O papel de Camilo Castelo Branco no auge da literatura portuguesa

por Lucas Brandão,    31 Maio, 2017
O papel de Camilo Castelo Branco no auge da literatura portuguesa

Quando falamos de romantismo literário em Portugal, os nomes de Almeida Garrett e de Camilo Castelo Branco surgem na proa deste chamamento. Enquanto o primeiro teve uma intensa vida pública e política, o segundo conheceu uma série de aventuras e de desventuras no decurso de todo o seu período de vida. Na essência de tantas peripécias, escreveu e amou. A sua musa Ana Plácido deu-lhe o mote para que a sua criação literária se autenticasse e se enriquecesse ao ponto de ser uma das mais apetrechadas no século XIX. A literatura de Castelo Branco adquiriu um paralelismo forte, toda ela a partir da própria vida do autor. Se os seus livros são dos mais apaixonados e celebrados em terras nacionais, assim o é graças a uma série de experiências arrojadas e apaixonadas.

Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco nasceu no dia 16 de março de 1825, na freguesia de Mártires, situada em Lisboa. Crescendo e maturando-se no seio de uma família aristocrática, de ascendência cristã-nova, contou com um forte contacto com a zona de Vila Real, de onde era originário o seu pai, nascido em casa dos Correia Botelho, figura que era propensa a figurar em escândalos e em atividades fraudulentas, para além de ser mulherengo. No entanto, foi cedo que se tornou órfão de mãe, com pouco mais de um ano de idade, e de pai, já com dez. A mãe, originária de uma família de pescadores, acabou por não ser registada como a progenitora do pequeno Camilo, graças aos esforços envidados pelos parentes do pai, que não queriam ver a sua descendência manchada. Esta precoce perda alimentou-lhe um crescente desencantamento com a própria vida, apesar de ser secundado por uma tia nortenha, e pela sua irmã Carolina Rita; herdando esta, com o seu irmão, duas propriedades nas zonas do Douro, para além de algumas economias. A educação seria, contudo, regular, fortemente sustentada nos ensinamentos de dois padres locais, em Vila Real, onde passaram a viver daí em diante.

A sua adolescência revelar-se-ia decisiva para acolher a literatura como a predileção da sua vida, ao tomar contacto com grande parte dos clássicos de idiomas latinizados, e com vários trabalhos eclesiásticos. Esse apreço pela matéria transmutava-se nas terras transmontanas, acasalando com a frugalidade da Natureza, e complementando a sua abordagem presencial e emocional. O casamento da sua irmã levá-lo-ia a viver na própria cidade de Vila Real, onde teve a oportunidade de desenrolar as suas primeiras novelas – “Novelas do Minho” (1869-1877), onde estão reunidas oito novelas em terras minhotas que têm influências denotadas da inspeção psicológica empreendida pelo francês Honoré de Balzac nos seus contos. O período da adolescência seria repentinamente marcado por uma paixão, e sucessivo casamento com Joaquina Pereira de França, uma filha de lavradores gondomarenses. Este matrimónio seria sol de pouca dura, com Camilo, pouco depois de regressar a casa da sua irmã, a viajar para Lisboa, onde se preparou para ingressar na Universidade.

A sua vida amorosa não ficaria estanque, vivendo esporádicos mas galopantes romances, e passando a viver com Patrícia Emília. Entretanto, e já em contacto com alguns dos principais órgãos periódicos, publicou correspondência sua, em que dirigia críticas ao governador civil de Vila Real, José Cabral Teixeira de Morais. É sugerido que as mesmas vêm no decurso das eventualidades da Guerra Civil em meados do século XIX, que opôs liberais a miguelistas, tendo sido espancado após as emitir nesses jornais provinciais. Camilo deixaria a sua companheira, passando a viver com a sua irmã perto de Sabrosa, em Vila Real.

Nessa ocasião, voltou a encarar os estudos, tentando e descurando Medicina na Escola Médico-Cirúrgica do Porto (muito graças às paixões vividas), mas seguindo a formação em Direito na mesma cidade. Esta vida académica culminou num registo boémio da sua parte, passando a frequentar os cafés e os salões mais frequentados pelos intelectuais de então, para além de assumir responsabilidades jornalísticas, incluindo na revolta da Maria da Fonte, em plena Guerra Civil. Tentando integrar-se na comunidade desses espaços, foi contra o autor Alexandre Herculano numa dissidência deste com o clero, a partir de um opúsculo (“A Questão, Eu e o Clero”, em 1850), despoletando a desconfiança deste em relação a Camilo. Foi esta uma fase na qual esteve envolvidos em diversos certames poéticos, sentindo-se preparado para publicar alguma poesia. Pouco depois de algumas desavenças pessoais, regressou a esta vida de convívio e de contacto com outros intelectuais, agora como um jornalista consolidado, e como um autor reconhecido nos locais da moda. No auge, fez parte do grupo dos “Leões”, que frequentava o café Guichard. Apesar de tudo, toda essa fama esteve na origem de algumas inimizades, que se sentiam incomodadas por referências menos positivas nas obras do escritor.

