Os contributos de Jorge Silva Melo na cultura e arte portuguesas
Jorge Freitas e Silva Melo é um dos grandes nomes do teatro português, em especial na segunda metade do século XX. Depois de uma fértil experiência no estrangeiro, que coincidiu com o período ditatorial em Portugal, voltou com uma bagagem que se foi enriquecendo cada vez mais pela passagem dos anos. Ao lado de Luís Miguel Cintra, moveu mundos e fundos para que o teatro se tornasse mais moderno e recuperasse os anos de atraso em relação aos demais. Foi neste seguimento que contribuiu para que os palcos pudessem ser mais exigentes e ricos em ideias e em perspetivas.
Nascido em Lisboa no ano de 1948, mais precisamente no dia 7 de agosto, faleceria 74 anos depois, ainda antes de os completar, a 14 de março de 2022. Apesar de ser natural de Lisboa, foi cedo para Angola, crescendo na atual cidade de Cuíto (então Silva Porto). A sua mãe, professora, tinha raízes no Algarve, o seu pai, funcionário dos correios e, futuramente, empresário, no Minho e o encontro deu-se pela capital, como tantos outros. Era o filho mais novo de dois, dado que a sua irmã, Maria Adélia, era doze anos mais velha. Aliás, seria ela uma das grandes responsáveis por abrir o caminho do pequeno Jorge ao mundo da arte, levando-o consigo ao cinema e apresentando-o aos seus amigos. Dentro desse círculo, encontrava-se, por exemplo, o professor João Bénard da Costa, que chegou a frequentar a casa da família, vivida num misto de disciplina e de afeto, à luz do puritanismo do Estado Novo. De igual modo, o seu pai foi responsável por apresentar muita literatura humanista do século XIX, compilando uma biblioteca na sua residência e abrindo as portas para que o jovem pudesse mergulhar nessa pluralidade.
Assim, a adolescência foi vivida do lado de cá, nomeadamente no Externato Marista (onde a sua própria irmã seria sua professora e onde fez amizade com o jurista e impulsionador cultural Miguel Lobo Antunes) e no Liceu Camões. Foi uma fase em que reivindicou a paixão pela cultura e pela arte, em especial pelo cinema — vindo do seu pai, aficionado pelo cinema mudo — e pelo teatro, privando com vizinhos e amigos de elevada presença cultural, como o próprio Almada Negreiros. Iniciou leituras importantes, como “Os Lusíadas”, e inteirou-se das causas políticas e sociais da sua irmã, que pugnava pela independência das colónias. Enquanto escrevia em alguns jornais, como o Diário de Lisboa e o Tempo e o Modo, ingressou na Faculdade de Letras da cidade, por intermédio da licenciatura em Filologia Românica, similar às Germânicas que a sua irmã estudou. Foi neste período académico que se começou a interessar mais pelo teatro e a juntar às iniciativas do Grupo de Teatro de Letras em plena crise académica, que voltou os estudantes contra o Estado Novo. Aliás, o próprio Silva Melo chegou a ser detido e até espancado pela polícia política, acabando preso em Caxias durante algumas semanas. Por intermédio deste grupo, travaria conhecimento com Luís Miguel Cintra — que tinha sido, igualmente, aluno da sua irmã, sendo bastante elogiado em família — e com Eduarda Dionísio, responsáveis pela futura fundação do Teatro da Cornucópia, no ano de 1972, acabando por se divorciar um pouco mais do cinema em relação ao teatro.
Antes disto, deixaria a licenciatura a meio e foi para Londres, onde, por força de uma bolsa concedida pela Fundação Calouste Gulbenkian, conseguiu formar-se em realização na prestigiada London Film School. Jorge Silva Melo, que, não obstante fazer parte das primeiras pisadas da Cornucópia, deixaria a companhia no virar da década de 1980. Nesse período, para além de se assumir como um autêntico empresário, deixou percurso como ator (desempenhou o papel de Oronte e de guarda na adaptação de “O Misantropo”, de Moliére, por parte de Luís Miguel Cintra) e encenador, sendo responsável por dirigir peças de Bertolt Brecht (“Terror e Miséria no III Reich”, em 1974, ao lado de Cintra), Pierre Marivaux (“A Herança” nesse mesmo ano, e a “Ilha dos Escravos”), Maxim Gorki (“Pequenos Burgueses”, em 1975) e Jean Jordheil e Bernard Chartreux (“Ah Q”, no ano de 1976), estas duas últimas já no Teatro do Bairro Alto, onde a companhia se fixaria. Sairia por discordâncias com o rumo da companhia, tanto pelo critério de escolha das peças a adaptar, como pela qualidade do elenco.
Ao mesmo tempo, faria parte da cooperativa Grupo Zero, na qual Silva Melo pôde colocar em prática a sua formação em realização cinematográfica e a sua obsessão saudável com a ideia da escolha e da decisão. Entre outros, em retrospetiva de carreira, destaque para “Passagem ou A Meio Caminho”, de 1986, que traça uma biografia do dramaturgo alemão Georg Büchner, da sua atividade política e posterior isolamento e alheamento da sociedade; “Agosto” (1988), que adapta a obra de Cesare Pavese “La Spiaggia”, tendo, como pano de fundo, a zona da Arrábida; “Coitado do Jorge” (1993), um trama que envolve o intruso numa vida bastante bem sucedida e que marca o revigorar de Silva Melo, e o documentário “Sofia Areal: Um Gabinete Anti-Dor” (2016), que abrange o trabalho da artista visual Sofia Areal.
