O vulto consagrado de Alexandre Herculano

por Lucas Brandão,    24 Dezembro, 2017
O vulto consagrado de Alexandre Herculano
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Alexandre Herculano é um dos nomes mais relevantes em toda a linha da realidade portuguesa do século XIX. A sua toada liberal levou-o a ser fulcral na administração e na institucionalização dos grandes baluartes e portais políticos e sociais deste novo caminho nacional. Por mais que a monarquia subsistisse como órgão representativo do poder, as instâncias paralelas que foram crescendo contaram com os préstimos de Herculano, que, para além do que desenvolveu neste sentido, foi romancista e historiador. Redescobrindo o passado nacional, catapultou-se para uma ação devidamente concertada e alinhada com um futuro de novos e renovados valores.

Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo nasceu em Lisboa, no dia 28 de março de 1810, filho de relativos e funcionários do regime monárquico. A sua infância e a adolescência foram acompanhadas pelas invasões francês, para além do domínio inglês subsequente. França trazia o perfume das ideias liberais, o mesmo que motivou a subversão no ano de 1820, no Campo 24 de agosto, no Porto. Nesse período, frequentou um colégio católico, tendo uma formação muito clássica, embora nunca fechada para as inovações científicas recém-chegadas. Com o seu pai a padecer de cegueira, no ano de 1827, Herculano não pôde estudar na Universidade, mas dedicou esse tempo a estudar várias obras literárias em inglês, francês, alemão e italiano. No Palácio das Necessidades, foi estudando latim, retórica e lógica; e matemática na Academia da Marinha Real, com vista a uma carreira comercial. Para além disso, ingressou, na Torre do Tombo, num curso de Diplomática, estudando paleografia, que lhe seria muito útil nos tempos vindouros. Antes, havia completado o Ensino Secundário, em Humanidades, no Colégio de São Filipe Nery, ao abrigo dos Padres Oratorianos, bebendo do seu neoplatonismo filosófico e eclesiástico.

O palco contextual onde Herculano se via era de grande atribulação e agitação, num conflito marcante e latejante na História de Portugal do século XIX. Com somente 21 anos, sentiu-se encorajado moralmente para participar no levantamento do Quarto Batalhão de Infantaria, em 21 de agosto de 1831, numa altura em que D. Miguel já era rei de Portugal, de forma absolutista, e contra os ideais de muitos jovens liberais, que fervilhavam em impulsos socialistas, republicanos e cartistas. Fracassada, e embora mais conservador, viu-se obrigado a refugiar num navio francês, no qual viajou por Inglaterra, até atracar em Rennes, cidade gaulesa. Aqui, e, especialmente, em bibliotecas – a de Rennes e a de Paris – conviveria com as novas tendências do pensamento sociopolítico, para além da literatura romântica, já depois das sessões literárias da Marquesa de Aloma, que costumava frequentar. Foi um período em que começou a redigir poesia, de forma tradicional e até condescendente em relação ao monarca. No entanto, isso viria a mudar quando esta marquesa lhe incutiu uma série de obras literárias de autores franceses, como François-René de Chateaubriand, que teve a oportunidade de comunicar quando viveu em França. Para além disso, traria, de terras gaulesas, o prazer pela doutrina, inspirada por François Guizot, então ministro da Instrução.

