MEO Kalorama (dia 2): libertar emoções com Florence and the Machine e Ethel Cain
Foi preciso correr logo no início do segundo dia de MEO Kalorama, mas valeu a pena, pois conseguimos chegar ao concerto de Eu.Clides, que, apesar da hora e do facto de ainda ser um dia útil, conseguiu angariar uma boa quantidade de público. E o bónus para o artista foi que, quem estava lá, estava claramente para ver o seu concerto. Isso notou-se nas reacções efusivas a cada canção, particularmente nas mais dançáveis “4ª Feira” e “Venham Mais 7”. “Acho que estão com vontade de dançar”, diz-nos Euclides antes de se atirar a “Tubarão-Azul”. Depois de o termos visto há cerca de ano e meio no Sónar Lisboa, notamos um maior à-vontade em palco, para além de um som mais rico e com maior variedade. A bagagem trazida por uma série de concertos e pelo lançamento do primeiro álbum de estúdio, há cerca de 6 meses, já se faz notar da melhor forma. Podem recordar aqui a nossa entrevista ao artista.
Logo de seguida, o certame continuou em português, com os meninos lisboetas Capitão Fausto. Apesar de não lançarem música nova desde A Invenção do Dia Claro, disco de 2019, o seu regresso foi bastante bem-vindo naquela tarde soalheira, adequada às cantigas ligeiras que têm marcado a evolução da banda. Aprumadíssimos e em perfeita sintonia, deram um concerto extremamente consistente. Tirando a mais baladeira “Amor, a Nossa Vida” e a electrizante “Santa Ana” — a única recordação dos primórdios da banda — todas as outras canções do alinhamento pareciam versões diferentes de uma mesma paleta musical, da melhor forma possível. O som é inegavelmente Capitão Fausto, o que é algo difícil de alcançar, para além de que a poesia millenial de canções como “Sempre Bem” ou “Morro na Praia” continua certeira. No entanto, para quem esperava ouvir alguma coisa nova, como era o nosso caso, ficou apenas a promessa de que a banda tem estado a trabalhar em algo. Aguardamos novidades, então.
Entretanto, no palco Samsung, já começava o concerto de James Holden. Enquanto o britânico controlava as batidas da rave vespertina, um músico adicionava textura com saxofone e um outro, de pernas cruzadas, tocava instrumentos de percussão, entre os quais se incluía uma tabla. Isolados do resto do festival por uma fileira de árvores, seria possível confundir aquele recinto com o de uma matinée de música electrónica com toques tribais.
Ao mesmo tempo, no palco San Miguel, o público do concerto de Ethel Cain estava prestes a ter uma pequena grande surpresa. Chegámos precisamente nesse momento: quando Florence Welch, antes do seu concerto de cabeça-de-cartaz, apareceu para cantar “Thoroughfare” com Hayden Anhedönia, vocalista e criadora do alter-ego Ethel Cain. O lançamento que catapultou Ethel Cain para relativa fama foi o mais recente Preacher’s Daughter, álbum conceptual que baseada na experiência de Hayden como mulher trans criada no berço de uma família católica e cujo pai é diácono, contada da perspectiva da personagem que dá nome ao seu projecto. É um disco pesado, composto por canções rock muitas vezes tristes e lentas que carregam uma aura gótica e toques de country que amplificam as emoções das letras. Isso transparece no concerto, ao longo qual a base de fãs dedicada absorve cada palavra da cantora. Quando ela desce para cantar “Crush” junto do público, já no final, a intensidade dos olhares trocados é suficiente para nos arrepiar. Tínhamos acabado de assistir àquele que foi certamente um dos concertos mais importantes do festival.
