“Pecaminosa”: o uísque pixelizado dos Açores
Pecaminosa — A Pixel Noir Game é o mais recente projeto do estúdio açoriano da Cereal Games. Trata-se de um jogo de ação com leves elementos de RPG e temática policial passado na cidade americana de Pecaminosa durante os anos 40. Tudo começa quando o fantasma de um chefe mafioso confronta o ex-polícia John Souza com uma proposta que este não deve recusar. O lusodescendente parte assim para uma aventura imersa em temas do noir e com toques de fantasia e humor seco.
Com fumo de cigarro e uísque alaranjado faz-se um Souza. É um protagonista carismático e propositadamente típico destas histórias, fazendo por se encaixar nesse modelo com os seus comentários que flutuam entre o detetive astuto e o bêbado mal engravatado. O humor é frequente e os diálogos bem temperados tendem a fortificar o ambiente ou a contextualizar eventos no universo de jogo. A escrita está mais à vontade no laconismo dos diálogos e das descrições narrativas e de personagens nos menus, já que quando tenta alongar-se tem poucas bases por onde assentar, pois as personagens não são muito desenvolvidas durante o jogo, algo que acaba por gerar alguma leveza no conteúdo narrativo quando a estrutura em mundo aberto recheada de NPC pedia o contrário.
O sistema RPG usado, o LIFE, inclui, à semelhança do clássico GURPS, quatro atributos: Sorte, Inteligência, Força e Resistência, praticamente os mesmos do sistema de Steve Jackson. Devemos distribuir os pontos de experiência que ganhamos por estes atributos e escolher assim o nosso estilo de jogo, porém, o balanço entre eles não é ideal, especialmente com a vantagem desmedida que a Sorte oferece. Há momentos de diálogo que podem ser resolvidos mais facilmente com certos atributos, mas o peso desses momentos nunca se sente devido à estrutura ligeira do jogo, que com a ausência de, por exemplo, espólio único ou decisões relevantes teria de adaptar melhor o LIFE ao design geral, que se revela assim subaproveitado. Se não melhorarmos a Sorte (que influencia o poderoso dano crítico), o rácio das balas necessárias para as adquiridas naturalmente nos capítulos finais é tão desregulado que mesmo precaver-se com munições extras pode ser em vão. Quando aumentamos a Inteligência obtemos melhores preços ao negociar e daí surge uma falha notória: a partir de certo ponto, vendemos mais caro do que compramos e podemos negociar o mesmo item repetidamente para enriquecermos desproporcionalmente.
Com o desenvolver dos atributos desbloqueamos perks, algo não muito bem integrado no ritmo de jogo, visto só se desbloquearem com um número alto de pontos (7) em dois atributos, sendo até possível ocorrer um cenário pouco desejável: desbloquear o nosso primeiro perk segundos antes de rolarem os créditos. Há pouca profundidade no inventário, por exemplo, as roupas reforçam atributos diferentes e se usarmos o conjunto completo ganhamos um bónus, contudo, são tão poucas e desbloqueiam-se tão espaçadamente que não usar o conjunto completo é inviável, pelo que a divisão das peças por partes do corpo perde a relevância. É também pena estarmos cingidos aos punhos e não haver armas de combate corpo a corpo, já que esse, que inclui até uma mecânica de bloqueio, é um dos destaques da jogabilidade quando aliado à movimentação fluida de Souza.
Os momentos mais valiosos da ação surgem geralmente nas lutas com bosses ou nas áreas únicas carregadas de inimigos, onde o desafio se torna mais sério, encaixando-se na natureza old school da jogabilidade ao obrigar-nos a desviar de inúmeros projéteis ou de ataques poderosos que devemos prever. A inteligência artificial enquadra-se exemplarmente na jogabilidade e as rotinas diversificadas dos inimigos são cruciais para o combate. No entanto, em vez de se fortificar a boa jogabilidade base, parece que se decidiu alongar o jogo num tom demasiado aleatório, gerando uma certa desconexão entre capítulos. Esta dificuldade em integrar os elementos de fantasia na estética noir e na narrativa, eficazmente construída inicialmente, deita por terra uma conclusão sólida. Os esgotos e as salas secretas são alguns dos locais mais interessantes de explorar, todavia, fazem falta colecionáveis ou um maior número destas zonas opcionais para expandir a vida útil do jogo e tornar o sistema RPG mais significativo. Também o fast travel não é muito útil e seria mais bem aproveitado no acesso aos níveis avançados do jogo, onde, quando existe, só permite regressar. Marcando bem o ritmo da aventura, os puzzles são o outro trunfo da jogabilidade.
Visualmente, a arte píxel varia entre o rudimentar e o sensacional. Fica-nos uma arte retro de mérito com vários modelos bem construídos e animados e um design de interiores muito competente. A luz podia ter sido mais bem trabalhada e as animações nem sempre são consistentes em estilo entre personagens, para além disso, Souza tem uma animação mais veloz ao deslocar-se na diagonal. Também certos objetos têm uma colisão demasiado alargada. Já a interface, de fonte apropriada e finas linhas douradas, é refinada e contrastante e casa perfeitamente a arte pixelizada de tom retro com o género noir.
O jazz que compõe a banda sonora, de produção local, é bastante atmosférico, ainda que nem sempre esteja bem enquadrado nas diferentes partes do jogo e seja por vezes repetitivo. Sem grandes destaques para além dos sons dos itens, como o do isqueiro ou o da recolha de dinheiro, os efeitos sonoros têm qualidade, só o volume do bloqueio de dano inimigo está exageradamente mais alto do que o resto. Note-se ainda que durante as cerca de oito horas de jogo não há nenhum tempo de carregamento.
A direção do jogo dá rédea solta à fortuitidade e sai a perder, mas alcança dessa forma uma ambicionada diversidade. Uma aventura que, apesar das distrações no design, tem alma na sua identidade audiovisual e é capaz de garantir bons momentos, ora nas lutas de bosses bem conseguidas, ora nos gracejos do seu guião. Um começo bastante sóbrio para a indústria açoriana de videojogos nas grandes plataformas.