Reportagem. Um dia no Festival de Sintra com João Barradas, Jonatan Alvarado e Filho da Mãe
A chuva que caiu no primeiro dia de Verão fez com que a caminhada-concerto, uma das novidades e certamente um dos pontos altos da 57.ª edição do Festival de Sintra, agendada para as 5 da manhã fosse adiada para o dia seguinte, o que também fez com que passássemos todo o dia num cá e lá. E o dia começou, de facto, cedo. Eram umas 4 da manhã quando saímos de casa, fizemos todo o caminho até à Peninha (Serra de Sintra) e vimos, talvez, 2 carros pelo caminho. A um dia de semana, a noite parece colocar o mundo em suspenso mesmo numa das principais e mais movimentadas vias de acesso a Lisboa.
Não nos lembramos muito bem da última vez que vimos o nascer do sol sem ser na varanda do Lux, mas quando ouvimos falar da caminhada-concerto que iria ocorrer algures na serra, não tivemos grandes dúvidas de que haveríamos de estar presentes. E há vários motivos pelos quais repetiremos a façanha. Um deles é o caminho, quase meditativo, numa aparente desorganização do nosso relógio biológico. Em segundo lugar, o mergulho na natureza, na calma que nos traz. E em terceiro, uma carga emocional que jurávamos não ser possível quando, no meio do silêncio deliciosamente imperfeito da natureza, a música irrompe e o sol começa a subir a nascente.
João Barradas é um dos mais distintos e prolíferos acordeonistas da actualidade. Movendo-se entre o jazz, a música clássica e de improviso, João Barradas, que apanhámos a meio do caminho, vem coleccionado distinções e colaborações, como, por exemplo, Peter Evans, Mike Stern, Camané ou Rufus Reid, entre outros. Já pisou palcos de todo o mundo, como a Phillarmonie de Paris ou a Wiener Konzerthaus. Dois dias antes havia actuado do Palácio de Montserrate, desta vez, em cima de um não menos nobre penedo, com uma vista privilegiada sobre a Serra de Sintra para um lado, para o Atlântico para outro.
Começou por tocar Mein Jesu, was für Seelenweh, BMW 478, de J.S. Bach. E nós, com os olhos postos naquele imenso círculo laranja que ia timidamente irrompendo lá no horizonte, esquecemo-nos do lufa-lufa do dia-a-dia, das horas que roubámos ao sono para estarmos ali. E como o espaço era todo do João Barradas, ouvimos Prelude I, da sua autoria, cujo início marcou o compasso do nascer do sol e quase que o nosso ritmo cardíaco, passando para Cuatro Estaciones Portenas, de Astor Piazzolla.
A beleza da música clássica, para quem não ouve habitualmente música clássica, é a forma como a nossa imaginação deambula. Como damos o nosso sentido a cada nota, a cada acorde. E se não houvesse qualquer outro motivo para estarmos — passemos o cliché — gratos por aquele momento, o sentirmos que o nosso pulsar se alinha com a melodia já seria suficiente.
Já o sol ia alto quando João Barradas interpreta Drei Klavierstücke, de Schubert. O regresso a casa fez-se com uma sensação de harmonia. E sim, repetiremos — o local e os concertos de Barradas.
Martim Sousa Tavares, o director artístico do Festival de Sintra, disse-nos que não perdiria certamente o concerto de Jonatan Alvarado, que ocorreu ao final da tarde na belíssima Sala dos Cisnes no Palácio Nacional de Sintra. Depois de alguma pesquisa, verificámos que as Voces de Bronce, o disco gravado por Jonatan Alvarado para celebrar as vozes argentinas da primeira metade do século XX, foi preparado quase como um gesto de amor pela família, pelos laços pessoais que se enleiam com a música. A sua avó apresentou-lhe “Soledad”, de Carlos Gardel, e passou a chamar-lhe “a nossa canção”, quase que numa passagem de testemunho entre gerações. E Jonatan Alvarado homenageia os laços familiares, a tradição e a memória com um trabalho histórica e eximiamente informado, que passa pela indumentária, pela entoação, aos instrumentos que são da época. Acompanhado por Jessica Denys, exímia guitarrista de origem flamenga, Jonatan mostrou-nos o que é o tango nas suas origens, a profundidade das suas letras, a melancolia.
Também Juan Vizán e Sophia Patsi se juntavam, revezadamente, a Jonatan e a Jessica. Um dos momentos mais marcantes — para esta escriba — foi quando Sophia Patsi se juntou a Jonatan e a Jessica. Cantora lírica grega, deu razão às muitas pessoas que dizem que Grécia, Itália, Portugal e América Latina partilham do mesmo sangue. A sua interpretação, sozinha ou acompanhar Jonatan na voz, pareceu-nos quase um fado, um pesar de alma que só se consegue transmitir pela música.
A noite ia longa quando fomos para o Portal dos Guardiões, na Quinta da Regaleira, para assistirmos ao concerto de Filho da Mãe, o alter-ego de Rui Carvalho.
De entre as muitas mil definições de música clássica que já ouvimos, ficámos com a seguinte na memória: “música clássica é aquela que perdura no tempo”. Pode parecer uma definição preguiçosa de quem não percebe muito da história da música, mas não temos dúvidas algumas de que a música de Filho da Mãe perdura e perdurará no tempo. Já o seguimos há muito, a beleza algo angustiada das suas composições fazem-nos formar cenários, ambientes. O dedilhar de cordas traz-nos mais do que apenas um som, é como se de repente sentíssemos frio, dor, calor, alívio. Rui Carvalho, com todo o mistério que a Quinta da Regaleira nos traz, levou-nos pela mão a todas as emoções que sente ao compor e ao interpretar.
E o dia já ia bastante longo para nós quando o concerto de Filho da Mãe terminou. Das quatro da manhã à 1 da manhã do dia seguinte, abrimos espaços, (re)aprendemos momentaneamente a parar. Agradecemos o respeito pela música que todos os espectadores do Festival de Sintra com os quais nos cruzámos demonstraram. Agradecemos as folhas de sala que nos servem de cábula para que possamos estudar, ouvir novamente o que não conhecíamos. O Festival de Sintra vai na sua 57.ª edição e termina amanhã, domingo. E é mais do que apenas música.
Por motivos pessoais, não nos foi possível assistir ao concerto de André Gaio Pereira, Entre Bach e Paredes, que ocorreu neste dia.