Pedro Costa, o cineasta do século XXI
“Mas, nestes tempos, far-se-á o elogio dos que, para escrever, se sentaram no chão nu, dos que se sentaram entre as pessoas humildes, dos que se sentaram entre os combatentes. Dos que contaram os infortúnios dos pequenos deste mundo, dos que contaram os grandes feitos destes combatentes, com arte, na nobre língua outrora reservada à glorificação dos reis.”
O realizador português Pedro Costa foi recentemente agraciado com o prémio máximo do Festival de Locarno — Leopardo de Ouro — para o seu novo filme “Vitalina Varela” (2019), bem como o prémio de melhor atriz para a própria Vitalina. Um pouco por todo o mundo o cineasta tem sido reconhecido pela sua carreira. Seja por motivos de distribuição ou divulgação, seja pelo preconceito generalizado que o público português nutre contra o seu próprio cinema, a verdade é que, fora da celebração momentânea pelos prémios que vai colecionando, tarda em chegar um reconhecimento pleno do seu trabalho.
Mais do que em qualquer autor contemporâneo a obra de Pedro Costa cresce por acumulação. Cada filme nega, desafia e subverte o anterior, uma jornada que é enriquecida pelas ligações que se vão estabelecendo entre as obras, numa constante tensão entre a imagem e as pessoas que a habitam. E que pessoas são estas que habitam as imagens do realizador? Inicialmente são apenas atores (“O Sangue” (1989)), depois atores e não atores (“Casa de Lava” (1994), “Ossos” (1997)) e por fim apenas não atores (“No Quarto da Vanda” (2001), “Juventude em Marcha” (2006), “Cavalo Dinheiro” (2014)). Quando falamos de não atores, falamos de pessoas que se interpretam a si próprias, entrando aqui uma das discussões que mais se forma em torno da obra do realizador, onde acaba a ficção e começa o documentário? Como o próprio costuma responder em entrevistas: é irrelevante.
Sem desprimor pelo seu filme de estreia, “O Sangue” — que partilha mais traços com o cinema português dos anos 80 que com a restante obra, apesar de já se notar de forma evidente a sua impressão digital — o cinema de Costa nasce em “Casa de Lava”. Só lá poderia nascer, em Cabo Verde, e, conforme os seus protagonistas, cresce num permanente limbo, entre Cabo Verde e Portugal, a vida e a morte, o passado e o presente, a realidade e o sonho. Em “Casa de Lava” o realizador ainda aparece projetado nas imagens. Mariana (Inês de Medeiros) é o avatar do realizador dentro do filme, enquanto corpo estranho que se depara com um novo mundo. No final das filmagens do filme os não atores cabo-verdianos entregaram cartas (que peso têm no seu cinema) ao realizador, endereçadas aos seus familiares residentes em Lisboa. E foi nesta distribuição de cartas pelos subúrbios da capital que Pedro Costa descobriu o Bairro das Fontainhas e os seus habitantes, pelos quais se fascinou, que originaram o seu filme seguinte “Ossos”, e de onde nunca mais saiu.
Pedro Costa filmou “Ossos” invadindo o bairro com todo a logística associada a uma produção cinematográfica convencional. Incomodado com todo o aparato das filmagens, que condicionava a vida dos residentes das Fontainhas, o cineasta decidiu passar a filmar com apenas uma câmara digital portátil. Acabaram-se as gruas, os holofotes e as gigantescas equipas de produção, passou a ser Pedro Costa, a câmara digital e pouco mais. E assim chegamos a “No Quarto da Vanda”, um dos mais influentes filmes do século XXI. O realizador viveu parte dos seus dias naquele bairro, meses a fio, quase sempre fechado no quarto da Vanda Duarte, só uma pequena câmara digital a mediar, uma cumplicidade ímpar, um humanismo sublime. Estamos dentro do quarto, mas ouvimos as bulldozers lá fora, a destruir o bairro aos poucos, fora de campo. O dentro e fora são uma constante nos seus filmes, as portas e janelas como símbolos de passagem, onde o interior e o exterior se fundem.
