O que podemos exigir aos Diabo na Cruz? Nada
O que podemos exigir aos Diabo na Cruz? Absolutamente nada. O que temos de saber sobre este fim? O mínimo indispensável, também. À banda competia entregar-se por completo em palco e fazer canções que nos levassem a comprar discos, assistir a concertos e aplaudi-los. Ambos cumprimos. Por mais que a proximidade nos confunda, nós fazemos parte do público, não somos amigos dos músicos – e, como esta notícia certamente não se deveu a falta de amor do nosso lado, tudo faz parte de campo privado onde não merecemos entrar, por mais que nos custe. A discrição possível sobre as razões do fim da banda, onde só revelar pouco consegue ser elegante, parece-me também a melhor forma de mantermos bonita a história que nos trouxe de 2008 até aqui.
O que podemos lamentar é o timing. Teria sido bem mais poético, não deixando de ser triste, um ponto final apoteótico depois do concerto do Coliseu em novembro do ano passado. Ora, isto não deverá ser novidade para ninguém que goste do Diabo, muito menos para a banda. O comunicado chega-nos como facto consumado e, como em tudo, só a ingenuidade não nos deixaria ver que, mais do que ninguém, eles próprios deram o seu melhor e testaram todas as possibilidades antes de esta bomba chegar. Se alguma coisa pudesse ter sido diferente seriam eles as melhores pessoas para o tentar.
Bem nos tinham avisado para este fim sempre iminente, sempre possível. Mas nós nunca estivemos preparados, porque em palco só vimos entrega, suor, nervo, amizade e profissionalismo. E ainda bem.
Acredito que em alguns anos, quem sabe muitos, uma entrevista mais atrevida ou uma reportagem de fundo nos vão revelar algumas nuances deste fim atribulado. Foi assim com os Ornatos Violeta, por exemplo, e terá sido com muitas mais outras bandas em Portugal e lá fora. Mas é do Diabo que falamos. A banda vai encarregar-se agora da tarefa hercúlea de assumir os compromissos já fechados (para nós – sempre público – não vai ser nada hercúleo ajudar o Sérgio Pires na voz) e daqui a uns anos, com as devidas cicatrizes que só o tempo sabe amaciar, quem sabe não teremos uma comemoração especial com a equipa completa. Esgravatar agora não serve nada – só a nossa curiosidade, que é o menos importante nesta história.
Com a quantidade e diversidade de boas bandas portuguesas que temos hoje pode ser mais difícil recuar uns dez ou onze anos e lembrar-nos do deserto de criatividade musical do nosso país nessa altura. Diabo na Cruz, ao lado de Deolinda, não só fizeram parte de uma nova vaga de criação em língua portuguesa como se destacaram nesta reconciliação que coletivamente fizemos com a produção nacional, porque conseguiram com toda a justiça agradar a diferentes camadas da população.
Sempre os distinguiu aquela capacidade (que me toca particularmente) de olhar o país todo, e pôr o foyer do Maria Matos ao lado da merenda nos alforges e sentir verdadeiramente o bater do coração de Portugal, de serem o rock da cidade que conhece o campo e não faz pouco dele. Mas o mais especial disto tudo foi o que conseguiram criar em palco e que é a razão de estarmos aqui a escrever e a ler tão dedicadamente sobre a banda: festas absurdas, cada uma diferente da outra, com comboios, com gritos, com suor ainda mais literal que lírico. E muitos grupos que nasceram e se multiplicaram para seguir o Diabo graças a esta comunhão que eles tão bem alimentaram.
“Dona Ligeirinha” é single. “Bom Tempo” é single. “Os Loucos Tão Certos” é single. “Chegaram os Santos” é single. “Tão lindo” é single. “Luzia”, “Fronteira”, “Sete Preces”, “Armário da Glória”, “Saias”, “Vida de Estrada” são singles. Bem, já perceberam onde quero chegar. Graças a esta brincadeira de praticamente toda a discografia ser obrigatória ao vivo (porque é!), algures em 2015 presentearam-nos com um concerto de quase três horas no NOVA Música, em Campolide. Esta é apenas uma de tantas histórias inesquecíveis que todos temos com a banda.