Praticamente a meio do século XIX, no meio de alguma divagação pessoal e profissional (escreveu “Anátema”, de 1850, que surgiu no jornal “A Semana”; para além de “Onde Está a Felicidade”, em 1856, assumindo a tendência de retratar cada vez mais a sociedade), travou conhecimento, e apaixonou-se perdidamente com Ana Augusta Vieira Plácido, que se viria a tornar esposa do empresário brasileiro Manuel Pinheiro Alves (futura referência de personagem em alguns dos seus contos), logo após se ter enamorado de uma freira do Mosteiro de São Bento de Avé Maria. Após este matrimónio, a crise do autor ganhou profundezas, e frequentou o Seminário do Porto, que deixaria pouco depois, descontente e desapontado com a vida clerical. Neste período, e aproveitando a sua experiência profissional, fundou dois periódicos religiosos, sendo eles “O Cristianismo” (1852), e “A Cruz” (1853). De regresso, e com a confiança e a obstinação em níveis elevados, despojando-se de regulações comportamentais religiosas, decidiu seduzir e fugir com Plácido, estando a monte por uns tempos, durante os quais passaram pelo litoral norte de Portugal. O casal acabou preso pelas forças policiais, pouco depois, pelos crimes de rapto e de adultério, numa acusação imputada pelo seu marido. Divulgado em diversas fontes de informação de então, tornou-se num caso mediático e apreciado pelos mais embevecidos e apaixonados, diante dos preconceitos e das predisposições rígidas da sociedade.

O casal acabou encarcerado na Cadeia da Relação, onde o seu pai já havia estado, e onde o próprio autor tinha ficado por onze dias, após roubar duzentos mil cruzados a um parente. Foi na sua segunda estadia lá que Camilo conheceu a mítica figura de Zé do Telhado, um salteador e frequente participante em revoltas populares, e que havia sido funcionário no próprio Estado, para além de ter recebido uma dupla visita do monarca D. Pedro V. Este período que vivenciou entre grades levou-o à redação de “Memórias do Cárcere” (1862), necessário para a sustentabilidade financeira dos seus parentes. O caso voltou a ser conduzido para os tribunais, tendo o casal sido absolvido pelo juiz José Maria de Almeida Teixeira de Queirós, pai do futuro autor Eça de Queirós, por não haver provas verificáveis do adultério, e pela fuga ter decorrido por mútuo consentimento.

“O amor, que vem procurado como sensação necessária à felicidade da vida, perde dois terços da sua embriagante doçura; porém, o amor inesperado, impetuoso e fulminante, esse é um abrir-se o céu a verter no peito do homem todas as delícias puras que não correm perigos de empestarem-se em contacto com as da terra.”

O Bem e o Mal (1863)

Tendo o autor 38 anos à data, o duo passaria a viver junto, em Lisboa, contando com o filho do anterior casamento de Ana Plácido, e com os dois que o casal viria a ter. Para além dos que teria com a sua companheira, o escritor teve outras duas, – a primeira viria a morrer precocemente –  fruto de relações com Joaquina e Patrícia (curiosamente, fugiu de casa de ambas após terem engravidado). O crescente agregado familiar levou a que Camilo escrevesse de forma desenfreada até à data da morte do ex-marido de Plácido, tendo ela herdado uma casa em São Miguel de Seide, situada em Vila Nova de Famalicão. Este era um lugar que o punha mais de perto em relação ao Porto, e à zona do Douro Litoral, não descartando as praias de Leça da Palmeira, e as livrarias e espaços de ebulição cultural portuenses (dirigiu, então, a “Gazeta Literária do Porto”). Devido a problemas de saúde, no ano de 1870, passou a viver em Vila do Conde, onde escreveu a peça “O Condenado” (1871), para além de diversos poemas e crónicas. A cidade seria, também, influente em obras como “A Filha do Arcediago” (1854), e “A Enjeitada” (1866), onde são algumas as referências geográficas, e as dedicatórias a nomes da vila. Limítrofe a esta, está Póvoa de Varzim, que visitou por diversas ocasiões, e onde se desdobrou no jogo, fonte de suporte para a sua concubina espanhola, uma bailarina. Aqui, conviveu com Eça de Queirós, Almeida Garrett, Alexandre Herculano, e António Feliciano de Castilho, para além de ser cúmplice do Visconde de Azevedo, visitando-o no seu Solar dos Carneiros.

