O percurso artístico de Maria Helena Vieira da Silva e de Árpád Szenes

por Lucas Brandão,    24 Janeiro, 2022
O percurso artístico de Maria Helena Vieira da Silva e de Árpád Szenes
“A Partida de Xadrez” (1943), de Maria Helena Vieira da Silva
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Maria Helena Vieira da Silva e Árpád Szenes formaram uma das parelhas mais criativas do século XX na pintura. Aliás, o seu legado ficou perpetuado na fundação que abrange o nome de ambos, com essa vocação investigativa e de divulgação do seu trabalho. Szenes, nascido a 1897 e falecido a 1985, conheceu Vieira da Silva, nascida a 1909 e falecida a 1992, na cidade de Paris, onde ambos procuraram encontrar-se como artistas e se firmar como parte das novas modernidades criativas. Foi uma carreira que os uniu ao longo da vida e que os eternizou, juntos, em torno da mesma instituição, com a finalidade de ser, a cada dia, a cada ano, mais arte e mais vanguardismo.

Vieira da Silva nasceu em Lisboa e foi lá que começou os seus estudos, na Academia de Belas Artes. No entanto, antes, e por influência do seu pai, que era diplomata, viajou um pouco por todo o mundo, entrando em contacto com diferentes grupos artísticos de cariz vanguardista, desde os futuristas até à companhia Ballets Russes. No entanto, como mestres, teve a sua conterrânea Emília dos Santos Braga, também ela uma pintora de renome nacional à data, e Armando de Lucena, mas também o professor de Henri Matisse, o francês Antoine Bourdelle, que lhe ensinou a esculpir, entre outras referências em Paris, para onde foi em 1928, com 21 anos, para estudar escultura, embora mudasse de rumo um ano depois, quando se decidiu focar na pintura. Preparou, desde logo, as suas obras para expor e conheceu o seu futuro marido, o húngaro Árpád Szenes, com quem se casou em 1930 (contrairiam matrimónio religioso em 1936, fruto dos ataques antissemitas que começavam a grassar na Europa, já que Szenes era judeu). Tornar-se-iam ambos apátridas e assistiriam a Vieira da Silva a expor no Salon d’Automne e no Salon des Surindénpendants.

12 anos mais velho, Szenes havia chegado a Paris três anos antes, após uma carreira que começou no seu país de nascença: a Hungria. Nasceu num seio familiar burguês, em Budapeste, crescendo ao lado de alguns dos mais célebres artistas do seu país naquele tempo. Ganhou, assim, a paixão pela arte de pintar e, na I Guerra Mundial, havia já feito retratos de soldados que tinham falecido em pleno combate. Assim, aos 22 anos, começou a estudar formalmente numa escola de livre acesso, para a qual começou a fazer os primeiros trabalhos e nos quais foi-se inspirando nos traços simbolistas e naturalistas dos seus conterrâneos. As tradições do país em que vivia começaram a deixar de ser os seus temas enquanto foi conhecendo mais a Europa, acabando por se fixar em Paris no ano de 1925. No entanto, pouco ou nada tinha no bolso para se sustentar, pelo que, à imagem dos seus compatriotas que lá viviam, procurava apoio para poder desenvolver a sua arte. Com exposições pontuais e num estilo de vida boémio, acabou por se inscrever na Académie de la Grand Chaumière, onde conheceu a sua futura esposa Partilharam, assim, convivência com vários dos artistas emergentes daquele tempo, incluindo Joan Miró ou até Max Ernst; para além de terem beneficiado da amizade com a negociadora de arte Jeanne Bucher para se posicionarem neste meio. Viviam a típica força boémia inerente àqueles dias na capital francesa, com lugar a muita inspiração artística. De destaque, o ateliê na Villa des Camélias e o Boulevard Saint-Jacques, em Montparnasse, onde usufruíam desse ambiente caloroso e frenético, inclusive da junção a grupos antifascistas.

“A Partida de Xadrez” (1943), de Maria Helena Vieira da Silva

Assim, já juntos, foram saltando de lugar em lugar, partindo de França para a Roménia e, depois, para Portugal, no ano de 1939, com o advento da Segunda Guerra Mundial, tendo estado pelo país entre 1935 e 1936, onde Vieira da Silva faria uma grande amizade com a escritora Agustina Bessa-Luís e onde exporia no 1º Salão dos Independentes, ainda em 1930, na Sociedade Nacional de Belas Artes, ao lado dos nomes mais conceituados da modernidade artística portuguesa de então. Aqui, passaram alguns meses, numa pequena habitação no Alto de São Francisco, onde montaram o seu novo ateliê. Foram meses nos quais Szenes chegou a fazer uma exposição em nome próprio e onde Vieira da Silva, tendo colaborado com o seu marido, foi explorando o diálogo entre os retângulos e o uso da cor, num jogo que procurava desconstruir a tridimensionalidade perante o convite feito pela abstração, encantando-se com a arquitetura de interiores (já se havia fascinado com os exteriores) e com o estudo a fazer com a perspetiva, embora linear mas sempre disposta a iludir com marcações que apelam à imaginação.

