O protagonismo do socialista Mário Soares em Portugal
Este artigo faz parte de uma série de textos sobre figuras políticas relevantes da sociedade portuguesa. Álvaro Cunhal, Diogo Freitas do Amaral,Francisco Sá Carneiro, Mário Soares, Miguel Portas e Ramalho Eanes foram as figuras escolhidas.
Quando se fala da democracia que procedeu o 25 de abril, tem de se falar, inevitavelmente, de Mário Soares. Foi o primeiro cabeça de partido a conseguir estabilizar-se na liderança de um governo em Portugal, já quase dez anos depois da Revolução. Aliás, dez anos volvidos e já era Presidente da República, cargo que teve durante, precisamente, dez anos. Não é difícil assumir que, nos mais de quarenta anos da história do partido, Mário Soares é o principal rosto da história do Partido Socialista. Foi, assim, o responsável máximo por, entre diferentes transformações que o tempo e os atores trouxeram, importar o socialismo em Portugal, mais revisto à imagem da Europa Central do que da visão mais radical cunhada por Álvaro Cunhal e o seu Partido Comunista. Todavia, uma causa os uniu, talvez a maior de todas elas: a liberdade.
Mário Alberto Nobre Lopes Soares nasceu a 7 de dezembro de 1924, falecendo aos 92 anos, no dia 7 de janeiro de 2017. Mário foi o segundo filho de um antigo padre, um antigo deputado e governador civil de vários distritos do país nos inícios do século XX, o fundador do Colégio Moderno de Lisboa e ex-ministro das Colónias na Primeira República, João Lopes Soares. Ainda assistiria ao casamento dos seus pais, visto que o seu pai ainda era padre quando a sua mãe engravidou. A fé católica seria uma permanente na educação de Mário Soares, embora não interferisse com as suas metas académicas. Este viria a licenciar-se por duas ocasiões, uma em Ciências Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e outra em Direito na Faculdade de Direito da mesma universidade. Sem poder seguir como professor, acabaria por se juntar aos pais na gestão do Colégio Moderno, colégio fundado em 1936 com um forte pendor familiar e dialogante, com a missão de contribuir com uma educação de conhecimento mas também de valores e de princípios humanistas, embora forçado a restringir-se aos parâmetros do Estado Novo. A gestão do colégio é, até hoje, familiar, tendo passado pela esposa de Mário, Maria de Jesus Barroso, e, atualmente, é gerido pela filha de ambos, Isabel Barroso Soares.
No entanto, Mário viria a conseguir uma licença para ser docente no ensino particular enquanto começou a exercer advocacia. Alcançaria uma vitória sobre Marcello Caetano num caso de disputa de ações da então Companhia União Fabril (CUF), um grande conglomerado de empresas na zona de Grande Lisboa. No entanto, a sua missão mais politizada acabaria por se rever na defesa de vários presos políticos em vários tribunais do país, entre os quais o seu futuro rival Álvaro Cunhal, e na da família de Humberto Delgado durante a investigação relativa ao homicídio deste por parte da PIDE. De igual modo, teria um papel importante na defesa da causa de Maria Pia de Saxe-Coburgo e Bragança na linha sucessória do último monarca do país, D. Manuel II. Mas é a veia política que se começa a destacar, tendo sido preso por mais de dez ocasiões. Numa delas, casar-se-ia por procuração, no ano de 1948, com Maria de Jesus Barroso.
Da defesa de Cunhal por parte de Soares ficou uma amizade que o viria a puxar para o Movimento de Unidade Nacional Antifascista (MUNAF) e para o MUD (Movimento de Unidade Democrática), os primeiros movimentos de contestação ao regime com alguma proporção e promoção. Acabaria, em 1949, por ser secretário da Comissão Central da candidatura de José Norton de Matos à Presidência da República. No entanto, algumas falhas de entendimento por parte de Soares e do Partido Comunista – que estava por detrás do MUNAF – acabariam por ditar o afastamento do primeiro do PCP e por se tornar responsável por um novo órgão de oposição. Criou-se, assim, a Resistência Republicana e Socialista no ano de 1955, que viria a reunir elementos dissidentes do Partido Comunista, como Fernando Piteira Santos ou José Magalhães Godinho; que viria a ser um elo de ligação ao Diretório Democrato-Social, uma organização de protesto ao regime no qual se encontravam referências da sociedade civil, como Jaime Cortesão ou António Sérgio. Apoiante de Humberto Delgado à data da sua candidatura, em 1958, fez parte da redação do Programa para a Democratização da República, no ano de 1961. Tratava-se de um documento que procurava traçar as linhas norteadoras de uma transição de regime, abordando os diferentes setores, desde a saúde, a habitação, o trabalho, a economia, o ensino, a cultura, a justiça, a sociedade e a administração civil. Todos os seus signatários acabariam por ser confrontados com um processo-crime, que motivou algumas detenções.
