O dia em que fomos invadidos pela internet
Não, este texto não vai falar das invasões napoleónicas em Portugal, ou até mesmo das invasões muçulmanas na península ibérica. Esta invasão é bem mais recente, se calhar mais subtil, mas quase tão profunda quanto as anteriores.
Houve um momento nas nossas vidas em que uma opinião, boato ou informação não saía do café, dos jornais, ou até, por vezes, das revistas que líamos em consultórios. A informação era difundida em grande parte de boca em boca, fosse ou não verdade. No máximo, podíamos alcançar uns 20 quilómetros, já que sem outros meios como os jornais e revistas nunca teríamos forma de comunicar às massas o que pensamos ou achamos sobre algo.
Esse momento não existe para a maioria das pessoas há já algum tempo. E até já existem pessoas que nunca o conheceram. Agora, basta entrarmos na nossa rede social preferida e publicarmos aquilo que nos vai na cabeça, aquela verdade escondida, ou aquela mentira preparada. Caso tenhamos conhecimentos mais profundos, amigos importantes ou queiramos gastar algum dinheiro, conseguimos sempre espalhar informação, em maior ou menor escala. As redes sociais tornaram-nos “opinion makers”, com vozes activas sobre tudo o que se passa, passou e ainda se vai passar, seja verdade, mentira ou incógnito.
Por exemplo, houve um momento nas nossas vidas em que era complicado espalhar uma criação, fosse ela uma música, um vídeo ou uma história sobre algo. Era realmente complicado, sem conhecimentos objectivos, difundir arte, criação ou opinião para um mero cidadão comum. Esta limitação deu-nos duas realidades distintas, mas que ocorriam ao mesmo tempo: 1 – Não tínhamos que ser inundados por informação desnecessária e sem qualidade; 2 – Perdíamos a hipótese de ficar a conhecer algo realmente bom (sendo que isto também pode ser relativo) e que até nos poderia ajudar de qualquer forma (educativamente ou informativamente). Estas duas realidades, contudo, não nos separavam dos que mais mandavam: os meios de comunicação e grandes grupos económicos.
Dizermos que “antigamente é que era, não havia cá internet a espalhar porcarias, informação falsa ou fotografias de malta a fazer beicinho” é um erro que se pode assumir como inconsciente e até grave. Antigamente havia a televisão, os jornais, as revistas e os pasquins (ainda hoje existem) e esses podiam ser bem mais irritantes (e até eram pagos) do que os que espalham porcaria pela internet. A diferença reside na livre opção de escolha. Antes estávamos restringidos a uma certa limitação de alternativas a nossa gosto. Hoje em dia é o oposto, existem demasiadas, e fazer uma boa selecção implica muito mais do que apenas tempo.
E de repente surgem a internet, as redes sociais, os blogues com opiniões, análises, críticas, definições de bom e mau. E de repente surgem as pessoas que tal como noutro tempo acham que se deve seguir tudo cegamente. Essas pessoas acham que estes novos meios de comunicação ditam objectivamente o que é bom ou mau, as opiniões generalizadas das pessoas, ou simplesmente que caminhos é que devemos seguir. E de repente todos temos algum poder, todos temos algum voto na matéria, algo a dizer, algo a decidir. E o que é que mudou realmente? Nada.
Mudaram certamente as opções, que agora são mais e variadas, mas a qualidade dessas opções é algo sempre questionável. Certo é que as redes sociais mudaram a nossa forma de consumir, de agir e, mais importante, de pensar. E é aqui que está o verdadeiro perigo. Exemplo bastante claro: O artista ‘x’ lança uma nova música. Esse artista não sabe cantar, a música é horrenda, berrante e claramente um atentado a todos aqueles que têm mais do que 1% de audição. Essa música atinge um grande número de partilhas, gerando um grande orçamento, dando maior visibilidade ao artista e possibilitando assim que esse mesmo artista, o tal que não tem qualidade, possa continuar a sua carreira e dar força a outros projectos do género, colocando na sombra artistas com grande mérito e qualidade. E quem é que possibilitou tudo isto? Todas as pessoas que não gostaram da nova música e a decidiram partilhar para demonstrarem o quão chocante e horrível era. E é isto que as redes sociais possibilitam; que o ódio, ou a piada falhada, se transforme em rentabilidade. E no meio de tudo isto existem pessoas que conseguem ver essas tendências e lucrar com elas, produzindo falsas estrelas e artistas à custa de quem não as quer ver. Vivemos n’A Sociedade do Espectáculo, diria o escritor francês Guy Debord, em 1967; ou mais recentemente, em 2012, o Nobel da Literatura peruano Mario Vargas Llosa, n’A Civilização do Espectáculo.
Por fim, e em nota de conclusão, houve também um momento em que tínhamos que recorrer a enciclopédias para aprender algo, cursos presenciais ou enviar uma carta por correio para dizermos ao nosso tio que afinal a embalagem que estava neste momento a receber não devia ser aberta assim. Felizmente esse momento foi alterado e agora é possível fazer tudo imediatamente. E “tudo” é mesmo a melhor definição. A internet dá-nos essa possibilidade, de alcançarmos o que queremos, da forma que queremos, quando quisermos. O único problema continua a ser conseguirmos ver entre a lixeira e criarmos um sistema organizado para nós próprios, para realmente tirarmos proveito deste Deus digital.
No fundo esta invasão digital continua a cometer os mesmos erros que todas as outras: má assimilação de cada cultura, má organização e estrutura, falsa noção de importância e transmissão de verdade e conhecimento. E aqui estamos, em frente aos nossos computadores, tablets ou smartphones, muitos dias depois daquele que foi o momento mais marcante da nossa sociedade: o dia em que fomos invadidos pela era digital.