No ano seguinte, após verem um visto de residência ser-lhes negado no país da artista, partiram para o Brasil, possuindo passaportes diplomáticos, e, lá, foram desenvolvendo um grande grupo de amigos, essencialmente artistas com ideais modernistas e que muito admiravam as composições densas e complexas da pintora. Entre estes, Carlos Scilar, Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles. Essencialmente, eram mais os poetas e os escritores do que os pintores e os escultores, ao contrário da sua vivência parisiense, o que não os impediu de adquirir um forte pecúlio artístico, desde temas referentes à natureza, passando pelos retratos dos seus amigos, para além de terem, até, criado uma escola local, a Silvestre, de formação de artistas locais, e que seria, de igual modo, o ateliê do casal.

“Banquet” (1953), de Árpad Szenes – Fotografia de Jean Louis Losi

Por sua vez, Vieira da Silva materializava o seu estilo decorativo com grandes padrões abstratos, sempre com uma ideia de jogar com o espaço e de o manipular, tornando-o falsamente largo. Fá-lo-ia, em muito, com o uso de manchas de cor em fundos neutros. No entanto, passou a experimentar usar mais formas geométricas e de as estender no espaço, com arranjos confusos e dispersos, apoiando-se de padrões detalhados e minuciosos, de forma a criar arquiteturas fabricadas e, a si assentes, superfícies com padrões e com referências luminosas, entre fintas de linhas complexas. Usufruía de uma aura que importou dessa convivência com a realidade do Brasil e aproveitou as suas referências visuais para construir um espaço que, não obstante as visões frontais, as cruzava com planos na diagonal e deambulava entre esse abstracionismo e um convite a tornar-se mais naturalista.

É uma adaptação que faz em todos os lugares por onde passa, tanto da parte de Vieira da Silva, como de Szenes e, como homenagem, muitas das cidades por onde passaram ficaram com os seus nomes eternizados em muitas das obras de ambos os artistas, para além de momentos e de lugares dentro dessas cidades. Os espaços, embora intermitentes, tanto pela força do tempo, como pela materialidade em degradação, são feitos para a perpetuação, numa atualização constante ao sabor da continuidade que tudo coloca em causa. É uma temporalidade identitária, personalizada, aquela que é captada e exprimida. Algo que se evidenciou em obras, como “Kô & Kô” (1933), “A Partida de Xadrez” (1943), “Maisons” (1946), “Bibliothèque” e “Interieur à la spirale” (1949), “The Corridor” (1950), “O Passeante Invisível” (1951), “La Rue” (1956), “A Biblioteca em Fogo” (1974) e “Passage of the Mirrors” (1981).

“Bibliothèque” (1949), de Maria Helena Vieira da Silva

Com o final da Guerra, voltaram, em definitivo, para a cidade de Paris, depois de muitas viagens pela América Latina e até Nova Iorque, entre exposições individuais e coletivas. Aqui, Szenes, embora pintasse, permaneceu a dar aulas, enquanto Vieira da Silva dava asas à sua força criativa. Passaram a viver e a trabalhar entre o meio citadino, entre uma nova casa em Montparnasse – onde montam estúdios independentes – e a casa do campo de Yèvre-le-Châtel, onde ambos tornaram o seu trabalho mais dotado de espiritualidade, reflexo dos silêncios e das contemplações que sugeriam e suscitavam. Viajaram muito pelo mundo, entre exposições de Estocolmo a Washington, entre prémios nas bienais de Caracas e de Veneza, até à década de 1980, em que as retrospetivas se acumulavam e se estendiam do Senegal à Argentina e à Dinamarca. Szenes pintava, também ele, grandes séries de aguarelas e de guaches, de formas geométricas padronizadas, para além de retratos da sua esposa. Tornou-se, ele, cada vez mais limpo na sua expressão, com menos complexidade no uso da cor, apostando numa palete mais pálida.

Já Vieira da Silva caminhava para dimensões cada vez mais complexas e densas, em muito associadas ao Cubismo e ao abstracionismo, embora também com o expressionismo abstrato e o tachismo (o equivalente europeu ao expressionismo abstrato, embora mais cuidado e pensado, não tão aguerrido e intuitivo). Dava-se bem nessa criação de autênticos labirintos e de ângulos visuais que colocavam em perspetiva e em alegoria os enredos visuais dos edifícios e dos objetos, fazendo-se valer de desenhos, de pinturas e de formas para outros suportes, como a serigrafia, a litografia, cerâmica, a tapeçaria e até na elaboração de vitrais (por exemplo, na igreja de Saint Jacques, em Reims, ao lado do checo Josef Sima; e que é parcialmente convertida para a tela nos tons vermelhos e castanhos de “A Biblioteca em Fogo”, datada de 1974). Em ambos, estava esse desejo pelo captar das coisas mundanas e familiares, muitas vezes com manifestações de dor e de saudade, tendo, portanto, intimidade e busca pessoal inerentes, optando, cada um, por dar asas à sua inspiração artística para alcançar as suas próprias representações, criando os seus próprios universos de criação e de recriação.

