Reportagem. Um piano sob os pinheiros: a caminhada-concerto de Catherine Morisseau no Festival de Sintra
É talvez um dos mais curiosos e inusitados destaques da programação do Festival de Sintra, a decorrer até dia 25 de Junho: o conceito das caminhadas-concerto, que a experiência de se fazer um trilho na natureza e a de ouvir um concerto de música clássica ao ar livre, num setting-informal, sem palcos ou distância entre os artistas e o público. A primeira destas caminhadas abriu a manhã do primeiro fim-de-semana do festival: e a experiência de ouvir as belíssimas composições de piano de Catherine Morisseau debaixo das copas dos pinheiros surpreendeu pela magia do momento.
Começamos a caminhada num miradouro debruçado sobre o imenso oceano, nas Azenhas do Mar. Sabemos que temos pela frente um percurso de quatro quilómetros, mas não sabemos que tipo de trilho nos aguarda — a mesma sensação de quando vamos a um concerto e não sabemos que músicas vão surgir no alinhamento. A maior parte do grupo multi-geracional leva mochila às costas, com água, e calçado confortável nos pés. A pianista avança e apresenta-se, e há um primeiro aplauso espontâneo por parte do grupo, quase como se o concerto já tivesse começado.
Segue-se esse prolongado momento entre a subida da artista ao palco-caminhada e o início da performance propriamente dita. A sensação é estranhamente poética: caminha ao nosso lado a pianista, com as mãos e os dedos que hão-de presentear-nos com a sua música, mas a demanda que fazemos todos juntos é em busca do piano de onde será possível, então, extrair esse som que procuramos e nos levou ali.
Catherine trilha com o público, de forma descontraída. Mete conversa connosco, diz que há sempre um nervoso miudinho na antecipação de um concerto, mas a sua atitude é muito descontraída. Depois de um primeiro troço ainda algo urbanizado, aventuramo-nos por um trilho menos regular. Para trás ficam as casas, e começamos a explorar o pinhal situado entre as Azenhas do Mar e Janas, que em certos momentos parece fechar-se sobre nós. Atravessamos um canavial cerrado, subimos e descemos encostas, contornamos um charco tendo o cuidado de não deixar o pé cair na poça. Uma hora a caminhar, ora de sol na pele ora sob a sombra das altas copas das árvores. “Vamos chegar um pouco suados”, diz Catherine, com um simpático sorriso. Minutos depois, alcançamos uma zona ampla, sombreada, na proximidade da capela de São Mamede de Janas, erigida no século XIX e classificada como Monumento de Interesse Público desde 2014.
E ei-lo ali, nem a cem metros da capela: o piano de cauda vertical, preto, sobre estrados de madeira, na sombra dos pinheiros. O guia que nos acompanhou no caminho brinca connosco: “tudo se abandona hoje em dia no meio do mato, até pianos!”. Sentamo-nos em redor do instrumento, aproveitando o momento para nos hidratarmos e aconchegarmos o estômago. Catherine Morisseau, com um vestido em vários tons de rosa avermelhado e calçada com os seus ténis de caminhada, cola no próprio instrumento uma série de partituras, com fita cola, para resistirem ao vento. Voltando-se para o público, apresenta o primeiro trecho do concerto: aquele primeiro segmento seria uma junção de várias músicas do seu primeiro disco, “Myriades” (editado em 2018), tocadas sem interrupções e fundidas numa só. “Uma continuação da nossa caminhada. Primeiro caminhámos fisicamente, e agora podemos continuar a caminhar espiritualmente”, partilha com o público.
E toca as primeiras notas. Havia curiosidade para sabermos como soaria a acústica do piano num espaço aberto de pinhal. Soou muito bem. O piano apresentava-se com o seu brilho e peso característicos, ora nas notas agudas ora graves. Catherine dissera-nos, durante a caminhada, que se tratava do mesmo piano que tem vindo a usar no seu projecto de piano itinerante (a artista falara-nos desse projecto em conversa com a Comunidade Cultura e Arte, há algumas semanas). Uma espécie de piano de combate, posto a circular numa carrinha de caixa aberta, colocado em lugares inusitados e naturais, um piano vocacionado para interagir com a natureza. Reparámos, já próximos do fim do concerto, que um dos pedais tinha um ligeiro ranger, um daqueles pormenores que nos encantam, sons complementares extraídos do objecto-instrumento. Há música nesses sons, bem como no canto dos passarinhos, e no vento a passear-se entre as árvores (Catherine apresentou, de resto, um tema do seu futuro disco cujo título remetia precisamente para o vento a passar entre as árvores; “pareceu-me muito apropriado apresentá-lo aqui!”, partilhou).
A música de Catherine tem uma textura muito melódica, envolvente e algo mágica. Ora nas suas peças mais calmas, ora nas mais aceleradas, sente-se uma entrega e uma dedicação à estrutura de cada uma delas. Em certas instâncias, há qualquer coisa de minimalista na forma como as composições se desenvolvem, à base de repetições; por outro lado, há uma grandiosidade emotiva, desenlaces e refrões abertos e amplos. Os segmentos mais melódicos fizeram-nos lembrar algumas das composições piano de Nils Frahm; os segmentos mais mecânicos e acelerados, o belíssimo estilo de Lubomyr Melnyk.
Mas houve ainda tempo para uma surpresa muito agradável: a estreia absoluta de dois arranjos para cordas, também da autoria de Catherine: um violino e uma viola acompanharam, em timbres quentes e numa harmonia emotiva, duas das músicas tocadas ao piano. Ficava a sensação de que levávamos ainda mais para casa do que aquilo que esperávamos. A música habitou o pinhal, e, entre quem a ouvia (a caminhada-concerto teve lotação esgotada, apesar de a organização ter limitado a experiência a algumas dezenas de ouvintes, potenciando uma experiência mais íntima da mesma), muitos sorrisos e abraços, entre quem se sentava no chão ou num muro próximo. Reparámos num par de agulhas da caruma do pinheiro que caí do alto e aterra no teclado do piano. Também as árvores estavam contentes por poder assistir e participar. Quantas árvores têm a sorte de acolher um concerto de piano sob as suas copas?
Na segunda metade do concerto, e ainda antes do encore em que as cordas voltaram a acompanhar o piano, tivemos oportunidade de ouvir temas do segundo disco de Catherine Morisseau, actualmente em preparação, e que contará com explorações de sonoplastia à base de gravações de campo que a artista tem vindo a coleccionar.
A caminhada-concerto teve um sabor a experiência única, algo mágica, até. Parece-nos uma aposta certeira do Festival do Sintra, e a procura do público parece confirmá-lo: todas as restantes caminhadas-concerto do festival se encontram já esgotadas. Resta acreditar na palavra do programador Martim Sousa Tavares, que partilhou com a Comunidade Cultura e Arte que para o ano este formato irá regressar, com novos trilhos por explorar nas imediações de Sintra. Não faltarão cenários de beleza apropriada e, esperamos, músicos que continuem a aventurar-se neste propósito tão estimulante: libertar a música clássica da clausura das salas fechadas, e aproximá-la da natureza e do público, em propostas desafiantes que nos fazem redescobri-la uma vez mais, de maneira única.