A ética e os princípios humanísticos na ciência
A ciência, e por conseguinte também a própria tecnologia, são hoje pilares da nossa sociedade e, sem elas, o nosso quotidiano seria completamente diferente. Tanto a nível económico, social e até cultural, a ciência proporcionou-nos grandes feitos e conquistas.
Porém, nem sempre este foi um caminho contínuo e a história da ciência está cheia de altos e baixos, curvas e linhas rectas, sucessos e fracassos. Por exemplo, só no que diz respeito ao estudo da matéria, desde Tales de Mileto que, por volta de 600 a. C. começou por assumir que o principal constituinte da matéria seria a água (o que pode parecer absurdo, mas, de facto, até nem seria mal pensado visto que este seria um inicio bastante embrionário, zigótico melhor dizendo), até Dmitri Mendeleev em meados do século XIX ter criado a tabela periódica para organizar os diferentes elementos químicos e que nela hoje estão presentes 118 (embora alguns sejam sintetizados), foram necessários grandes esforços por parte dos cientistas ao longo de toda a história da humanidade. Contudo, nem sempre a ciência se portou bem e até cometeu graves erros durante o seu percurso evolutivo. Quando foram estudadas e posteriormente aplicadas as propriedades do elemento com o número atómico 92, de seu nome Urânio, as coisas de facto não correram da melhor maneira.
A era nuclear foi um dos períodos mais negros da história da ciência e a própria reconhece esses mesmos erros. Hoje, a ética e os princípios humanísticos são vertentes que estão presentes em qualquer curso de formação científica de modo a que os cientistas do futuro saibam lidar com as questões que, entretanto, possam surgir. As consequências no ser humano e o futuro das gerações vindouras têm que estar acima de tudo, o modo como a ciência é conduzida tem de ter muito em conta estes factores.
É certo que o caso mais evidente do modo como a ciência pode ser usada para o mal é, sem dúvida, o Projecto Manhattan, projecto esse criado durante a Segunda Grande Guerra e que planeou a criação das bombas que arrasaram com duas cidades japonesas em 1945. O desenvolvimento da bomba atómica teve um apadrinhamento preliminar (chamemos-lhe assim) de Albert Einstein que, numa carta escrita ao presidente Franklin D. Roosevelt, dizia que Hitler poderia estar perto de conseguir tal arma, o que seria uma forte ameaça. Para Einstein, este desenvolvimento seria um grande avanço científico mas só seria usado em último caso, como legítima defesa, segundo o próprio. Só que a verdade não foi esta. Little Boy e Fat Man assim foram denominadas as duas bombas atómicas responsáveis por destruir Hiroshima e Nagasaki, respectivamente, e pela morte de mais de 200 mil pessoas entre outros tantos feridos e sequelas, como forma de vingança dos bombardeamentos a Pearl Harbor. Este foi o primeiro grande sinal de que, dadas as circunstâncias, o ser humano tinha a capacidade de se destruir a si mesmo usando a ciência.
J. Robert Oppenheimer (sabe mais sobre o físico), físico que foi mentor do projecto e líder nas investigações no laboratório de Los Alamos no Novo México, trabalhou com um grupo de cientistas altamente qualificados e até de reconhecimento mundial, muitos deles galardoados, posteriormente, com o Nobel da Física. Para estes homens, o fascínio pela ciência era de tal tamanho que nunca esperariam que a sua investigação pudesse atingir proporções de destruição gigantescas. Ainda hoje é discutível se a pressão exercida sobre estes cientistas para prosseguirem com estes estudos terá sido maior do que o fascínio que tinham pelo modo como poderiam criar algo tão grandioso. A verdade é que, depois da execução das duas bombas, e do seu suposto sucesso, Oppenheimer abandonou imediatamente o projecto. O físico foi, anos mais tarde, uma das vítimas do Macartismo, nome dado à perseguição promovida pelo senador Joseph McCarthy aos simpatizantes de ideais de esquerda e aos suspeitos de cedência de informações confidenciais à União Soviética em plena Guerra Fria.