A importância de se manterem distantes na sua expressão, apesar de trocarem, com frequência, opiniões e perspetivas, primava pela importância que ambos atribuíam ao zelar pelos seus diálogos estilísticos. Isso, todavia, não poderia sobrepôr-se à necessidade da vivência quotidiana, que reflete as escolhas e as opções de cada percurso artístico. Do seu lado, a artista tornou-se cada vez mais proeminente, capaz de jogar com as articulações do espaço, cortado entre pontos, contrapontos, linhas e planos de diferentes dimensões, gerando tamanhos labirintos visuais. Isto porque Szenes, mais fechado em relação ao seu processo criativo e à forma como dialogava com o seu trabalho, se tornou menos propenso a ser compreendido, focando-se nas tais “paisagens imaginadas”. Paisagens que se fechavam em linguagens de silêncio e focando-se num processo quase alquímico, onde o pouco dizia o imenso a que almejava. Esta distinção de caminhos levou a uma diferença de repercussões e, claro está, em honras.

Vieira da Silva, que se tornaria cidadã francesa em 1956, dez anos depois, já depois de ganhar um prémio na Bienal de São Paulo (1961, depois o de vencer em 1953), arrecadou o Grand Prix National des Arts, atribuído pelo governo, sendo a primeira mulher a conseguir tamanho feito, para além de se juntar à Ordre des Arts et des Lettres, em 1962. 13 anos depois, tornar-se-ia cavaleira da Legião de Honra do país. Szenes, por sua vez, embora não condecorado e tão pouco celebrado, faria questão de doar vários dos seus trabalhos aos museus da capital do seu país, Budapeste. No entanto, fazia questão de acompanhar a sua companheira, buscando os âmagos do tempo e do espaço, recorrendo à neutralidade da cor e à soltura das linhas e das formas, que Vieira da Silva abdicava, em prol das suas construções e reconstruções geométricas e planimétricas, entre escalas e perspetivas várias em diálogo.

“Passage of the Mirrors” (1981), de Maria Helena Vieira da Silva

A morte de Szenes, em 1985, faria com que, após a queda do comunismo na Hungria, Vieira da Silva tomasse a iniciativa de criar a fundação Árpád Szenes-Vieira da Silva, com vista à formação das novas gerações de artistas e à investigação nesse ramo do saber e do criar. Apesar de permanecer em Paris, não abdicaria das suas raízes geográficas, sendo responsável, entre outras intervenções, pela decoração da estação de metro da Cidade Universitária, em 1988, a partir do recurso aos azulejos. Aliás, antes, havia feito cartazes a saudar a Revolução de Abril e a democratização do seu país, a convite da poeta e amiga Sophia de Mello Breyner, para a Fundação Calouste Gulbenkian. Receberia, também, a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant’Iago de Espada, em 1977, a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, em 1988, entre outros galardões e retrospetivas da sua obra, tanto em museus portugueses, como estrangeiros. Vieira da Silva faleceria sete anos depois, em 1992, com 83 anos, granjeando um estatuto de grande celebridade em torno das mais relevantes instituições culturais do mundo, tendo peças suas no Museum of Modern Art, no Guggenheim, estes em Nova Iorque, na Tate Gallery, em Londres, no Grand Palais, de Paris, na Fundação Calouste Gulbenkian e no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, em Lisboa. No entanto, não assistiria ao nascimento da sua fundação, que, até hoje, alberga grande parte do repertório de ambos os artistas.

Maria Helena Vieira da Silva e Árpád Szenes notabilizaram-se, assim, com a sua arte pictórica, com muito espaço para a investigação dentro da própria criação. De um lado, geometria e muita conversa entre planos, perspetivas e linhas difusas, embora sempre com uma realidade pensada e definida para versar na tela ou em qualquer outro suporte; do outro, uma busca crescente para chegar mais longe, numa intimidade quase fechada e bloqueada ao exterior. Porém, o entendimento de ambos acompanhou-os pelo mundo fora, levando, de todos os cantos e recantos que partilharam, impressões indeléveis para a sua expressão artística. É uma arte do dia-a-dia, embora com figurações vanguardistas e modernistas, mas que se tornaram percetíveis e decifráveis no estudo dos seus caminhos e na chegada aos seus fins. Uma arte que, por mais pessoal que era, se tornou, enfim, verdadeiro diálogo universal entre as ínfimas visões do que é o real.

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