Para aligeirar o ambiente, chegaram os Belle & Sebastian, os veteranos do indie pop cuja tristeza é mais contida, soltada de vez em quando em melodias pop e ritmos twee. O vocalista Stuart Murdoch, ao longo das suas verbosas interacções com o público, demonstrava um charme desajeitado de quem usa o humor para lidar com as adversidades da vida e, ocasionalmente, um ritmo disco bem colocado, como em “Your Cover’s Blown”. “Esta canção é mais velha que tu! Como é que a conheces?”, pergunta eventualmente a um fã da fila da frente. Há maneiras e maneiras de lidar com a tristeza, mas pelos vistos a dos Belle & Sebastian continua a passar de geração em geração. Mais perto do final, após uma reparação impromptu do piano, uma série de festivaleiros sobe ao palco a convite da banda para dançar ao ritmo da mais famosa canção da banda, “The Boy With the Arab Strap”, e até para cantar um pouco de “(I Can’t Get No) Satisfaction”, dos Rolling Stones. Foi um concerto ligeiro e animado, daqueles que funcionam sempre.
Uma estreia em Portugal, achámos que o concerto de Tamino iria passar mais despercebido por entre os festivaleiros, apesar do seu relativo sucesso comercial por outras partes da Europa. No entanto, cinco minutos antes do início, já havia uma turba de fãs femininas a gritar pelo seu nome. O cantor e modelo belga-egípcio compõe músicas de rock alternativo com toques de música arábica, notória não só na instrumentação, mas também nos melismas que aplica na sua forma de cantar. O ambiente melancólico das suas canções adequou-se na perfeição ao clima nublado, naquele que foi o último festival que estava a tocar neste ano. Talvez por isso o artista parecesse estar um pouco sorumbático, ou quiçá pelo cansaço acumulado de uma tour de festivais. Também não deve ser fácil soltar as suas emoções acumuladas em canções como “Indigo Night” ou “The First Disciple”. Só sabemos que foi um belo concerto que certamente terá conseguido novos fãs para o artista.
Num infeliz acaso, o seu concerto coincidiu com o de FKJ. Sentimo-nos impelidos a ir espreitar o homem por detrás do hit “Tadow” — no qual participa Masego — e as suas músicas que podem ser melhor descritas pelo epíteto jovial “vibes“. Mas infelizmente as vibes não chegam e acabamos por nos arrepender de abandonar o concerto de Tamino. Sobre batidas constantes, o músico francês usou samples (como o caso de “Be Thankful For What You’ve Got”, de William DeVaughn) ou tocou guitarra, saxofone e teclas, provando o seu virtuosismo. Só que tudo soava estranhamente raso ou monótono, como música de rooftop que se coloca de fundo, não entusiasmando muito mais do que umas dezenas de fãs e deixando os restantes distraidamente a falar e a bater o pé. Música de sunset sem pôr-do-sol não funciona.
Logo após “Tadow”, o público iniciou a debandada para o palco principal, pois em breve começaria o concerto de Florence and the Machine. O recinto estava notoriamente mais recheado do que no dia anterior, para assistir ao concerto dos seus conterrâneos Blur. Florence Welch concentra em si o carinho do público mainstream, pelos hits que conseguiu com canções como “Dog Days Are Over”, “Shake it Out” ou a emocionante versão de “You’ve Got the Love” — que não puderam faltar no alinhamento —, mas também pelo público mais alternativo, que vê nela uma personagem genuína e que usa a sua voz impecável em canções maravilhosas sobre os sentimentos mais intensos da humanidade. Para muita gente, é difícil olhar para ela e ver uma mera cantora. O seu estatuto é um pouco mais místico que isso, como uma espécie de ninfa, ou até algo mais sobrenatural, como uma força que move e comove multidões.
Este foi o primeiro concerto após ter sido submetida a uma cirurgia de emergência que a obrigou a cancelar algumas datas de festivais há meras semanas. Por isso, notava-se um certo nervosismo da sua parte, prontamente amenizado pela reacção estrondosa do público, muito apreciada por Florence, que agradeceu profusamente o carinho e amor cada vez que tinha oportunidade. O início do concerto foi maioritariamente dedicado ao quinto álbum de estúdio da cantora, Dance Fever, com canções gloriosas e esperançosas como “Free” e “King”. Ethel Cain ainda apareceu para devolver o favor, cantando o emotivo dueto “Morning Elvis” num momento absolutamente maravilhoso.
