Primavera Sound (dia 2): o triunfo de um óptimo alinhamento
Ao segundo dia de Primavera Sound Porto, ainda o terreno não havia recuperado totalmente do dilúvio da noite anterior e já havia prenúncios de algo pior ainda. Mas não foi esse o caso, pois a chuva maioritariamente deu tréguas a um dia em que todos os concertos foram no mínimo bons, com ênfase no “bom”. Foi uma amostra de música de qualidade a que o Primavera Sound nos tem habituado desde o início, mas que ainda assim consegue surpreender quando acontece.
O festival abriu com os concertos dos portugueses Fumo Ninja e Quadra, cujos finais de concerto ainda apanhamos, mas não o suficiente para tecer uma opinião formada. Ficámos com pena de que tivessem sido a única amostra do dia do que se faz musicalmente em Portugal, mas pelo menos acreditamos ter sido bem representados.
À semelhança do que aconteceu no ano passado com os Beach Bunny, este ano o Primavera Sound voltou a receber uma banda viral de surf rock, desta vez com os adequadamente intitulados Surf Curse, cuja canção “Freaks” ficou popular no TikTok em 2020. Quando o contexto para a ascensão de uma banda é a força do algoritmo, ficamos sempre de pé atrás. No entanto, os Surf Curse são inegavelmente uma banda com garra e com amor pelo que fazem.
O vocalista Nick Rattigan também serve de baterista, uma combinação de funções que, ao vivo, acrescenta uma camada extra de intensidade às canções. As letras gritadas de forma ofegante tornam as canções mais urgentes, instando-nos a senti-las tanto quanto a banda em palco. No final, depois de serem informados que apenas tinham 5 minutos para terminar o concerto, fizeram um sprint para incluir duas canções, “Sugar” e “Disco”, nessa curta janela de tempo, com uma paixão contagiante que chegou a todo o público que se animou ao ver as nuvens dissiparem-se para um final de tarde agradabilíssimo.
Para colmatar esse final de tarde, vimos o belíssimo concerto de Núria Graham, catalã que mistura folk, jazz, rock e toques suaves de electrónica. Foi um daqueles óptimos concertos que pouca gente viu, típicos das tardes indolentes de Primavera Sound. A sua música pacífica pareceu parar o tempo por um pouco, com tempos airosos e clarinetes que nos lembraram de Lucrecia Dalt, mas com menos negrume e mais bucolismo. A banda em perfeita sintonia ajudou Núria a apresentar o seu mais recente álbum, Cyclamen, do qual tocou, entre outras canções, a deliciosa “The Catalyst”. Para o final, reservou “Peaceful Party People From Heaven”, canção que pareceu materializar-se do ar, evoluindo de uma introdução de jazz abstracto para uma canção de rock carregada, explodindo finalmente num clímax que nos despertou da idílica admiração em que nos encontrávamos.
E ainda bem, porque logo a seguir regressámos ao palco Plenitude — o palco para quem se queixa de que “falta rock” — para o concerto dos The Murder Capital. A banda irlandesa, repescada de um concerto bem-sucedido no Vodafone Paredes de Coura do ano passado, mexe-se nos terrenos de bandas como Idles, Fontaines D.C. ou Shame. Apesar da veia agressiva e da distorção da sua música, retêm uma sensibilidade melódica que adiciona profundidade às canções, não sendo apenas meras desculpas para fazer um pouco de headbanging. O vocalista James McGovern tem uma atitude blasé que encaixa bem nas canções intensas, trazendo uma leveza à performance, de quem parece estar a desfrutar realmente do que está a fazer.
Continuando na música de guitarras, fomos para o palco Super Bock ver o concerto dos canadianos Alvvays, que vieram apresentar o aclamado Blue Rev, disco lançado no ano passado. A sobreposição com a actuação de Arlo Parks foi uma das que mais nos custou, mas tendo em conta que vimos o seu concerto há menos de um ano, achámos por bem variar. Os Alvvays poderiam ser apenas mais uma banda de indie rock — e talvez para algumas pessoas o sejam — mas têm um ouvido para criar melodias orelhudas, o que é importantíssimo neste género musical.
