O olhar de John Steinbeck na adversidade do ser norte-americano

por Lucas Brandão,    26 Agosto, 2018
O olhar de John Steinbeck na adversidade do ser norte-americano
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John Steinbeck é um dos muitos vencedores do Prémio Nobel de nacionalidade norte-americana. No entanto, é um dos poucos que se atreveu a desafiar o status quo do país, denunciando as situações de exploração laboral e de injustiça social. Num período em que os Estados Unidos assumiam a hegemonia do mundo, atreveu-se, com humor e elegância, a envolver um país inteiro nas preocupações que latejavam nas regiões menos atendidas e mais esquecidas. Mais do que um protagonismo estelar, as personagens são comuns californianos, embora captem a dimensão nacional deturpada por muitos daqueles que a entoam.

John Ernst Steinbeck Jr. nasceu a 27 de fevereiro de 1902, na cidade de Salinas, na Califórnia. Das suas origens europeias, subsistia uma quinta familiar na Alemanha, denominada Grosssteinbeck. Na altura do seu nascimento, o seu pai era tesoureiro, enquanto a sua mãe era professora, nutrindo uma paixão pela leitura e pela escrita que contagiaria o seu filho. Membros de uma igreja local, a educação relativamente religiosa não impediria o agnosticismo futuro de Steinbeck, que passou vários dos seus tempos livres a trabalhar em ranchos perto da zona em que vivia, para além de conviver com vários trabalhadores migrantes no país, em especial na companhia de açúcar Spreckels. A tomada de conhecimento das suas condições menos propícias a uma vida sadia, para além de se aperceber do pior da humanidade, entre desespero, solidão e revolta perante a injustiça, deu-lhe o contexto necessário para redigir, em 1937, “Of Mice and Men”. Um livro protagonizado por dois migrantes obrigados a mudar de residência dentro do seu país por via das vicissitudes da Grande Depressão económica de 1929, em busca de oportunidades para readquirirem a sua estabilidade.

Steinbeck continuou a explorar os seus subúrbios e a trabalhar na empresa, onde tinha algum tempo para se dedicar à escrita. Entretanto, em 1919, partiu para a Universidade de Stanford para estudar Literatura Inglesa, da qual saiu sem se chegar a licenciar. Procurou visitar Nova Iorque, na qual tentou conciliar a escrita com alguns trabalhos, de forma a poder publicar a sua obra. Falhando, regressou à Califórnia, sendo guia turista e vigilante no Lake Tahoe. Aqui, conheceu Carol Henning, a sua primeira esposa, com quem se casou em 1930. Após algumas dificuldades de sustento económico, passaram a viver numa casa de campo perto da península de Monterrey, da propriedade do seu pai, que, em conjunto com a sua mãe, ajudaram John e a sua esposa a sobreviverem. Com a eclosão da Grande Depressão, procurou viver dos bens do mar e do campo, mas viu-se obrigado a solicitar os apoios económicos vindos do Estado-Providência, de Franklin D. Roosevelt, o novo presidente norte-americano. Seria um período complicado, mas que serviria para a inspiração de Steinbeck, que escreveria “Cannery Row” (1945). Um enredo que se situa no lugar em que viviam então, também sob a sombra da Grande Depressão, em que a organização de uma festa de agradecimento numa pequena comunidade leva a alguns problemas, que são desconstruídos nas histórias das diferentes personagens, entre estas um agricultor, um biólogo marinho e um grupo de sem-abrigo.

