“Samsara”, de Lois Patiño: uma experiência partilhada e sensorial da vida pós-morte
O IndieLisboa assumiu a estreia nacional de “Samsara”, o mais recente filme do galego Lois Patiño. Parte da geração de cineastas que criam o chamado “Novo Cinema Galego”, a linguagem cinemática de Patiño é bucólica, compassada e visualmente impactante, demorando o seu tempo para revelar histórias ou imagens desconcertantemente belas. Depois de “Costa da Morte” (2013) e “Lua Vermelha” (2020), o realizador vai para as antípodas da Galiza para assinar “Samsara”, filme passado entre o Laos, a Tanzânia e uma espécie de espaço liminal deixado ao critério do próprio público.
É que o filme concerne o fim de vida, o “bardo” (conceito budista de um estado de transição entre a morte e a reencarnação) e o que vem a seguir disso. Para isso, começamos por acompanhar um adolescente no Laos que, por entre interacções com monges budistas, lê o “Livro Tibetano dos Mortos” para uma mulher idosa que se está a preparar para o ocaso da sua vida presente. Quando a sua alma enceta a jornada que lhe permitirá escolher a sua próxima forma material, a audiência é convidada a juntar-se a essa viagem, fechando os olhos na sala de cinema por alguns minutos e imaginando essa viagem, pontuada por clarões de luz e cor filtrados pelas pálpebras, e acompanhada por gravações de conversas e sons da natureza. Por fim, despertamos todos em Zanzibar, onde a alma ocupa agora o corpo de uma cabra, e podemos acompanhar o dia-a-dia da família onde nasceu.
Como experiência cinemática, esta tripartição é extremamente bem sucedida. A parte central e, assumidamente, mais experimental é capaz de convencer mesmo os mais cépticos, mas apenas funciona graças ao esforço das outras duas narrativas. Lois Patiño está habituado a trabalhar com imagens mais despojadas de detalhes, quase “vazias”. Para este filme, levou essa ideia um passo à frente para explorar a representação do invisível no cinema, como descreve na sua nota de intenção sobre o filme. Foi assim que surgiu a ideia de sugerir ao espectador que fechasse os olhos, fornecendo-lhe material suficiente para gerar uma experiência de meditação única para cada pessoa, mas ao mesmo tempo colectiva, pois acontece no espaço partilhado de uma sala de cinema.
As personagens das outras duas partes movimentam-se em cenários lindíssimos (graças aos fabulosos directores de fotografia Jessica Sarah Rinland e Mauro Herce) e perdem-se em discussões sobre o pós-morte. No Laos, país maioritariamente budista, a reencarnação é discutida como uma crença inabalável; enquanto que em Zanzibar, arquipélago da Tanzânia maioritariamente muçulmano, fala-se sobre enterros ou então na tradição Maasai de devolver os corpos à Natureza, deixando-os na floresta para que algum animal os apanhe.
Apesar destas diferenças estruturais, o filme sugere que há mais semelhanças entre as duas histórias do que aquilo que aparentam, usando referências poéticas e visuais. A idosa laociana, a certa altura, menciona que sonhou ser uma estrela-do-mar vermelha e estar perto do mar, que nunca viu até então. Como tal, e por força do conhecimento adquirido antes de morrer, consegue reencarnar num animal numa vila costeira, mesmo em cima do mar, onde a certa altura vemos uma estrela-do-mar vermelha.
É engraçado que, para um filme que aborda tanto a morte, o tom não é pesado ou sombrio. Por exemplo, a idosa aceita a morte como parte da vida, transparecendo a paz de quem está satisfeito com a vida que levou. Para além disso, pelo meio de todos estes temas, a vida também acontece. Vemos monges budistas nos seus rituais de meditação, mas também a usar os seus telemóveis e a partilhar músicas de rap, enquanto que em Zanzibar seguimos o trabalho manual de grupos de mulheres que apanham algas para produtos cosméticos e a ambição de uma delas de criar e expandir o seu próprio negócio.
Apesar do ritmo moroso de algumas cenas, o filme não deixa cair em aborrecimento alguém minimamente interessado na experiência proposta por Patiño. Seguimos momentos belíssimos que aprofundam uma das temáticas do realizador, a “reflexão sobre a relação entre o ser humano e a paisagem”, sejam a intimidade de entrar numa casa de família onde encontramos um leito de morte, o espectáculo impressionante de uma cascata mística onde um grupo de monges se banham e a inocência de uma criança que ama a sua nova melhor amiga, uma pequena cabra recém-nascida, e brinca com ela na praia.
“Samsara” é um exemplo essencial de quando a arte segue a vida. Neste caso, até a transcende. É um slice of life incomum, na medida em que expande essa fatia com algo sobre o qual, habitualmente, o mundo ocidental não está acostumado a reflectir. A solenidade leve com que trata a morte é tranquilizante e potencialmente transformadora. Uma experiência a não perder que, infelizmente, ainda não tem data de estreia nos cinemas portugueses.