Ouçam-se os exemplos de “In Undertow” ou “Archie, Marry Me”, tão gloriosamente tocadas que até o sol apareceu por entre a chuva. Os ganchos melódicos de todas as canções são tão intuitivos que, quem tenha a mínima noção da discografia da banda, sente um impulso de cantar com ela, mesmo não sabendo as letras. A actuação empenhada de todos os membros também nos incentiva a querer fazer parte dessa sintonia, para além de cimentar a aparente honestidade da sua arte. Já perto do final, o público juntou-se para cantar a quase-balada “Dreams Tonite”, cujo refrão expressa o simples e belo desejo de encontrar alguém nos seus sonhos.
No palco Vodafone, já no lusco-fusco, apanhámos o concerto de Maggie Rogers. Outrora promessa do pop alternativo e levemente electrónico, agora parece encarnar o espírito de cantora do Coyote Bar, re-trabalhando as suas músicas mais antigas para lhes dar uma roupagem country pop que, curiosamente, funciona muito bem mesmo fora do contexto do Midwest norte-americano. E funciona por três motivos principais: para já, porque as canções são realmente bem compostas, porque a voz de Maggie transmite muita emoção e, principalmente, pela sua reluzente energia.
Saltitando pelo palco e dançando, mostrou-se genuinamente grata pela reacção entusiasta do público, que suportou a intermitente chuva para a acompanhar. Aliás, até parece ter ficado surpreendida pela reciprocidade que encontrou no público do Porto. “Sempre quis cantar esta música com chuva”, disse antes de se atirar à canção viageira “Anywhere With You”. Interpolou o final de “Retrograde” com uma versão de “I Wanna Dance With Somebody”, de Whitney Houston, e foi impossível ficar indiferente à sua presença de palco.
Outra artista com óptima presença de palco é Michelle Zauner, mais conhecida pelo seu projecto de indie rock, Japanese Breakfast. Em palco, a peça central era um enorme gongo, que Michelle usa logo na primeira canção. Cantando e ziguezagueando pelo palco, usou o retinir do gongo para adicionar intensidade a “Paprika”, canção que abre o seu mais recente disco, Jubilee. O início manteve essa atmosfera mais dançável e intensa, envolvendo o público no espectáculo de forma a que não desgrudasse mais, mesmo durante as canções mais calmas. O final do concerto espelhou o início, usando canções como “Everybody Wants to Love You” ou “Slide Tackle” para terminar em altas. Foi um concerto genuinamente agradável e uma óptima introdução mesmo para quem não conhecia nada que a banda tenha feito.
De seguida, no palco ao lado, entrámos claramente na fase electrónica da noite, com o muito ansiado concerto de Fred Again.., o DJ britânico que tem feito hordes de fãs por todo o mundo com a sua música confessional que pega no house, garage, jungle e outros géneros de música electrónica característicos do Reino Unido. Pegando em memos de voz, samples de canções ou fragmentos de histórias de redes sociais, Fred usa a repetição a seu favor e encontra os elementos rítmicos no quotidiano, elevando-os a clímaces emocionais verdadeiramente catárticos. Foi assim neste concerto no Porto.
Apesar de demorar um pouco a engrenar, com buildups demorados em que somava elementos durante largos minutos, o concerto finalmente explodiu em música de rave que contagiou toda a gente até ao cimo da colina do Palco Vodafone. Poderia ser apenas mais um concerto de música electrónica, mas voltamos a mencionar a palavra que mais nos tem tocado nesta edição: “honestidade”. É algo bastante notório na maneira de agir de Fred, cuja felicidade e gratidão se sentem na maneira como se dirige ao público e na sua música. Não éramos acólitos do culto de Fred Again.., mas passámos a ser.