Esta cidade seria ainda mais fatal para toda a estabilidade e sobriedade do seu caráter, assistindo à morte do seu filho Manuel, na precoce idade de 19 anos. No ano de 1885, seria nomeado, pelo rei D. Luís I, o primeiro Visconde de Correia Botelho, casando-se, três anos depois, com a sua grande companheira Ana Plácido. À data, havia sido eleito membro da Academia Real das Ciências, por Alexandre Herculano, que havia reatado até então, e nutrido um sentimento de admiração por ele. As dificuldades arrastar-se-iam, chegando a doença, e até um desapontamento em relação aos outros filhos, em quem não depositava grandes esperanças de um futuro bem-sucedido. As finanças não o ajudaram, vendo-se obrigando a leiloar a sua biblioteca pessoal de Lisboa, para além de não conseguir conter a criação de certas polémicas com contemporâneos escritores, críticos, e jornalistas, tendo comprado um revólver para se defender de um caso extremo.

Os problemas visuais com os quais se vinha deparando culminaram numa doença designada neurosífilis, que o levava a drásticas consequências neurológicas, e à total perda de visão, piorando com um acidente de comboio que teve. O espectro do suicídio crescia diante da sua (in)consciência enquanto as opções de cura se goravam, desprovido da capacidade de ler e de escrever. Mesmo assim, era acarinhado por figuras mediáticas de então, tal como o imperador do Brasil D. Pedro II, contando com uma homenagem aos seus préstimos profissionais na capital do reino. 1 de junho de 1890 chegaria com, no parecer do escritor, falsas expectativas dadas pelo médico, que lhe recomendou descanso, e um eventual tratamento futuro. Um tiro de revólver, o mesmo que havia adquirido para a sua preservação, acabou por penetrar na têmpora direita. Bastou isto para que, aos 65 anos, Camilo Castelo Branco se tornasse referência em plena transcendência incorpórea. O seu corpo foi de São Miguel de Seide até ao Porto, onde repousa no cemitério da Lapa.

“A felicidade é parecida com a liberdade, porque toda a gente fala nela e ninguém a goza.”

A profissionalização da literatura era algo impensável à data, com a criação literária a estar apenas salvaguardada com uma fonte de rendimento paralela, ou com raízes abastadas da parte de quem escrevia. Com uma média de seis livros por ano, Camilo conseguiu a proeza de ser o primeiro de língua portuguesa a conseguir essa independência exclusiva, com um registo diferente mas ciente das tendências contemporâneas às suas obras. Para isso, contribuiu a sua participação em várias editorias culturais de publicações como “O Panorama” (1837), “A Verdade” (1856, no qual foi diretor literário), “A Aurora do Lima” (1857, quando viveu em Viana do Castelo), “A Esperança” (1865-66), e “República das Letras” (1875). Ainda assim, e durante as quatro décadas em que escreveu mais de duzentas e cinquenta obras, a sua identidade não foi sempre veiculada. Assim, e no auge de uma obra rica e bastante apetrechada de vernáculos e de aspetos identitativos, nasceram alguns pseudónimos. Entre comédias, ensaios, folhetins, cartas, prefácios, e poemas, “Saragoçano”, “Manoel Coco”, ou “Anastácio das Lombrigas” foram algumas das assinaturas peculiares do luso.

Muita da literatura que redigiu, assim como as suas próprias crenças, associa-se aos ideais conservadores e tradicionais, ligados às estruturas sociais e políticas normais, sendo cético a mudanças e a novos prismas e posições. No entanto, e quando o amor entra em jogo, tudo isso é esquecido, interessando, somente, a vitória do sentimento em detrimento do bom enquadramento. O suporte da literatura clássica é notório, para além das raízes populares e regionais. Uma das inspirações é o seu contemporâneo Almeida Garrett, ilustre romantista da literatura portuguesa. Porém, não só do romantismo é feito Castelo Branco, desdobrando-se em explicações e fundamentações circunstanciais e personalizadas para o ser e estar de cada personagem. No fundo, muito daquilo que viveu acabou plasmado nas suas criações literárias, revelando, dessa forma, uma certa evolução diacrónica, que distingue e subdivide a sua mundividência por fases. Outras mais conservadoras e preocupadas com as aparências e com os preceitos, contrastando com outras menos pensadas e mais entregues ao discernimento dos sentimentos e das emoções.