Esse biólogo marinho seria uma homenagem a Ed Ricketts, um amigo próximo do autor, que o ensinou muito sobre filosofia e biologia, sendo um dos proponentes do pensamento ecológico, e com quem partilhou a sua estima por música e por arte. A esposa de Steinbeck viria a trabalhar no laboratório de Ricketts e Steinbeck dedicar-se-ia a uma fase de grande produção literária. O primeiro romance que lança é “Cup of Gold” (1929), uma ficção histórica inspirada no navegador galês do século XVII Henry Morgan e na sua tomada da cidade do Panamá, para além dos seus instintos de galanteador. Seguiram-se “The Pastures of Heaven” (1932, um cruzamento de doze histórias num vale, o Corral de la Tierra, descoberto por um espanhol enquanto perseguia escravos indianos), “The Red Pony” (1933, os contos de um rapaz que vivia numa quinta na Califórnia com o seu pai, contos esses profundamente autobiográficos) e “To a God Unknown” (1933, inspirado na relação entre um proprietário de terra e essa mesma terra, relação essa que remonta para uma crença religiosa e até pagã).

O primeiro grande sucesso da sua literatura estava para chegar e surgiu em 1935, com “Tortilla Flat”. Narra as diversões e disposições de um grupo de amigos carenciados (os paisanos) de Monterrey após o fim da Primeira Guerra Mundial, ainda após a proibição da distribuição de álcool pelo país. A comparação destes a cavaleiros míticos, que procuram negar os padrões da sociedade americana em torno de uma vida boémia e de camaradagem é enunciada com ironia, que viria a funcionar como um antídoto em relação às agruras passadas na Depressão. Com a sua adaptação cinematográfica, Steinbeck teve a possibilidade de construir o seu rancho em Los Gatos, também na Califórnia. A Grande Depressão nunca sairia da mira de Steinbeck, em especial na literatura que continuou a redigir. Para além disso, cruzaram-se as tempestades de areia que viriam a afligir as pradarias americanas nos anos 30 (as Dust Bowl), que viriam a acentuar o caráter dramático das suas obras.

Para além dos migrantes de “Of Mice and Men”, escreveu “In Dubious Battle” em 1936, encabeçado por um ativista que tentava organizar os trabalhadores explorados em prol de lutar por condições de trabalho dignas e por salários ajustados ao seu esforço. Seguidamente, escreveu sobre as migrações que tão bem acompanhou, resultando em “The Grapes of Wrath” (1939), uma família do Oklahoma que, entre tantas outras, é forçada a mudar-se para o Oeste, sentindo as dificuldades da fome, da seca, das transformações industriais e da exploração bancária. Esta denúncia também foi feita num jornal estadual, no “San Francisco News”, numa série de artigos (“The Harvest Gypsies”) em que traçou um retrato temporal e atual dos trabalhadores migrantes, no durante e no depois da Grande Depressão. Para o teatro, escreveu “The Moon Is Down” (1942, uma ocupação de uma pequena cidade do Norte da Europa por uma nação que não é mencionada durante o período de guerra, similar à ocupação alemã da Noruega, um espírito de resistência inspirado no de Sócrates) e “Burning Bright” (1950, uma pequena história moral cuja apresentação procura a acessibilidade do comum autor e a adaptação imaginativa num palco, limitando-se a apresentar as falas e algumas orientações cénicas).

As sementes do seu sucesso estavam, assim, lançadas, em especial com “The Grapes of Wrath”, que se tinha baseado em artigos jornalísticos que tinha redigido. Tornou-se, rapidamente, num best-seller, conduzindo ao National Book Award e ao Prémio Pulitzer de 1939, para além de chegar ao cinema, numa adaptação dirigida por John Ford e protagonizada por Henry Fonda. Apesar dos rasgados elogios, gerou controvérsia na crítica que foi feita aos aspetos menos positivos do capitalismo, para além da compaixão nutrida pelos trabalhadores, levando a alguns laivos de censura, quando se tornou banido no distrito do qual a família do trama era originária. Para aliviar alguma da tensão acumulada, fazia viagens com o seu amigo Ed Ricketts, com quem colecionava espécies biológicas, futuramente vendidas pelo biólogo. Essa experiência foi contada em “The Log from the Sea of Cortez” (1951), numa expedição no Golfo da Califórnia que resultou numa influência proveitosa para a sua literatura e para o seu pensamento. Esta dimensão ecológica permaneceu viva com a referenciação de Ricketts em diversas personagens dos seus contos, nas quais se posiciona Doc de “Cannery Row” e de “Sweet Thursday” (1954, sequela deste, com a ação a passar-se no pós-Segunda Guerra Mundial).