Em “Juventude em Marcha” começa a evidenciar-se uma (ainda) maior aproximação ao expressionismo (Murnau, Fritz Lang), e foco na alienação dos seus personagens, evidenciada nos planos (à la Antonioni) de Ventura no Casal da Boba, o novo bairro para onde os habitantes das Fontainhas foram realojados, contra a sua vontade. A própria aparição de Ventura nos filmes altera o paradigma. A sua hipnotizante presença transfere para a imagem uma estonteante serenidade. Passeia-se pelos escombros das Fontainhas e pelo novo bairro social, qual morto-vivo que traz dentro de si todo um passado, as memórias da sua esposa e do seu Cabo Verde, as promessas e ilusões que o sonho português nunca foi capaz de concretizar. Costa começa agora a jogar, de forma mais vincada, com o tempo e o espaço fílmicos, algo que atinge o seu apogeu na obra prima “Cavalo Dinheiro”.
Para lá chegar foi filmando e refilmando 4 curtas metragens que partilham imagens entre si, como se o realizador estivesse a experimentar com a montagem, apurando o exorcismo que garantiria a Ventura na sua última obra. Aquilo que aparentava ser documental na Trilogia das Fontainhas (“Ossos”, “No Quarto da Vanda” e “Juventude em Marcha”) é subvertido em “Cavalo Dinheiro”. O Ventura (não)ator é sempre o mesmo no decorrer do filme, mas tanto estamos em 1975 como em 2014, na fábrica abandonada onde trabalhava outrora, no Hospital de Santa Maria ou no Jardim da Estrela. As pessoas que invadem a tela tanto podem ser reais quanto fantasmas, miragens ou ilusões. É a incerteza geográfica e temporal que as imagens transmitem que criam um impacto tão profundo no espectador, onde o passado é presente e o presente é passado. Depois de muitas portas, janelas e túneis com destino incerto aparece agora o elevador, na mais colossal e tenebrosa cena filmada por Pedro Costa. E conhecemos Vitalina Varela, que veio de Cabo Verde para Lisboa, chegando 3 dias atrasada ao funeral do marido. Estiveram 30 anos separados, na eterna esperança de terem dinheiro suficiente para se reencontrarem, algo que nunca sucedeu.
O que mais deslumbra em Pedro Costa é forma como constrói autênticos monumentos a estas pessoas — a quem a sociedade voltou as costas, que vivem em plena pobreza, muitas vezes agarradas a drogas pesadas — sem nunca recorrer à representação gratuita da miséria humana, à fácil e questionável manipulação do público. Os filmes do português colocam em causa toda a ética de obtenção de imagem associada a muitos documentários, reportagens e ficções, que sensasionalizam o sofrimento de outrem, e que, mesmo bem intencionados, criam um fosso ainda maior entre o representado e o espectador.
Fora da narrativa ligada aos emigrantes cabo-verdianos, Pedro Costa realizou ainda “Onde Jaz o teu Sorriso?” (2001), filme que acompanha os realizadores franceses Jean-Marie Straub e Danièle Huillet — referências maiores do cineasta — e considerado, por Jean-Luc Godard, o melhor filme já feito sobre o cinema e a montagem. Já “Ne Change Rien” (2009) é um retrato da atriz e cantora francesa Jeanne Balibar durante o seu processo de criação artística. Apesar de fugirem de alguma forma ao tema central do cinema de Costa partilham com os restantes filmes a mesma abordagem técnica (planos estáticos, jogo de luz e sombra, etc.), vivendo também na ténue linha que separa o documentário da ficção.
Os filmes do realizador português não são fáceis de digerir, incomodam, confundem e baralham. Mas é o desafio que propõem que lhes permite alcançar o sublime e tornarem o Ventura, a Vanda ou a Vitalina em personagens universais, glorificadas como reis pela linguagem cinematográfica do cineasta. Aguardemos então pelo lançamento de “Vitalina Varela” nos cinemas portugueses, convictos que — como se diz por aí — cada filme de Pedro Costa é melhor que o anterior, por mais impossível que isso possa parecer.