“Na formação dos artistas em Portugal há muita coisa que está ocultada. Como, por exemplo, fazer um orçamento. Fazer um orçamento é uma coisa que, em princípio, um artista não sabe e eu acho fundamental saber porque é com os orçamentos que se faz arte. E é fundamental um jovem actor saber quanto custa o trabalho que está a fazer e onde pode arranjar dinheiro e como pode fazer um dossier de apresentação.”
Jorge Silva Melo numa entrevista conduzida pelo então actor Tiago Rodrigues, para o programa “Portugalmente”, em 1998, da RTP2.
Este entre outros documentários sobre vários artistas, como o pintor Nikias Skapinakis (2007), o artista Álvaro Lapa (2008), o artista portuense Ângelo de Sousa (2010) e o pintor António Sena (2009), para além da atriz e sua colaboradora Glicínia Quartin (2004). Para além de ser argumentista em outros tantos, como ator, faria parte de filmes de realizadores conceituados, como João César Monteiro (em “Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço”, de 1970, onde foi assistente de realização e diretor de produção, ou “Silvestre”, de 1982), João Botelho (“Conversa Acabada”, desse mesmo ano) ou Manoel de Oliveira (“Le Soulier de Satin”, datado de 1985). De igual modo, como professor na Escola Superior de Teatro e Cinema, viria a transmitir esses seus aprendizados. Ensinados que também foi legando no teatro, resultado das suas estadias no exterior e da vocação de ensino que sempre teve, movida pelo afeto e pela atenção que o trabalho também pode ter. O ensino vocacionado a formar artistas, para lá de meros intérpretes, com os seus próprios efeitos e méritos e as suas lutas, mas também com a consciência do custo do seu trabalho e do capital humano que representam, assumindo as responsabilidades do que são e fazem.
Partiria para Berlim, de novo com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, e para Milão, onde beberia os saberes de reputados encenadores, como o alemão Peter Stein ou o italiano Giorgio Strehler. Foram, também, estas experiências que contribuíram para que voltasse a ser empreendedor e criasse uma outra companhia de teatro, a Artistas Unidos. Foi um período marcado por uma grande intermitência, em constantes viagens entre Lisboa e as cidades onde residiu, como Paris, onde estudou e representou, rematado por uma pausa de dois anos até a fundação desta companhia. Tratou-se de um novo alento que recuperou o pendor de descobrir e formar jovens talentos da representação e que lhe permitiu, quase, uma segunda vida.
Entre filmes, peças, recitais, conversas e outras iniciativas, foram mais de uma centena as atividades que, na Capital, espaço situado no Bairro Alto, foram realizadas ao abrigo desta sociedade, que se juntam às peças de teatro que redigiu (não obstante os desejos — e algumas concretizações — de se expandir por todo o território). Entre outras, “Seis Rapazes Três Raparigas”, “Prometeu”, “António, Um Rapaz de Lisboa”, “Eu Não Quero Viver” ou “O Fim ou Tende Misericórdia de Nós”. Como força motriz, colocar o acontecimento a decorrer e a fazer forças chocar (como o embate capitalismo-comunismo, apesar de se afirmar anarquista), embora sem nelas se envolver. Um teatro de sentido comunitário, terreno, que comunica a vida da cidade, mas também de convivência com as ideias que são apresentadas no palco por parte dos espectadores. Das pessoas para as pessoas. Também traduziu várias obras de nomes vários, como os de Oscar Wilde, Ésquilo, Bertolt Brecht, os italianos Carlo Goldoni e Pier Paolo Pasolini, Georg Büchner, Harold Pinter e até do cineasta Michelangelo Antonioni, traduções que começou a fazer mal se licenciou.
O encenador seria condecorado com o grau de comendador da Ordem da Liberdade, no ano de 2004, assim como com o grau de doutor honoris causa da Universidade de Lisboa. Como obra propriamente feita, deixou uma série de traduções, mas também outras tantas obras originais. O livro “Século Passado”, de 2007, que talvez seja o melhor exemplar da sua vida e obra, na forma como capta e abrange tanto desta; as reflexões pessoais versadas em “Deixar a Vida” (2002), assim como mais profissionais em “A Mesa Está Posta” (2019). De igual forma, as peças “O Fim, ou Tende Misericórdia de Nós” (1997, um trama com influência italiana de um desaparecimento de uma jovem), “O Navio dos Negros” (2001, que absorve premissas da literatura de Herman Melville e da vida tumultuosa no mar) e “Sala VIP” (2013, na qual um conjunto de cantores de ópera ficam retidos num aeroporto norte-americano e na qual as relações humanas adquirem um grande protagonismo). Escritos que confirmam a vocação didática e interventiva da sua vida e do seu trabalho e que denunciam uma fé vincada e marcada, se bem que assumida pelas entrelinhas (um catolicismo que nunca ficou esquecido). Uma fé que gostava de ver traduzida no próprio teatro, na sua dinâmica pastoral e até litúrgica.
Jorge Silva Melo é um dos grandes nomes, marcantes na história do teatro português. Tanto pelo papel que teve na Cornucópia, como na sua Artistas Unidos, o encenador trouxe a Portugal muitas fragrâncias literárias e artísticas, interpretadas em palco com afinco e verdade, vindas da Europa. Materializou-a em peças, em encenações, em filmes, em documentários e em outros moldes nos quais se projetou, sem esquecer na materialização que fez nas pessoas com quem colaborou e a quem tanto ensinou. A pedagogia tornou-se a língua-mãe de Silva Melo, doada a partir do poder do afeto e do saber. É da sua união que são feitos os comummente conhecidos “mestres”, que tanto e tão bem transmitem valores humanos, culturais e técnicos. Mais do que mestres de obra, mestres de vida, na sua conjugação com outrem, em diálogos profundos e eternos por palcos visíveis e invisíveis.