Entretanto, numa repetição do que se passou em 2019, quase uma hora antes do concerto de Rosalía, já uma grande turba de gente se concentrava em frente ao palco Porto. Ignorando a lama debaixo das suas solas, o público fervilhava de entusiasmo. Depois de uma introdução com uma música de hyperpop japonês, lá entra a artista da noite, a nova estrela pop sincera que parece ser boa em tudo o que faz. O concerto abriu com a sequência de “SAOKO”, “BIZCOCHITO” e “LA FAMA”, abrindo logo o apetite para o chorrilho de hits que se seguiriam. Por várias vezes, dirigiu-se ao público em português, agradecendo o carinho, anunciando o lançamento do seu mais recente single, “TUYA” (apesar de não ter cantado), e tecendo comparações entre o fado e o flamenco antes de apresentar o duo “DE AQUÍ NO SALES” e “BULERÍAS”.
O concerto apresentado foi uma versão truncada da Motomami World Tour que passou por Portugal em Novembro do ano passado, ajustada aos tempos e limitações de festival. Apesar disso, não perdeu o impacto e acrescentou novas componentes muito bem-vindas, como o remix estilo “Sailor Moon” do sucesso do Verão passado, “DESPECHÁ”, ou novas coreografias para canções como “DIABLO” ou “MALAMENTE”. Para além disso, a qualidade de som foi incomparavelmente melhor que a dos fóruns em que se apresentou em Lisboa e Braga, permitindo-nos realmente ouvir o portento que é a sua voz. Aliás, depois da balada “HENTAI” ou da sua versão de “Héroe”, de Enrique Iglesias, nenhum detractor lhe pode retirar mérito relativo à qualidade vocal.
Para o final, o comprimido de reggaeton “CHICKEN TERIYAKI” e a electrizante “CUUUUuuuuuute” terminaram o concerto com elevada energia e em beleza. Mesmo sabendo que este é um concerto altamente planeado e preparado, sem grande espaço para improvisações, Rosalía consegue reter um sentido de imprevisibilidade e genuinidade que cativa quem estiver disposto a deixar-se cativar. À terceira vez que vemos a artista ao vivo, simplesmente não queremos deixar de o fazer. Entusiasma-nos pensar o que o futuro reserva para uma das artistas mais excitantes da actualidade.
Apesar de muita gente ter vazado o recinto depois deste concerto, ainda havia três opções: atacar o clubbing do Palco Bits, continuar na onda do reggaeton com o concerto de Mora ou ver um dos concertos mais inesperados do alinhamento.
Os Jockstrap são um projecto altamente difícil de caracterizar. O início do concerto fez-se de batidas angulosas e sintetizadores desajeitados, como se alienígenas tentassem replicar música electrónica dançável. Aliás, o duo parecia estar ligeiramente desconfortável por estar em palco, transmitindo um comportamento amador. No entanto, quando chega “Neon” e o seu trip-hop abrasivo, sentimo-nos na presença dos Portishead da altura de Third. Mas eis que a banda faz mais um desvio, quando a vocalista Georgia Ellery pega na guitarra e inicia a balada folk de “Glasgow”.
Já sabíamos que a música dos Jockstrap era imprevisível, mas ao vivo isso ficou ainda mais aparente. Baladas aparentemente lineares são destruídas com poços de baixo cavernoso e noise, como em “The City”, a calmaria de “Concrete Over Water” é entrecortada pelo maravilhoso refrão electropop completo com violino tocado ao vivo… Enfim, há uma sensação de desconhecido que torna um concerto dos Jockstrap particularmente entusiasmante. A despedida faz-se ao som de “50/50”, a sua canção mais desvairada, tendo o concerto desembocado numa proto-rave que só não evoluiu para mais porque era hora de ir para casa descansar.
Aliviados pelo clima relativamente domado, mas também assoberbados pela quantidade de boa música que ouvimos ao longo de todo o dia, abandonamos o Parque da Cidade com o plano de voltar no dia seguinte, para ouvir nomes como Pet Shop Boys, Darkside, St. Vincent, Tokischa, Self Esteem, Central Cee, entre outros.