Eu sou contra todas as ditaduras e a favor da liberdade. Sem liberdade política nada se passa, só se entra, a prazo, em decadência. O grave é que pode haver recuos civilizacionais. No passado, como a história nos ensina, já houve muitos.Entrevista ao Diário de Notícias, datada de 29 de dezembro de 2011.
Para sustentar a sua presença, procurou colocar-se na Assembleia Nacional ao lado da Comissão Democrática Eleitoral, que falhou. No ano de 1968, estalou o caso Ballet Rose. Mário Soares seria o responsável por divulgar a um jornalista do Sunday Telegraph um caso de prostituição de grandes proporções, que colocava elementos do executivo de Salazar e importantes homens de negócios próximos da atividade do regime no seu núcleo. No entanto, aquilo que era denunciado era de extrema gravidade, tendo em conta que seriam orgias destes mesmos indivíduos com crianças entre os 8 e os 12 anos. Tal escândalo, que daria origem a uma série na RTP, transmitida entre 1997 e 1998, levou a que o Estado Novo deportasse Mário Soares para São Tomé sem ter sido confrontado com um julgamento. Passou, assim, a ser uma das situações que despertou a maior atenção dos órgãos de comunicação social do estrangeiro. O regresso de Soares só seria possível com a chegada de Marcelo Caetano ao poder, alguém com quem já se havia confrontado.
Os desaguisados entre os comunistas e os futuros socialistas aumentavam, pelo que a oposição ao regime se fraturava. O anticomunismo pairava em Soares e no seu grupo, que foi patente na formação na qual esteve, a Comissão Democrática de Unidade Eleitoral (CEUD), que reunia a Comissão Eleitoral Monárquica (Francisco Sousa Tavares e a sua esposa, Sophia de Mello Breyner, embora esta não fosse monárquica, e Gonçalo Ribeiro Telles) e a Ação Socialista Portuguesa. Esta seria o mote para o futuro Partido Socialista (PS), tendo sido organizada em Genebra, na Suíça, em novembro de 1964. Mário Soares juntou-se ao engenheiro Manuel Tito de Morais e ao economista Francisco Ramos da Costa. Um forte revés seria a prisão de Francisco Salgado Zenha e de Jaime Gama, ambos da então CEUD, no ano de 1970, que obrigou Soares a um exílio, após um ultimato dado pela PIDE: ou a emigração ou a prisão.
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Em França, teve funções docentes em Vincennes e na Sorbonne, ambas universidades em Paris, tendo também feito parte do Banco Franco-Português como consultor jurídico. Nunca deixou de lado a causa da liberdade em Portugal, procurando ser uma voz ativa na imprensa internacional, mas também entrando na Maçonaria, que viria a, gradualmente, abandonar. Antes de regressar a Portugal, no decorrer da Revolução de Abril, fez parte, com a sua Ação Socialista Portuguesa, da fundação do Partido Socialista. Isto ocorreu no dia 19 de abril de 1973, na Alemanha, numa cidade chamada Bad Münstereifel, nas redondezas de Bona e de Colónia, no ocidente alemão. Vários dos membros da Ação Socialista, que se encontravam dispersos pela Europa, reuniram-se para dar seguimento àquilo que a estrutura se havia tornado, cada vez mais numerosa em gente afiliada e perante a dimensão do desafio que se avizinhava. Assim, a Ação tornou-se no Partido Socialista por consenso, um partido que pugnava por uma sociedade sem classes e no qual o marxismo era visto como uma inspiração teórica predominante, embora sem se assumir como a missão final, ao contrário da visão do Partido Comunista. Embora avessa ao capitalismo que se vinha proliferando na economia europeia e mundial, assumia um compromisso de se cumprir através do sistema parlamentar que vingava na maioria da Europa Central. Foi já nos braços do Partido Socialista que regressou, ao lado dos seus companheiros da original Ação Socialista e da sua esposa, Maria Barroso, no dia 28 de abril. No dia 30, esperou Cunhal no Aeroporto, com quem celebrou no 1º de Maio, no dia do Trabalhador, a vitória de Abril.
