Reportagem. O amigável duelo dos pianistas Raúl da Costa e Vasco Dantas no Festival de Sintra
Já havíamos dito por aqui, há uns dias, que um dos eventos mais fascinantes do Festival de Sintra era o duelo de pianistas entre os virtuosos Raúl da Costa e Vasco Dantas, dois dos nomes mais aclamados da música clássica contemporânea portuguesa. O festival orgulha-se do seu ecletismo, da variedade de alinhamento e do seu esforço de recontextualização da música e da performance, que pretende aproximar público e artistas ao mudar a forma como os mesmos interagem. Já o fez mais cedo esta semana com uma caminhada-concerto, e agora voltou a fazê-lo com um formato roubado ao século XIX: os duelos de piano.
Foi esse contexto histórico que nos foi apresentado pelo musicólogo e compositor Edward Ayres d’Abreu. O também director do Museu Nacional da Música discorreu sobre a história dos duelos, desde os tempos idos de 1300 até ao século passado. Sejam duelos de sangue, sejam estes inofensivos duelos musicais, há um fascínio humano por este formato em que duas pessoas se defrontam. Claro que, no programa desta noite que vos estamos a contar, a fasquia não estava tão alta como outrora, pois para além de os dois músicos serem amigos de larga data, sabíamos que uma “derrota” não retiraria mérito a qualquer um dos artistas.
Foi exactamente isso que Martim Sousa Tavares, director artístico do Festival de Sintra, deu a entender no seu discurso de inauguração da brilhante noite que proporcionou aos cerca de afortunados que marcaram presença no Salão Nobre do Palácio de Seteais. Apesar do luxo que caracteriza as salas do palácio e da atmosfera burguesa inerente a um concerto daquele estilo musical, o espectáculo teve uma leveza e despretensiosidade emanada pelos dois protagonistas da noite. Ao longo de quatro rondas, os dois alternaram em frente às teclas, escolhendo obras bastante diferentes para demonstrar os seus dotes.
Atirou-se uma moeda ao ar e ficou decidido que seria Raúl da Costa a abrir as hostes. Para tal, escolheu a “Toccata”, de Robert Schumann, reconhecida como uma peça incrivelmente difícil e uma prova de virtuosismo e stamina para quem se propõe a tocá-la. Tocada de forma alegre e dinâmica, foi uma mostra impressionante de talento ao piano. Para contrapor a fogosidade dessa obra, Vasco Dantas escolheu a transcrição de Franz Liszt (acólito dos duelos de piano) do final da ópera de Wagner, “Tristão e Isolda”. A sua versão onírica, teatral e francamente emotiva arrancou fortes aplausos da plateia e uns dos primeiros “bravo!” da noite.
Para a segunda ronda, Raúl também atacou mais a emoção, escolhendo a bela “Balada N.º4″ de Frédéric Chopin, que ainda assim também requer bastante destreza técnica. No entanto, Vasco voltou a sair por cima com a sua rendição de três d’”O Pássaro de Fogo”, balé de Igor Stravinsky, na transcrição de Guido Agosti. Apesar de, provavelmente, não terem passado mais de dez minutos na sua actuação, a peça passou por momentos bastante diferentes. Ocasionalmente, soava dissonante, noutras quase parecia uma ópera de rock progressivo tocada ao piano, momentos esses intercalados com passagens mais tranquilas.
Para o terceiro segmento da noite, os pianistas voltaram-se para a música feita em português. Raúl da Costa escolheu as “3 Scenas Portuguesas” de José Vianna da Motta, obra já interpretada em disco pelo rival. Ao longo dos três andamentos — “Cantiga d’Amor”, “Chula” e “Valsa Caprichosa” — o piano parecia cantar, exsudando uma ligeireza característica da música popular portuguesa. Foi um momento airoso e belíssimo. Vasco Dantas escolheu uma sequência de fados para a sua terceira interpretação da noite — “Fado Corrido” de Alexandre Rey Colaço, “Fado” de Eduardo Burnay e as suas próprias versões de “A Folia” e da clássica “Gaivota”.
Nessa altura, começamos a ficar cada vez mais investidos no duelo, sabendo que a duração das palmas após cada interpretação determinará o vencedor. Para além de estarmos envolvidos na música e de cada pianista nos ir surpreendendo mais a cada ronda, ainda temos o entusiasmo de poder contribuir activamente para o resultado final.
Mas antes ainda tínhamos uma última ronda para a derradeira prova de talento. Raúl fez-nos a “Sugestão Diabólica” de Sergei Prokofiev, uma curta obra que parece uma autêntica descida ao inferno, tocada com esmero e de uma forma deliciosamente macabra. Por outro lado, Vasco foi mais clássico e interpretou mais delicadamente uma das Variações de Vladimir Horowitz da ópera “Carmen”, de Bizet.
No final, qualquer um dos dois teria sido um justo vencedor, mas a diferença de apenas 13 segundos nos aplausos deu a vitória a Vasco Dantas, mas no final quem realmente saiu a vencer foi o público.
Até porque, como os dois pianistas já nos tinham prometido na entrevista que nos concederam há umas semanas, houve espaço para mais algum “fogo-de-artifício”. A quatro mãos, os dois interpretaram a suite “Peer Gynt”, de Edvard Grieg, que inclui as incontornáveis obras “Morning Mood” e “In the Hall of the Mountain King”, e ainda a “Dança Húngara N.º 5”, de Johannes Brahms.
O Festival de Sintra continuará o seu programa até ao próximo dia 25 de Junho, com muitos mais momentos inusitados de música, espalhados pelo concelho de Sintra.