Entretanto, o casamento com Carol não corria de feição e divorciaram-se, o que levou Steinbeck a casar de novo em 1942, desta feita com Gwyndolyn Conger, com que teve Thomas e John Steinbeck IV. Durante o período da Segunda Guerra Mundial, serviu como correspondente de guerra para o “New York Herald Tribune”, para além de trabalhar com o gabinete de Serviços Estratégicos do estado, antecessor da CIA. Entre outras movimentações, acompanhou o programa Beach Junipers, numa invasão a ilhas ocupadas pela Alemanha no Mediterrâneo. Vários dos seus escritos seriam compilados em “Once There Was a War” (1958), narrando as movimentações e o estado dos locais durante as mesmas. Este período viria a afetá-lo com alguma carga traumática, para além de acumular danos físicos por estilhaços de material explosivo. No seu regresso, redigiu dois filmes, tanto “Lifeboat” (1944, de Alfred Hitchcock, da qual solicitou a remoção do seu nome dos créditos, por acreditar em que o filme apresenta conotações racistas) como “A Medal for Benny” (1945), de Irving Pichel, com a colaboração do guionista Jack Wagner.

Em 1947, chega “The Pearl”, em que um mergulhador de pérolas explora, para além destas, a natureza humana, entre a ganância, as normas sociais e a presença do mal. Inspira-se numa história do folclore mexicano, de La Paz, onde se situa a obra, redigindo-a ao tom de uma parábola. Esta ligação ao México aprofundou-se ao ponto de redigir o enredo de “Viva Zapata”, filme de Elia Kazan, homenageando a história deste líder da Revolução Mexicana de 1910. Nesta fase, dedicou-se, ao lado do fotógrafo Robert Capa, numa viagem pela União Soviética e por várias das suas centralidades, cujo rescaldo se compilou em “A Russian Journal” (1948), uma obra conjunta destinada a revelar atitudes e modos de vida das gentes que viviam sob o regime. Foi um ano em que se tornou eleito para a American Academy of Arts and Letters, dando o mote para a sua última grande obra, que chega quatro anos depois, com “East of Eden”, inspirada no livro bíblico do Génesis, em especial na história de Caim e Abel.

Eu acredito que uma mulher forte pode ser mais forte que um homem, principalmente se tiver amor no seu coração. Creio que uma mulher que ama é indestrutível.
“East of Eden”

Uma obra que contrasta duas grandes famílias, inspirando-se na história do avô materno de Steinbeck, que quis dedicar o livro aos seus dois filhos, apresentando-lhes as sensações e dimensões de Salinas Valley, onde cresceu. Foi um período difícil na vida de Steinbeck, em que morreu Ted Ricketts, no ano de 1948, e onde foi confrontado com o pedido de divórcio Gwyndolyn, formalizado em agosto. Somente junho de 1949 traria um gosto diferente para Steinbeck, que vivia em depressão, quando conheceu Elaine Scott, atriz e uma das primeiras mulheres que se tornou gestora de palcos em teatro, com quem se casaria e com quem ficaria até ao fim dos seus dias.

