O mote ou a morte

por Hélder Verdade Fontes,    26 Julho, 2023
O mote ou a morte
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Todos os anos, em meados de Julho, o mote “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” volta a fazer parte do léxico comum. Desta vez, infelizmente, chegou até nós com um sabor amargo: a morte do jovem Nahel, às mãos da polícia, e os confrontos subsequentes entre jovens e forças de segurança dizimaram qualquer celebração normal que se poderia fazer pelo mote. Em bom rigor, impõe-se uma questão: teremos sequer motivos para o celebrar?

Os três focos do mote estão, naturalmente, interligados e tentar encontrar uma lógica de precedência entre eles pode ser tão frustrante como resolver o dilema do ovo e da galinha. Ainda assim, dizer que a igualdade é crucial para os restantes dois não será algo chocante: pode ser possível conceber igualdade sem liberdade, mas não haverá liberdade sem igualdade; e a fraternidade baseia-se na concepção de que somos iguais aos olhos de todos. A luta pelo mote torna-se, por isso, intrinsecamente, uma luta pela igualdade. Tal faz ainda mais sentido se pensarmos na parte da desigualdade que é construção social, instalada e imbuída na sociedade, e não uma inevitabilidade natural. 

“Em 1980, em França, os 10% mais ricos detinham 7 vezes mais património do que os 50% mais pobres. Neste momento, detêm mais de 12 vezes o património dos mais pobres (que representam cinco vezes mais pessoas). É apenas um dado, mas mostra que somos hoje francamente menos iguais do que há algumas décadas atrás.”

A revolução francesa não gerou a sociedade ideal e justa que prometeu, mas, desde então, trilhamos um caminho interessante — a melhoria das condições de vida da esmagadora maioria da população ocidental é um facto que o comprova. Contudo, dizer que estamos neste momento a cumprir a revolução é manifestamente pueril, visto que casos como os que referi são tudo menos situações pontuais. O excessivo número de mortes às mãos das forças de segurança e a onda de confrontos violentos sempre latente, apenas à espera de uma pequena faísca para voltar a surgir, são claros sintomas de problemas estruturais por resolver no seio da sociedade francesa. 

Creio ser impossível dissociar qualquer um destes problemas do início do neoliberalismo, do estancar das forças sociais-democratas que lutavam pelo mote e da consequente reversão da igualdade conquistada. Em 1980, em França, os 10% mais ricos detinham 7 vezes mais património do que os 50% mais pobres. Neste momento, detêm mais de 12 vezes o património dos mais pobres (que representam cinco vezes mais pessoas). É apenas um dado, mas mostra que somos hoje francamente menos iguais do que há algumas décadas atrás.

Todavia, a visão puramente económica da desigualdade é francamente tacanha. A desigualdade manifesta-se sobretudo na sua vertente material e económica, mas não ocorre por si só. A montante, a estrutura e o acesso ao capital são fortemente dependentes da posição social de cada membro. Isto é, existe uma forte correlação entre a pertença a certos grupos étnicos, culturais, sexuais ou ainda de género e a sua consequente prosperidade material. Neste aspecto, a sociedade francesa apresenta-se como manifestamente patriarcal e estruturalmente racista. 

“Em 1789, só os homens proprietários eram considerados cidadãos plenos — hoje, parece que continuamos com a mesma lógica.”

Se analisarmos a desigualdade em termos de género, constatamos que as mulheres compõem apenas 15% do bolo dos 10% mais ricos da sociedade, cuja representação diminui conforme o percentil de riqueza aumenta. Estima-se, inclusive, que a este ritmo só se atinja alguma paridade depois de 2150. Representam ainda menos de 42% do rendimento nacional, quando constituem cerca de 55% da população total, o que mostra que o fosso dos rendimentos entre homens e mulheres continua bastante significativo. Em 1789, só os homens proprietários eram considerados cidadãos plenos — hoje, parece que continuamos com a mesma lógica.

Contudo, a clivagem social mais visível neste momento é a étnico-cultural. Não é de espantar que assim seja: as políticas destinadas a estes grupos, compostos por migrantes de ex-colónias e filhos, podem ser designadas de tudo e mais alguma coisa, excepto de políticas de integração. A segregação da maioria para bairros sociais e guettos nas periferias, a vivência em condições de insalubridade e nos epicentros do tráfico de droga, o investimento consideravelmente menor em educação nestas zonas prioritárias, a sobre-representação nos mortos às mãos das forças de segurança e, também, o racismo e xenofobia estruturais são, bem mais do que meros obstáculos — são políticas concretas para a triagem societal que a sociedade francesa pretende. O caso adensa-se quando a maioria é francesa de nascença, fala francês perfeito, tem um emprego e é preterida apenas pelo tom de pele, normas culturais ou, inclusive, pelo apelido. Podemos voltar a questionar-nos que sucesso poderão ter os que apenas conhecem uma existência em manifestas condições desigualitárias.

Por tudo isto, torna-se particularmente difícil dizer que temos motivos para celebrar o mote, principalmente se tivermos em conta que debatemos a sua versão incompleta. O original, visto em vários cartazes da época, era “Liberdade, Igualdade, Fraternidade ou a Morte”. É provável que a última parte tenha caído, com o passar dos anos, por lembrar demasiado os excessos do terror. No entanto, mostra como a luta nunca foi pacífica. Infelizmente, neste momento, só encontramos morte. Talvez esteja na altura de voltarmos a colocá-la de lado e procurar mais o mote.

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