Após viver um ano por lá, chegando a ser iniciado na maçonaria, alistou-se como soldado, tal como o autor Almeida Garrett, nos Bravos do Mindelo, expedição orientada por D. Pedro IV, na tentativa de derrubar o regime imposto pelo seu irmão Miguel. Assim, integrou o grupo que desembarcou, no dia 8 de julho desse ano, na praia da Memória, na tentativa de cercar a cidade do Porto. Nesse conflito, fez parte de várias ações onde colocou a sua vida em risco, conquistando mérito militar com os feitos granjeados. Para além, tinha, já, um pensamento devidamente amadurecido, envolvido entre o empirismo de John Locke, o idealismo de Friedrich Hegel, e o transcendentalismo filosófico de Immanuel Kant; para além de se interessar pela união de uma vivência cristã com uma realidade burguesa, idealizando o laicismo e a liberdade. Para além disso, herda, de algumas leituras, o gosto pela História, tanto da perspetiva administrativa, como da própria mundividência através das classes médias. Entre outras, inspira-se nas obras de Augustin Thierry, tendo este abordado a história e a evolução do Terceiro Estado, tanto no seu nível estrutural, como municipal. A sua visão de superação do povo e da classe burguesa emergente transmitiu uma herança percursiva a Herculano, de transcendência a partir dos ditames morais da sociedade, numa dinâmica de renovação filosófica, religiosa e socioeconómica.

A história pode comparar-se a uma coluna polígona de mármore. Quem quiser examiná-la deve andar ao redor dela, contemplá-la em todas as suas faces. O que entre nós se tem feito, com honrosas excepções, é olhar para um dos lados, contar-lhe os veios de pedra, medir-lhe a altura por palmos, polegadas e linhas. E até não sei ao certo se estas indagações se têm aplicado a uma face ou únicamente a uma aresta. 

“Cartas Sobre a História de Portugal” (1842)

Após a convenção de Évora-Monte, que depôs o rei D. Miguel, D. Pedro IV nomeou Herculano bibliotecário da Biblioteca Municipal do Porto, fundada recentemente com os fundos bispais, ficando até 1836, ano em que discordou do juramento à Constituição de 1822, mantendo-se fiel à Carta. Nesse mesmo ano, foi convidado a dirigir a revista semanária “O Panorama”, apolítica e de cariz científico e artístico, que orientou até 1868, durante trinta e um anos. Aqui, foi redator principal durante dois anos, e retomou o ofício em 1842, logo após redigir o seu célebre romance histórico “Eurico, o Presbítero” (lançado em 1844). Para além deste percurso, também ajudou a fundar mais um par de publicações, desta feita jornais, sendo eles “O Diário do Governo” (1837), “O País” (1851), e “O Português” (1853, onde cultivava a sua posição política crítica), para além da obra “A Voz do Profeta” (1837, um manifesto poético contra o emergente Setembrismo); e foi diretor da Real Biblioteca da Ajuda e das Necessidades quase até ao fim da sua vida.

“Eurico, o Presbítero”, uma das principais referências da literatura nacional, proporciona a história de um guerreiro visigodo, que se dedica à vida religiosa, tornando-se presbítero, após um amor aparentemente fracassado. No entanto, e perante as invasões muçulmanas, a personagem encara a misteriosa personagem de um cavaleiro mascarado, que porfia perante os intentos mouriscos. Com a ação a datar do século VIII, coloca a tragédia romanesca em perspetiva, diante da dedicação num conflito onde outros valores se levantam, para além de uma acérrima crença religiosa e da vida monástica. Um outro romance que lhe seguiu as pisadas foi “O Pároco da Aldeia” (1851, em volume), que bebeu das várias iniciativas investigativas de Herculano, dentro das quais abordou a história da Coroa e dos seus bens, para além dos forais, no decorrer dos seus estudos medievais.

Numa fase em que as dissensões liberais se acentuavam, dividindo os cartistas – fiéis à Carta Constitucional – e setembristas – defensores da supremacia da soberania popular – Herculano manteve-se relativamente cauteloso, e apoiante da Carta. Porém, e perante o cenário da Regeneração, recusou fazer parte desta nova governação, mais condizente com os seus ideais, mas perante uma condução menos positiva de Fontes Pereira de Melo; e preferiu, aos poucos, demarcar-se dos cenários de grande atividade política e literária. Em 1838, seria adepto da nova Constituição, de cariz menos revolucionário e mais moderado. Este foi um ano em que também publicou um dos seus livros de poesias, sendo este “A Harpa do Crente”.

O amor do poeta é maior que o de nenhum homem; porque é imenso, como o ideal, que ele compreende, eterno, como o seu nome, que nunca perece.