Na altura do lançamento do último álbum, escrevi este texto sobre eles:
“Prefiro desfrutar de um disco em vez de ter de pensar muito e escrever sobre ele. Mas se escrevesse sobre o novo disco dos Diabo na Cruz diria que é uma Estrada Nacional com perfil de auto-estrada. Dava ao texto, que não estou a escrever, “Diabo na Cruz: do arraial ao arrepio”, ponto de partida para explicar como conseguem acompanhar-me em todos os semblantes e, na maior parte das vezes, descarregá-los.
Diabo na Cruz é sociologia em verso cruzado, é Portugal rural misturado com apps para chegar mais rápido ao Campo Grande, isso já sabíamos, mas desta vez foram longe demais: empenhados no marketing à volta do lançamento, criaram uma nova experiência sensorial (surpresa que agora desvendo) – se passar o dedo na capa do disco, e o ouvir todo seguidinho, consigo sentir o cheiro da casa dos meus avós. Oferecem também autocolantes, um postal, marcador de livro, um pin e um sincero ombro amigo na “Balada”, que para mim é das melhores canções da história das canções desde a primeira vez em que a ouvi, estava a voltar do Campo Grande nas calmas.
Os Diabo na Cruz já meteram Viana do Castelo, Caldas da Rainha, Oeiras, Trancoso e muitas mais terras nas suas músicas. Sabem cantar, cada vez melhor, o país inteiro. E não o olham com pena, nem com saudade, mas com nervo. Para esclarecimentos adicionais sobre este parágrafo e sobre como temperar borrego, consultar “Malhão 3.0”. Perguntaram-me há uns dias o que significava Diabo na Cruz para mim. Respondi: “comboiinho com os amigos”. Mas tive má nota, porque a resposta estava muito incompleta. Devia ter dito, e ainda assim continuaria incompleta, que Diabo na Cruz para mim é levar com o vento na cara (e nada nos pára) até Longroiva (porque é a descer); conduzir de vidros abertos quando o pinhal de Leiria ainda era vivo; andar aos tombos com o Ricardo Santos e o Simão Chambel até ao campismo do Bons Sons, ainda não sei como é que conseguimos lá chegar; um concerto de quase três horas no Nova Música; e aquele na Feira da Luz, provavelmente até mais longo, porque começou na casa do Steve Grácio, quando fiz Mêda-Lisboa para lhe dar boleia, a ele e às muletas, para irmos fazer o comboiinho. A primeira das trinta e sete vezes em que me apaixonei pela Kenia foi no Cais do Sodré quando começou a cantar a “Saias”. O novo disco saiu agora, umas estações do ano depois, e ela ofereceu-mo.
No dia 15 de novembro vamos juntar estas histórias todas no Coliseu de Lisboa; já ligámos para lá e em princípio cabemos todos (as muletas já não vão). E é tão bom poder ouvir um disco sem ter de tentar escrever sobre ele. Ia dar uma grande trabalheira.”
Sobre aquele amigo das muletas que neste concerto do Coliseu em 2018 já não as tinha: desta vez marcámos uma grande jantarada ao pé do Coliseu e, já no restaurante mas ainda com tempo, o Steve lembrou-se que tinha deixado o bilhete dele em casa. O que fez? Estar naquele jantar e cumprir sem interrupções a celebração de ver Diabo era bem mais importante que ir a casa buscá-lo; comprou outro. Éramos umas 20 pessoas, mais ou menos, e os amigos foram chegando depois de todo o lado, outros encontrámos por acaso durante o concerto – esta parte é verdadeiramente difícil de explicar. Assim como nós organizámos o jantar, muitas, muitas outras pessoas o fizeram: Diabo na Cruz representa uma partilha, um convívio, uma amizade que vai muito além da música.
Não sei por que acabaram. Sei (embora sem conseguir explicar muito bem) o que representam para mim, para os meus amigos e para milhares de pessoas que os acompanharam no arraial e no arrepio. Não podemos exigir nada ao Diabo na Cruz. Mais que músicos, são pessoas que têm as suas vidas (suas, não nossas). Resta-me agradecer do fundo do coração por tantas memórias, momentos bons e estes discos que, sem outra alternativa, vão agora direitinhos outra vez para o rádio do carro. De vidros abertos.
Artigo escrito por Pedro Pereira