Scary Pockets no Capitólio: a contagiante alegria do funk

por Tiago Mendes,    11 Fevereiro, 2024
Scary Pockets no Capitólio: a contagiante alegria do funk
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Hoje será a vez do Porto poder viver esta oportunidade; mas calhou em sorte ser Lisboa a primeira cidade portuguesa a ter o prazer de receber um dos colectivos que hoje em dia mais parece ser capaz de mobilizar um amor pelo groove do funk; de uma forma celebratória e estranhamente pedagógica. Os norte-americanos Scary Pockets são uma banda electrizante e contagiante; e foi contagiados pelo ritmo e pelas maravilhosas linhas de baixo que saímos do Capitólio na noite de 10 de fevereiro, de sorriso no rosto.

Ryan Lerman, guitarrista e co-fundador do colectivo, contava a certa altura a história do projecto. Começou como ideia experimental, muito inspirada pela vibe dos Vulfpeck. Falamos, pois, do funk norte-americano, nascido nos anos 60, e não do brasileiro – dois géneros que em comum terão pouco mais que esse seu nome próprio. E o conceito dos Scary Pockets era, e é, pegar num repertório diversificado ao nível de géneros musicais, e aplicar-lhe um filtro funk: como se esta linguagem musical fosse uma fórmula em interacção com as canções que a banda decide interpretar. “Para quem estiver aqui esta noite inadvertidamente, é importante que saiba isto: nenhuma destas canções é nossa”, brincava Ryan Lerman. “Nós só pegámos nelas e melhorámo-as”.

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O resultado é extremamente envolvente: passando pelos The Beatles, por Radiohead, Guns N’ Roses ou Oasis; todos os lugares parecem ser bons pontos de partida. E o resultado do processo é pura diversão: é esse o sabor de um concerto dos Scary Pockets! Uma festa animada, que parece ser difícil fruir sem balançar o corpo, gesticular com as mãos imitando um dos instrumentos presentes, e fazer caretas como reacção instintiva à impressionante fruição de música simultaneamente tão elaborada e satisfatória (a chamada “stank face”, expressão que, aliás, dá nome a um dos álbuns da banda).

O palco inicial dos Scary Pockets foi o Youtube, canal onde de um momento para o outro as centenas de visualizações dos seus primeiros vídeos de covers dispararam, a dado momento, para milhões de audições numa só semana no cover de “Creep”, dos Radiohead. A partir daí a ascensão foi meteórica; e a página onde continuaram até há bem pouco tempo a fazer upload de um novo cover (muitas vezes improvável!) a cada semana já conta um total de mais de 200 vídeos e quase 250 milhões de visualizações. Experimentem ouvir as versões de “Crazy” de Gnarls Barkley, de “Harder, Better, Faster, Stronger” dos Daft Punk, ou “Stayin’ Alive”, dos Bee Gees. Cada uma delas também interpretada no concerto de Lisboa, fiel ao espírito que as performances no Youtube reflectem.

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Mas com um grande bónus, pois claro! O da experiência mágica da música ao vivo. No breve concerto inaugural da noite, que antecedeu o dos Scary Pockets, o teclista Swatkins acompanhado da banda The Positive Agenda (todos eles parte integrante da formação modular dos Scary Pockets nesta digressão europeia) frisava a importância dos concertos como um lugar que pode ser fértil no mundo: “eu acredito no poder da música ao vivo”, partilhava Swatkins, antes de se abalançar para mais um virtuoso solo de vocoder de fazer arrepiar os pelos nos braços; “esta noite desejo que vocês se divirtam, e que amanhã levem esta positividade daqui e a possam partilhar com outras pessoas”. Um convite debruado pela performance da sua música “Gotta Give It Away (If You’re Gonna Keep It)”, a encerrar a primeira parte da noite.

O serão seguiu então pelas mãos dos Scary Pockets, por toda a sensibilidade e talento que brotam do domínio exímio dos seus instrumentos. O funk é um género musical que vive particularmente das tensões rítmicas, dos jogos entre o espaço ora ocupado pelos sons ora pelo silêncio; essa sensação de “aperto” e “encaixe” permite a experiência da libertação, e de um prazer auditivo muito particular. Nesse sentido, e apesar de se sentir a vivacidade e o carinho do público pelo colectivo, talvez esperássemos um pouco mais de movimento na plateia, uma outra ginga e liberdade na fruição; boa parte do público aparentava alguma timidez na expressão física.

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Cada cover dos Scary Pockets é também uma pequena aula de escuta activa: na ponte entre as referências que conhecemos de cada uma das músicas originais e a versão a ser interpretada, há uma desconstrução do que pensávamos conhecer e uma reconstrução em directo das possibilidades de exploração harmónica e rítmica das mesmas. Somos, pois, guiados por uma curiosidade, que se torna ainda mais aguçada no espectáculo ao vivo, impactada pelas variações e pela energia criativa a surpreender-nos quase constantemente. O corpo reage e atesta, seja qual for o grau de teoria musical compreendido por cada um; isto é, quer para músicos quer para não músicos (as “pessoas normais”, como foram apelidadas pelo grupo, cujo humor foi também uma constante ao longo da noite). Todos tivemos direito, aliás, a uma pequena aula de Ryan Lerman sobre a diferença entre ritmos simples e compostos; uma pequena graça que apreciei particularmente, um momento a la Jacob Collier, que ajuda a plateia a compreender melhor os truques por trás da magia da música, de forma acessível.

Houve tempo para um cover de “Thank U Next”, de Ariana Grande, para a encantadora versão de “American Boy” de Estelle, e para dois covers dos *NSYNC (“Tearin’ Up My Heart” e “It’s Gonna Be Me”), entre tantos outros bons momentos. A experiência do “filtro funk” talvez resulte melhor com uns temas do que com outros; por exemplo, não temos a certeza se “Yesterday” dos The Beatles terá muito a ganhar com a abordagem dos Scary Pockets. Por outro lado, a inesperada versão de “Hide and Seek” de Imogen Heap é profundamente fascinante, uma transformação radical que revela a amplitude e a versatilidade da composição original.

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Justiça seja feita a todos os maravilhosos músicos que se juntaram em palco, isto apesar de infelizmente não vos conseguir citar os nomes de todos: para além dos já referidos, a baixista, o baterista, os dois incríveis vocalistas emprestaram-nos por uma noite o seu talento, num espectáculo que passou a correr, numa festa que parecia ter ainda muito mais para dar (como o repertório de Youtube da banda bem atesta). Fica este efeito contagiante, uma linha de baixo dentro da cabeça a querer continuar a contagiar o ritmo da nossa vida, influência positiva para podermos expressar e partilhar. Será talvez este um dos segredos dos Scary Pockets, não só musical mas também humanamente: este convite à alegria, ao embalo do groove; a partimos deste prazer primal para uma forma um pouco mais luminosa de encararmos a vida.

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