antítese com o seu próprio corpo, quando comunicava João Villaret transformava-se em elegância, sendo dos muito poucos que sabiam tratar o popular como, realmente, o popular o merecia, fazendo com que os 40 minutos passados em frente à TV passassem muito rápido. Era um equilíbrio muito próprio que João Villaret sabia protagonizar e levar a efeito como ninguém. Já Mário Viegas era a acutilância, a ironia e o humor ácido levado ao extremo que não tinha em vista o conforto mas, sim, o bom desconforto que nos tira do nosso próprio centro.
Em televisão, a partir dos meados dos anos 80 , foi responsável por dois programas essenciais, ‘Palavras Ditas’ e ‘Palavras Vivas’, dedicados aos grandes poetas e escritores portugueses. Pensado num formato simples que dava primazia, essencialmente, ao grande plano da cara, numa forma de enaltecer as expressões faciais e a linguagem corporal do actor, Mário Viegas fez história com as suas declamações e com a simbiose que protagonizou entre a linguagem do teatro, a linguagem do ecrã e a linguagem da poesia. Não deixou de ter em mente, e isso é visível nos programas disponíveis nos arquivos da RTP, que aquela poderia também ser uma via para familiarizar o espectador em massa com a linguagem teatral.
O humor que lhe era inerente, a consciência social e o pensamento sobre o significado da Europa, então no discurso do dia [aderimos à CEE em 1985], era sempre trazido por si à liça nas escolhas que fazia. Há, essencialmente, três grandes episódios que se destacaram a esse nível. No episódio dedicado à Europa e à paz, por exemplo, declamou um poema inédito de Eugénio de Andrade, ‘Ao Miguel, no seu 4º Aniversário, Encontra o Nuclear, Naturalmente’, que o próprio poeta lhe enviou para ser dito, justamente, naquele programa. Nesse mesmo episódio recordou, também, o poema ‘Europa’, a propósito, de Adolfo Casais Monteiro. Mas falando justamente de Eugénio de Andrade, também preparou um episódio inteiramente dedicado ao poeta, cujo excerto da declamação do poema ‘Urgentemente’, aliás, foi recentemente relembrado na série ‘Conta-me como foi’. O humor do icónico Mário Henrique Leiria também foi relembrado num especial dedicado ao autor dos ‘Contos do Gin-Tonic’, com interpretações dos textos do livro com o auxílio da locutora Manuela de Melo e com a participação final de João Perry. Já no especial dedicado a Herberto Helder, intitulado ‘O actor em estado geral de graça’, ficaria imortalizada a sua fenomenal declamação de ‘A Cena do Ódio’, sempre actual, de Almada Negreiros, que lembraria às futuras gerações o icónico verso, ‘Aprende a ler corações/ Que há muito mais a fazer do que fazer revoluções’.
Muitos outros autores, os grandes autores portugueses, foram por si relembrados fazendo, dessa forma, a essencial ponte com o grande público português. Era tratado pelo público como o declamador, muitas vezes o confundiam como o poeta dos poemas que declamava. Causava impressão e arrepio pelo grande impacto da sua interpretação sonora e vibrante, o que por vezes resultava em algumas críticas. Mas, como se justificou num programa, alguns poemas só podem ser bem ditos se assim for.
O cinema também não lhe passou ao lado e, na sétima arte, foi de forma icónica ‘Kilas, o Mau da Fita’ (1980) de José Fonseca e Costa, com quem estabeleceu parceria de forma regular. Foi, igualmente, dirigido por Manoel de Oliveira em ‘A Divina Comédia’ (1991) e participou conjuntamente com Marcello Mastroianni e Nicoletta Braschi (esposa de Roberto Benigni) em ‘Afirma Pereira’, de Roberto Faenza (1996), numa adaptação do livro homónimo de Antonio Tabucchi. Ao todo foram mais de 15 longas-metragens, tendo começado em 1975 com ‘O Funeral do Patrão’, de Eduardo Geada, até 1996.
O seu lado político teve máxima expressão em 1995 quando, pela UDP, concorreu a um lugar no parlamento sendo o número três do partido político. A título de curiosidade, foi nesse mesmo ano que Manuela Moura Guedes e Paulo Portas concorreram pelo CDS-PP. No caso de Paulo Portas, depois de uma adolescência e juventude ligadas à JSD e ao próprio PSD, fazia-o no momento em que abandonava a direcção do jornal ‘Independente’, que fundou com MEC [Miguel Esteves Cardoso] e o escritor Pedro Paixão. O seu sentido de dever político não se ficaria, no entanto, por aí. Anunciaria ainda, nessa mesma altura, a sua candidatura à Presidência da República, para as eleições de 1996. Politicamente, Mário Soares era o presidente português e o seu arqui-inimigo Cavaco Silva era o primeiro-ministro [terminaria as funções em 95]. Vitimado pela doença não pode concretizar este seu intento. Precocemente Mário Viegas deixaria o mundo e morreria por HIV, em 1996. Jorge Sampaio foi quem sucedeu na Presidência e ganhou as eleições para as quais concorria.
Inquieto, arrojado e rebelde, assim era Mário Viegas que encarnava o lado mais humano e corporal de se ser actor. Maria do Céu Guerra relembra que, para ele, o teatro não necessitava de grandes adornos nem Mário Viegas fazia questão de fazer uso de grandes subsídios. Eram os textos, as expressões, as boas interpretações e o corpo do actor, isso é que era o importante. Júlio Isidro caracterizou-o de forma incisiva deste forma, no documentário disponível nos arquivos da RTP, como “estruturalmente anarca. Tinha a maior consideração pelo talento e o maior desprezo pela mediocridade.”