Em termos concretos, Soares assumiu a pasta dos Negócios Estrangeiros em maio de 1974, no primeiro executivo pós-Revolução, encabeçando as bem-sucedidas negociações para a independência das então colónias, nomeadamente das no território africano. Seria um governo que convergiria figuras das mais diversas forças partidárias, como o PPD-PSD, o próprio PCP e o MDP (Movimento Democrático Português, fundamentalmente de esquerda). Com uma visão profundamente inspirada pelos países onde havia estado pela Europa e, como tal, sendo um europeísta, foi um dos grandes responsáveis pela adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE), futura União Europeia. Acabaria por ver consolidada a sua liderança em 1974, numa linha mais moderada e com cariz reformista, num Congresso que fez com que a ala mais à esquerda se separasse do PS e fundasse a Frente Socialista Popular (FSP). Seria também Ministro sem pasta no Governo Provisório de Vasco Gonçalves, um militar no qual o Partido Comunista se revia e no qual depositava grande parte das suas expectativas. Seria uma fase em que as tensões entre PS e PCP subiriam de tom e a própria manifestação assertiva por parte do PS levou a que os ministros que estavam no executivo de Vasco Gonçalves ligados ao partido se demitissem em bloco.
Estava em causa o PREC – Processo Revolucionário em Curso, que unia militares às ideias políticas comunistas – a grande fonte de desagrado em Soares e no seu Partido Socialista. Procurou reunir o povo, tanto na Praça Humberto Delgado, no coração da cidade do Porto, como na Fonte Luminosa, em Lisboa. Jogava-se nas entrelinhas o poder de influência dos norte-americanos e dos soviéticos, procurando os primeiros impedir a queda de Portugal para a extrema-esquerda. Mário Soares havia sentido o apoio dos portugueses após o triunfo nas eleições para a Assembleia Constituinte, as que tinham data precisamente um ano depois do 25 de abril de 1974. Apesar de serem eleições vocacionadas para a redação de uma nova Constituição, o PS ganharia com 37,9% dos votos, contra os 26,4% do PPD e somente 12,5% do PCP. O presidente da República de então, Costa Gomes, confrontado com o Documento dos Nove – um documento assinado por nove membros do então Conselho de Revolução, defendendo e propondo uma via mais reformista e próxima do centro (PS e PSD). Foi uma fase em que se assistiu ao famoso debate entre Mário Soares e Álvaro Cunhal, no dia 6 de novembro de 1975, que opôs, durante quatro horas, a visão mais moderada e democratizadora de Soares e a mais revolucionária e popular de Cunhal. No 25 de novembro, o socialista apontou responsabilidades a Cunhal e ao seu partido na tentativa de golpe e de usar a extrema-esquerda nesse sentido.
Assumiu as rédeas de três executivos, nomeadamente do primeiro (1976-77), do segundo (1978, visto que o primeiro havia caído por uma moção de censura) e do nono governo (1983-85) pós-promulgação da Constituição em 1976. O primeiro seria assumido por convite do novo presidente da República, vencedor das eleições realizadas então, o general Ramalho Eanes. Reforçada a chefia do Partido Socialista e na frente do governo, avançou com um plano que seria aprovado em Assembleia e que conseguiu subir o salário mínimo, distribuir seiscentos médicos por província administrativa portuguesa (tratando-se de um serviço gratuito e financiado pelo Estado, deu os primeiros passos para a fundação do Serviço Nacional de Saúde), a criação do sistema de ensino pré-escolar, de cariz obrigatório e gratuito, alargando a gratuitidade do ensino até aos 9 anos, a aprovação de passes de transportes com serviço escolar e complementar a estes e uma reforma administrativa, que validou competências às autarquias e aos seus órgãos constituintes. No entanto, não evitou a vinda do Fundo Monetário Internacional, que, após 1977, também voltaria em 1983 e, com ela, medidas de austeridade, que consistiram na reversão de grande parte das nacionalizações e na desvalorização do escudo, combatendo a recessão económica que a turbulência dos últimos anos havia gerado.
Com o primeiro executivo a cair por uma moção de censura que o PS propôs e que seria refutada por maioria da assembleia, o segundo acabaria gorado por exoneração do próprio Presidente da República, após consulta do Conselho de Revolução, então já um órgão consultivo. Perderia as eleições de 1980 para a Aliança Democrática, que juntou PSD, CDS-PP e PPM (Partido Popular Monárquico), após Soares ter-se juntado à Ação Social Democrática Independente (ASDI), liderada por António Sousa Franco, ex-Ministro das Finanças. Colocou-se, assim, no papel de oposição, mas no qual se assistiu a uma aproximação gradual do seu futuro eterno rival, o PSD. Iniciou-se, assim, no ano de 1983 aquilo que se chamou de Bloco Central, um governo de coligação sustentado num acordo político, parlamentar e governamental, que uniu Mário Soares a Carlos Mota Pinto, que seria vice-primeiro-ministro nesta nova solução, tomando posse a 9 de junho de 1983.