A partir de “You’ve Got the Love”, as coisas ficaram ainda mais efusivas. A roqueira “Kiss With a Fist” exortou toda a gente a dançar, enquanto que em “Dog Days Are Over” fomos incentivados a abandonar os telemóveis por uns instantes para uma pequena sessão de exorcismo. A verdade é que não vimos nenhum telemóvel durante uns minutos, ao invés disso vendo toda a encosta do Parque da Bela Vista a soltar-se como se não houvesse amanhã. Gostamos de pensar na poeira que se levantou como todos os sentimentos negativos e pesos que o público carregava em si, a voar para longe de todos nós. Em “Cosmic Love”, os telemóveis voltaram a ser permitidos para iluminar o público, como estrelas terrestres. Para o encore, ficou reservado o regresso de uma das suas canções mais exigentes, “Never Let Me Go”, assim como dois outros momentos de libertação: “Shake It Out” e “Rabbit Heart (Raise It Up)”. Enfim, acreditamos que toda a gente saiu com menos uns quilos daquele concerto, seja em termos de carga emocional ou de exercício físico. Um verdadeiro triunfo.
De repente, houve uma clivagem em termos de ambiente. A partir daí, tirando o indie de Baxter Dury, a música fez uma agressiva viragem à esquerda em termos de experimentação. Não vamos mais longe para além do camaleónico set de Arca, já nosso conhecido em termos de imprevisibilidade. Misturando elementos de performance drag, libertação sexual e cruzando géneros distintos como reggaeton, noise, techno e pop quando assume as funções de DJ, uma actuação sua é um espectáculo do corpo em todos os sentidos da palavra. Alejandra Ghersi converte-se em animal de palco quando começa uma sequência da sua própria música, cantando mais e melhor do que aquilo que tínhamos visto anteriormente, atirando-se a “El Alma Que Te Trajo”, “Incendio” e “Rakata” com garra.
No palco principal, uma das escolhas mais arriscadas do festival foi o casting de Aphex Twin como cabeça-de-cartaz. Reconhecido ícone de culto para os fãs de electrónica e querido dos críticos, mas relativamente desconhecido para o público em geral, o seu set era uma incógnita mesmo para quem conhece a sua música. Quando o tentávamos explicar a quem não conhecia, era sempre difícil de descrever. No final de contas, foi uma mistura explosiva dos géneros que sempre fizeram parte da sua música: IDM, dubstep, techno, noise, breakbeat, entre outros; habilmente misturados por Richard D. James de formas surpreendentes. Mesmo os ritmos mais constantes tinham pequenos detalhes — como falhas ou distorções — que nos entusiasmavam e produziam quase um receio irracional do que aí viria para nos assoberbar. Tirando algumas falhas nos visuais (os ecrãs e o cubo gigante que os suportavam deixaram de funcionar a certo ponto), foi um set impecável para quem é fascinado pela música electrónica mais desafiante, como não podia deixar de ser.
No entanto, não pudemos ficar até ao final, pois queríamos assistir à estreia da rapper e cantora britânica Shygirl em Portugal para entender todo o entusiasmo que a circunda. Tendo em conta o concerto a que assistimos, é inteiramente merecido. Atravessando diferentes géneros, entre R&B, pop claramente inspirado nos anos 90 e trap, Shygirl controlou cada um deles com a confiança que claramente desmente o seu nome de palco. Para além disso, as canções são realmente bem feitas. Veja-se “Coochie (a bedtime story)”: poderia ser apenas mais uma canção de trap, mas a sua produção elegante e melodia brincalhona elevam-na acima da média. Entre músicas, falava sem peneiras de sexualidade, deixando-nos perfeitamente à vontade para nos soltarmos ao ritmo de canções como “Cleo” ou “BDE” (abreviatura para “big dick energy”). “Quem se vai vir por mim esta noite?”, pergunta-nos sedutoramente e com um toque de malícia.
Hoje, o MEO Kalorama regressa para o terceiro e último dia de certame, com nomes como Arcade Fire, The Hives, Dino d’Santiago, Foals, Selma Uamusse, Junior Boys, entre outros.