O seu método narrativo caminha pelos enredos com subtileza descritiva, mas não descarta um certo empolgamento nos pontos mais comoventes dos mesmos, não prescindindo de um certo ideal romanesco. A autenticidade que partilha no próprio conto é um tanto ou quanto prosaica, patente nos diálogos e nas abordagens entre as várias personagens. Reagindo à emergente proposta de narrar e de contar, o autor é conduzido para aventuras com mais pendor realista. Este seu realismo assume-se com preponderância, mas com crítica, em “Eusébio Macário” (1879, parodiando aquilo que era a literatura de Eça e dos seus pares realistas, e colocando em confronto a irracionalidade emocional com a racionalidade material), e em “A Brasileira de Prazins” (1882, que mescla um falso D. Miguel na realidade de então com um romance, apresentando o contexto histórico nesse clima de guerra liberal). Avesso ao naturalismo, alegaria, porém, que não tentou criticar o realismo na sua obra, defendendo que até tentava seguir um percurso um tanto ou quanto tradutor da realidade existente. Não visando qualquer transformação na criação literária, no fundo, Camilo quis contar histórias, narrar episódios caricatos e interessantes, onde o coração se manifestava com mais intensidade do que o resto, mesmo sem esquecer certas pertinências de ordem moral. “A Queda de um Anjo” (1865) desvenda o humor satírico do autor, traçando uma visão humorística e analiticamente arguta do Portugal de então, diminuído ao passado.

Os temas debatidos por Camilo são, principalmente, de cariz social e humano, muito ligado às relações familiares e interpessoais. A ilegitimidade genealógica, assim como a orfandade, e a dialética coração-convenção, sofreram vários debates, assim como o anticlericalismo, e a própria evidência e valência metafísica do cristianismo. Em torno destas temáticas, está “Amor de Perdição” (1862), a principal obra do repertório do luso, que escreveu em apenas duas semanas. A disputa de famílias dos protagonistas, Simão Botelho e Teresa Albuquerque, obsta ao êxito da paixão que conjuga ambos num só, conduzindo o primeiro à perdição completa no resgate da sua amada. A personagem de Mariana surge, também, como o prolongamento dessa perdição a que o estádio mais desenvolvido do amor conduz. Dois anos depois, “Amor de Salvação” traz uma abordagem diferenciada da primeira, surgindo o amor como presença mais positiva e acalentadora da existência e do rumo humanos. Tendo como palco alguns dos locais onde viveu, amou, e se entregou aos limites da conduta humana, Camilo Castelo Branco conheceu aqui o apogeu da sua ilustre e multifacetada obra, conhecida por vários contextos onde o amor se catalisa em relação ao demais horizonte.

“O pão do trabalho de cada dia e o teu seio para pousar uma hora a face, pura de manchas: não pedi mais nada ao Céu. Achei-me homem aos dezasseis anos. Vi a virtude à luz do teu amor. Cuidei que era santa a paixão que absorvia todas as outras, ou as depurava com o seu fogo sagrado. Nunca os meus pensamentos foram denegridos por um desejo, que eu não possa confessar alto diante de todo o mundo. Diz tu, Teresa, se meus lábios profanaram a pureza de teus ouvidos. Pergunta a Deus quando quis eu fazer do meu amor o teu opróbrio.”

“Amou, perdeu-se e morreu amando.”

Amor de Perdição (1862)

Camilo Castelo Branco tornou-se um dos principais autores lusitanos, enquadrando grande parte da formação literária dos mais jovens, para além de influenciar uma série de autores mais ou menos apaixonados na construção literária. Colocou paixões, peripécias, e demais experiências ao serviço da arte, estabelecendo a vida como a principal fonte de toda a sua elaboração artística, realização empenhada e celebrada por tantos. A rapidez com a qual escrevia os contos levava a que os mesmos fossem um tanto ou quanto parcos, isto no que toca à sua qualidade conceptual e de condução da própria narrativa. No entanto, e apesar dessa estreita variedade, para além de uma certa monotonia e rotina estrutural, o português privilegiou o sarcasmo e a valorização do idioma luso, empregando-o com mestria e arte, num juízo conducente a uma literatura de proa. Sem descurar o método jornalístico no tratamento das incidências dos seus romances, houve muito amor, em combate e debate com o mundo, mas sem escudar a preponderância na união da humanidade numa moldável e mutável realidade.

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