No cinema, continuou a mostrar-se, sendo o narrador de “O. Henry’s Full House” (1952), um filme antológico de homenagem a esse autor, para além de contribuir para a adaptação de “East of Eden”, também da direção de Elia Kazan. Com a chegada dos anos 60, a sua vontade de viajar pela América floresce e fá-lo, ao lado do seu cão Charley, numa carrinha chamada Rocinante, inspirada no cavalo de Dom Quixote. As questões e introspeções que faz durante a sua viagem conhecem uma narração apropriada em “Travels with Charley: In Search of America” (1960). Essas reflexões acabam por se verificar na última ficção do autor, em “The Winter of Our Discontent” (1961), examinando o declínio moral do seu país e daqueles que o habitam. Apesar da crítica não ter sido positiva, seria galardoado, em 1962, com o Prémio Nobel da Literatura, “pela sua escrita realística e imaginativa, combinada com um humor simpático e uma perceção social perspicaz”. A sua nomeação foi bastante criticada, tanto no seu país como fora, e o discurso efetuado pelo autor acabou por responder, de forma subtil, a isso, enunciando “a importância de saudar a grandeza do coração e do espírito, em prol da coragem, da compaixão e do amor, na guerra infinita contra a fraqueza e o desespero”. Dois anos depois, seria condecorado com a Medalha Presidencial da Liberdade, pelo presidente Lyndon Johnson, que não o impediu de se deslocar ao Vietname, durante a guerra, em nome da revista “Newsday”, para reportar aquilo que considerava um empreendimento heroico, onde participavam os seus filhos, uma opinião que contrastava com a sua ideologia até então.

Estar vivo a sério é ter cicatrizes.
“The Winter of Our Discontent”

Esta viagem cruzou-se com a que fez a Tel Aviv, no Israel, tendo algumas raízes familiares no lugar onde morreu o seu tio-avô, na quinta que tinha em Mount Hope, numa insurreição agrícola no século XIX. Entretanto, a 20 de dezembro de 1968, por complicações cardíacas, para além de fumador inveterado, Steinbeck viria a falecer aos 66 anos de idade, acabando as suas cinzas enterradas no jazigo da família, em Salinas, assim como seria a sua esposa à data, em 2004. Para trás, ficou uma vida intensa, repleta e recheada de contactos multiculturais e imaginativos, numa fusão de histórias e de memórias muito peculiar, proveniente dos diversos migrantes que se deslocavam para a sua região.

Enquanto cresceu, ganhou uma voz mais consciente e autêntica, com um contacto direto e jornalístico das dificuldades dos seus pares pelo país, para além de crescentes interesses para lá da realidade puramente dita, como as conotações religiosas e mitológicas com as quais foi convivendo e que foi adaptando. Embora distanciado de visões doutrinadas, bebeu do anglicanismo, do catolicismo e do protestantismo para escrever, destacando a importância da transcendência espiritual das personagens perante as suas vulnerabilidades. Politicamente, estabeleceu contactos próximos com autores associados à esquerda, assim como jornalistas e figuras sindicais, sem deixar de se juntar à Liga dos Escritores Americanos, uma organização comunista. Na campanha anti-comunista encetada nos anos 50 pelo governo norte-americano, na forma do Comité de Atividades Antiamericanas, foi salvaguardado pelo dramaturgo Arthur Miller, seu amigo próximo, que não denunciou nenhum nome quando foi chamado a depor.

E é nisto que eu acredito: que a mente livre e criativa do homem individual é a coisa mais valiosa no mundo. E é por isto que eu estou disposto a lutar: pela liberdade da mente tomar qualquer direcção que queira, sem direcção. E é contra isto que eu vou lutar com todas as minhas forças: qualquer religião, qualquer governo que limite ou destrua o indivíduo. É isto que eu sou e é esta a minha causa. Posso até compreender que um sistema baseado num padrão tenha que destruir a mente livre, pois esta é a única coisa que pode inspeccionar e destruir um sistema deste tipo.

“East of Eden”

John Steinbeck tornou-se uma das vozes mais caraterísticas e diretas das pessoas esquecidas pelos ventos da depressão económica e das guerras mundiais. Os agricultores e os homens de trabalho conheceram, na voz de Steinbeck, um discurso direto, em que revelavam as suas atribulações e perturbações perante a adversidade imposta pela sociedade e pela Natureza. Prosseguiu, para lá dos limites da sua Califórnia, como um hino à humanidade, num caminho que não o celebrou como a representação puritana da identidade americana, mas como a verdadeira faceta da vivência nacional, do seu mais pobre e elementar membro.

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