O seu percurso profissional permaneceria ativo no Jornal da Sociedade dos Amigos das Letras (1836), para além das edições da Revista Universal Lisbonense (1841-59), da Revista do Conservatório Real de Lisboa (1842), e, postumamente, da Renascença (1878). Para além de tudo isto, esteve no Parlamento, eleito pelo círculo do Porto, como deputado do Partido Cartista, embora não se sentisse de feição nestas lides. Aqui, viria a combater os esforços contra a liberdade de imprensa, causa pela qual sempre se bateu, para além de incentivar a prossecução de uma reforma do ensino popular. Eventualmente, viria a recusar um convite para se tornar Inspetor Geral dos Espetáculos, outrora assumido por Almeida Garrett. Entretanto, realizaria uma das principais obras relativamente à história do país, sendo ela lançada em volumes, e designada “História de Portugal” (1846-53). Esta é o rescaldo de uma vasta e imensa exploração bibliográfica por parte de Herculano, resultante do seu trabalho profissional como guarda-mor da Torre do Tombo, mas também o primeiro passo para a historiografia científica se consolidar em Portugal. Tudo isto sem nunca chegar a frequentar estudos superiores, apesar do rigoroso método científico inerente a todo o caudal bibliográfico criado.

Algumas questões levantadas, como a desmistificação de mitos relacionados com a religião, geraram grande polémica à data. Os confrontos com o clero de então foram avultados, resultando em algumas respostas publicadas em opúsculos, embora Herculano fosse católico. A oposição da presença clerical no governo surgia como o principal argumento do autor, que também estudou com profundidade os métodos da Inquisição nacional – “História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal” (1854). No seguimento deste trabalho historiográfico, “Lendas e Narrativas”, de 1851, trazem um conjunto de contos e novelas abordados por Herculano, de um ponto de vista ibérico, com especial incidência na Idade Média. A valia da sua obra foi, no entanto, incontestada na comunidade científica, que o convidou a incorporar a Academia Real de Ciências de Lisboa, tornando-se sócio efetivo em 1852, e vice-presidente em 1855. Desta, recebeu a incumbência de recolher documentos descuidados e dispersos por vários cartórios conventuais nacionais, em especial no Norte, de importância assinalável, e que começam a conhecer o público em geral em 1856 – os “Portugalie Monumenta Historica”. Preterindo condecorações, deixou-se, somente, ser presidente da câmara de Belém, por dois curtos anos (1854-55), até consolidar um desencantamento que seria de curta duração.

De regresso à atividade política, e abandonando a Academia – para onde regressaria um ano depois – é um dos fundadores do Partido Progressista Histórico, no ano de 1856, a partir do qual critica a ligação entre a Santa Sé e os órgãos de poder soberano. Eventualmente, tornar-se-ia ainda mais decisivo naquilo que é a administração nacional, ao participar na redação do primeiro Código Civil Português (1860-65), instrumento que agrupa as normas relativamente às relações jurídicas de ordem privada. Entre várias componentes, propôs e viu aceitada a introdução do casamento civil – “Estudos sobre o Casamento Civil” –  em simultaneidade com o pré-existente religioso. Neste período conturbado, onde surgiam vozes a favor do iberismo, Herculano insurgiu-se, participando na Comissão Central 1º de Dezembro de 1640, de cariz patriótico.

O português casar-se-ia no dia 1 de maio de 1867, com Mariana Hermínia da Meira, companheira de juventude, com quem viveu na célebre quinta de Vale de Lobos, onde se dedicou à agricultura, e criou o reputado Azeite Herculano. Neste período, voltou-se para dentro, numa fase de maior atenção espiritual, mas sempre a mostrar laivos de um espírito contestatário eterno, nos seus vários opúsculos, que seriam, pouco tempo depois, coligidos e publicados. Para além disso, reforçaria a afeição em relação aos camponeses e à burguesia rural, com quem partilhava ideais, e clamava pelos seus direitos, à imagem dos historiadores franceses a quem tanto se associou. Alexandre Herculano faleceria a 18 de setembro de 1877, sem filhos, vitimado por uma pneumonia, sem ter conseguido retribuir a visita que o Imperador do Brasil D. Pedro lhe fez à data.

