Ouředník e a crueza sádica da humanidade, em “Europeana: Uma Breve História do Século XX”
O século XX foi, provavelmente, aquele que mais mudanças trouxe à humanidade. Começou sem existir sequer rádio e, ao acabar, já não se sobrevivia sem a internet. Mas, no meio de tanta inovação, nem só de coisas boas se fez o século que viu duas guerras mundiais devastar o planeta.
É isto que o checo Patrik Ouředník, no seu livro Europeana: Uma Breve História do Século XX, agora publicado em português pela Antígona, se propõe mostrar-nos. Intercalando as vertentes de terror, nomeadamente ao longo das guerras que assolaram o século, com as de inovação — a todos os níveis, das científicas, às filosóficas, às tecnológicas, às sociais, às sexuais —, resume-nos o século que, para o bem e para o mal, nos trouxe onde estamos hoje, começando assim:
“Os rapazes americanos que tombaram na Normandia em 1944 eram uns calmeirões que em termos estatísticos mediam 1,73 metros a peça e que se fossem dispostos no chão em fila indiana com as plantas dos pés de um encostadas ao cocuruto da cabeça do outro teriam medido em conjunto 38 quilómetros. Os rapazes alemães também eram uns calmeirões e os mais espadaúdos de todos eram os atiradores senegaleses da Primeira Guerra Mundial que mediam 1,76 metros e assim os mandaram para as primeiras linhas para que avistando-os os Alemães apanhassem um valente cagaço.”
Sendo difícil pôr por palavras o que é, concretamente, que Ouředník acrescenta à reflexão acerca do século passado com este livro, não é arriscado dizer tem que ver, sobretudo, com a sua muito particular voz, transformando num objecto relevante aquilo que poderia ser, meramente, uma narração de factos consumados, já previamente feita por outros antes dele. A diferença está em o autor, usando o seu tom especialmente mordaz, narrar com a mesma indiferença relativa o que se passou tanto de bom como de mau, não deixando, no entanto, de apimentar tudo com humor. Numa mixórdia de listas, estatísticas e acontecimentos soltos sem qualquer seguimento cronológico, que encadeia, com a ajuda da ausência de vírgulas, por entre eventos tão díspares quanto o Nazismo e o Comunismo, os campos de concentração, a contracepção, as Barbie, a Cientologia, a psicanálise ou a eugenia, usa a dispersão dos mesmos para pôr em contacto acontecimentos que, aparentemente, não estariam relacionados.
Tal sobreposição acaba por obrigar o leitor a pensar no quão todas estas coisas que diríamos desconexas estão, afinal, interligadas, e que não só aconteceram no mesmo período, como são provavelmente causas e consequências umas das outras. Esclarecedor e divertido como é, Ouřednik passa-nos uma visão ao mesmo tempo crua do horror subjacente a tudo o que alcançámos e, inegavelmente, absurdista da natureza humana, capaz do melhor e do pior; quem sabe, talvez não seja possível alcançar o melhor sem causar a desgraça noutro lado e, da mesma maneira que é perturbador ver tamanhas inovações a par de tão agoniantes catástrofes, acaba por ser perturbador o efeito de leitura agradável alcançado através de acontecimentos tão terríveis.