Ainda assim, as acções para o início do desarmamento tardaram um pouco, já que o tratado de desarmamento nuclear não proliferado só fora assinado em 1968. Durante este espaço de tempo, foi necessário gerar consenso entre os países e nem todos subscreveram o acordo. A própria ciência teve, também, um papel importante nesta matéria, tendo em conta que muitos foram os cientistas que se manifestaram contra a utilização de armas nucleares. Um deles, Linus Pauling, laureado com o Prémio Nobel da Química em 1954 pelo trabalho desenvolvido na investigação das ligações químicas e estruturas moleculares, foi, também, laureado em 1962 com o Nobel da Paz pelo seu enorme esforço no combate ao armamento e testes nucleares, sendo. até agora, o único a receber dois Prémios Nobel não compartilhados. Linus Pauling é, hoje, uma referência, não só na ciência, mas também no reconhecimento de que a aplicação desta sem ter em conta as possíveis consequências das suas aplicações pode ser fatal, nomeadamente quanto ao armamento nuclear. A redenção por parte de alguns colaboradores do projecto Manhattan foi, também, notória e determinante para o fim do armamento nuclear, ainda para mais com o testemunho de quem conheceu melhor do que ninguém os potenciais efeitos devastadores destas armas.
Um drone à descoberta de Pripyat (Chernobyl)
Apesar deste tratado ter sido assinado não impossibilitou o uso da energia nuclear como fonte energética em vários países e, deste modo, os movimentos antinucleares ganharam força. Esta questão foi ainda mais evidenciada quando os potenciais e temíveis riscos foram notórios em 1986, devido ao acidente da central nuclear de Chernobyl, na actual Ucrânia, tendo afectado várias populações e provocado doenças cancerígenas e mutações génicas nas gerações seguintes. A vantagem da energia nuclear está nos elevados rendimentos energéticos que esta nos pode conferir, contudo, um pequeno senão pode dar origem a danos irreparáveis.
Os sistemas de controlo de uma central nuclear têm que ser muito mais minuciosos e precisos do que numa central termoelétrica ou numa simples fábrica de produtos químicos, por exemplo. Fazer parar uma reacção química é algo exequível, mas conseguir parar uma reacção nuclear é algo extremamente complexo, dado às quantidades abismais de energia envolvidas. 30 anos depois deste incidente, que fez com que o mundo visse doutro modo a energia nuclear, é uma boa altura para se fazer um pequeno balanço do modo como esta pode ser usada. Se a ciência é reconhecida pelos seus sucessos, os insucessos também são, igualmente, notórios. O uso do Urânio para este tipo de finalidades tem sido fracasso atrás de fracasso. Em 2011, a central Fukushima no Japão colapsou devido a um terramoto, sendo este o maior incidente nuclear depois de Chernobyl. A exposição radioactiva ainda é algo que está presente nesta região e, apesar de se desconhecerem mortes devido à exposição da radiação, existem ainda hoje 180 mil pessoas deslocadas da região, devido aos riscos para a saúde que esta pode proporcionar. Depois deste famoso desastre com 30 anos, continuamos a não aprender com os erros.
Errar é humano e é com os erros que aprendemos. No entanto, errar muitas vezes e sempre da mesma maneira já é considerado estupidez. O próprio Albert Einstein, meses antes do seu falecimento, numa conversa com Linus Pauling, confessou ter sido um erro tremendo estimular o desenvolvimento da bomba atómica e que nunca teve noção dos efeitos que esta poderia causar. “Há duas coisas infinitas, o universo e a estupidez humana. E não estou certo quanto ao universo.”, esta célebre frase de Einstein pode muito bem ser aplicada ao modo como o ser humano tem usado o Urânio. Por mais acidentes que ocorram parece que nunca iremos aprender com os erros do passado, os interesses económicos fazem-nos esquecer muita coisa e, por isso, a estupidez humana é e continuará a ser infinita. Quanto ao Urânio, deixemo-lo sossegado na tabela periódica, bem aconchegado, ao lado do Protactínio e do Neptúnio. O pobre coitado não tem culpa de nada.