Num ponto de vista literário, o lisboeta, tanto como autor, como jornalista ou historiador, tornou-se num polemista, pelo método científico que derivava tanto do celebrizado e reconhecido pelas instâncias clericais. Para além disso, as posições sociopolíticas assumidas causavam ruturas e discussões nos próprios órgãos de poder, muitas delas acompanhadas pelo seu eu jornalístico. Não obstante, e ao lado de Almeida Garrett, foi um dos responsáveis pela importação do Romantismo literário, diferenciando-o com um forte contexto e com uma grande base histórica, com influências do escocês Walter Scott e do francês Victor Hugo. Nessa discussão, colocou patente a frequente falta de sintonia entre o homem e o seio social onde se enquadrava, em sociedades ainda algo retrógradas e tradicionalistas para o seu tempo. Complementava, desta feita, o que escrevia, com comentários individuais, de cariz político e filosófico, associando o passado narrado com o que se ia passando no seu tempo, no século XIX. Para além de tudo isto, discutiu o legado passado e o caudal coevo do Romantismo, deixando essas reflexões no Repositório Literário do Porto (criado em 1835), voltado para as Ciências Médicas e para a Literatura.

Com isto, foram seis textos em prosa publicados, para além de alguma poesia e peças de teatro, em que as reconstituições cénicas e contextuais efetuadas são minuciosas ao detalhe, revivendo ambientes e costumes passados, recuperando, fielmente, épocas vividas. A complementar, a fértil imaginação do autor, com os rendilhados tramas, aliada à capacidade singular de descrever, com pormenor, toda essa esfera material e imaterial de outros tempos, levou a que se sagrasse num dos certos marcos da ficção em prosa nacional. O seu romance histórico, por se afastar tanto dos tempos presentes, levou a que autores subsequentes, de gerações seguintes à sua, tentassem aproximar o contexto espácio-temporal da narrativa ao século em que viviam.

Sem cargos, sem honras, sem grandes distinções. Alexandre Herculano valeu sempre mais pela obra que criou, pelo trabalho que desenvolveu, pelas inovações que introduziu. Viajado conhecedor, trouxe uma nova inspiração burocrática e romântica para as instâncias formais e informais, políticas e culturais do país. De viagens históricas, de descoberta real e redescoberta fictícia do ser de Portugal, o autor desdobrou-se em todo o campo de possibilidades de potenciar e de promover uma sociedade mais ligada às estruturas reais, tal e qual como as conhecemos atualmente. Herculano é um nome consagrado e relembrado nas mais diversas cidades lusitanas, emprestando a sua designação a uma série de instituições do saber e de ligações rodoviárias. É desta forma, sabedora e estimadora, que Alexandre Herculano é lisonjeado e perpetuado.

Eras tu, eras tu que eu sonhava;
Eras tu quem eu já adorei,
Quando aos pés de mulher enganosa
Meu alento em canções derramei.

Se na terra este amor de poeta
Coração há que o possa pagar,
Serás tu, virgem pura dos campos,
Quem virá a minha harpa acordar.

Como a luz duvidosa da tarde,
Quando o Sol leva ao mar mais um dia,
Reverbera poesia e saudade
Na alma imensa de um rei da harmonia;

Tal poesia e saudade em torrentes
No teu meigo sorrir eu aspiro,,
E no olhar que me lanças a furto,
E no encanto de mudo suspiro.

Para mim és tu hoje o universo;
Soa em vão o bulício do mundo;
Que este existe somente onde existes;
Tudo o mais é um ermo profundo.

No silêncio do amor, da ventura,
Adorando-te, oh filha dos céus,
Eu direi ao Senhor: tu m’a deste:
Em ti creio por ela, oh meu Deus!

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