Seria, ainda, ele, em 1985, a ratificar, no Mosteiro dos Jerónimos, a adesão formal de Portugal à CEE, no dia 12 de junho, que o próprio solicitou formalmente em 1976. Com a repentina morte de Mota Pinto e a sua sucessão na liderança do PSD de Aníbal Cavaco Silva, em 1985, a intenção de romper com o Bloco Central foi, desde logo, ponto assente. Os ministros ligados ao partido demitir-se-iam e Soares não teria outra opção que anunciar a sua demissão. No ano de 1986, entregue a liderança do partido a Vítor Constâncio, candidatou-se à Presidência da República e bateu o rosto do CDS-PP, Diogo Freitas do Amaral, com uns tangenciais 51,2% dos votos. Renovou o seu mandato em 1991, quando venceu de forma tranquila, com mais de 70% dos votos perante os 14,1% do democrata cristão Basílio Horta. Seriam dois mandatos confrontados com uma viragem à direita por parte de Cavaco Silva, líder do PSD e primeiro-ministro durante os dois mandatos da presidência de Soares, existindo, nesse período, alguma tensão entre duas posturas contrastantes e de relações frias. Deixaria a presidência no ano de 1996, onde procurou uma presença mais internacional, liderando a Comissão Mundial Independente Sobre os Oceanos, a Fundação Portugal África e o Movimento Europeu Internacional, todos eles por causas de cooperação internacional.
Regressaria à política ativa em 1999, ganhando as eleições europeias de 1999, passando a ser deputado europeu. A derrota que viria a ter para a advogada francesa Nicole Fontaine, pelo cargo da presidência do Parlamento Europeu, fez-lhe perder a ambição de assumir um cargo de relevo fora do país, tendo regressado, no final do mandato como deputado, à causa dentro de portas. Com 81 anos, candidatar-se-ia, novamente, à Presidência da República, mudando a intenção de voto de José Sócrates, então primeiro-ministro e secretário-geral do PS, da candidatura de Manuel Alegre, com quem havia entrado em conflito nas eleições para a liderança do partido. Soares não conseguiu mais do que o terceiro lugar, numas eleições ganhas por Aníbal Cavaco Silva com maioria absoluta, com 50,5% dos votos, perante os 20,74% de Manuel Alegre e os 14,31% de Mário Soares. Aí, foi a retirada definitiva deste da política ativa, acabando por presidir à Comissão de Liberdade Religiosa, em 2007, e por receber o Doutoramento Honoris Causa da Universidade de Lisboa, onde se graduou por duas vezes. Antes de 2017, ano em que faleceria, seria ainda condecorado com a chave da cidade de Lisboa, atribuída pela autarquia da cidade.
Um contributo dado para a sociedade civil por parte de Soares seria a criação da Fundação Mário Soares, datada de 1991. Fundação de utilidade pública e sem fins lucrativos, destinou-se à realização e fomento de atividades de cariz cultural, científico e educativo, nomeadamente nas áreas da Política, do Direito, das relações internacionais e dos direitos humanos. De igual modo, a contribuição com financiamento e outros recursos para vários estudos e investigações subordinados à ciência política e aos negócios estrangeiros. Seria a responsável por, por exemplo, organizar os arquivos da Resistência Timorense e os guineenses Arquivos Amílcar Cabral. (todos estes e outros fundos custodiados pela Fundação encontram-se disponibilizados na plataforma Casa Comum). De igual modo, foi instituído um prémio para a Fundação, galardoando trabalhos de referência sobre a história de Portugal no século XX. A Fundação dispõe, ainda, de uma casa-museu, na Rua de São Bento, em Lisboa, onde reúne os dois milhões de documentos legados. Um dos maiores beneméritos seria o Banco Espírito Santo, que doou mais de 500 mil euros para a instituição, embora a situação desta continue fragilizada e dependa, essencial, de fundos estatais.
Mário Soares permanece, nas configurações democráticas de hoje, como um dos seus grandes pilares. Desde a sua atividade de contestação até à fase em que assumiu um papel de protagonismo e de liderança partidária, foi o responsável por coordenar uma via mais reformista e moderada, embora de vocação socialista. O caminho que traçou procurou estabelecer Portugal como um país moderno, ligado ao pendor progressista que a Europa Central vinha incutindo e cultivando. Foi nesse espírito democrático, que partilhou a experiência política com o expertise académico que o socialismo acabou por vingar, em algumas nuances cruciais do funcionamento do Estado, com a batuta de Mário Soares e de alguns dos seus herdeiros.