“Season: A Letter to the Future”: um passado em vias de extinção

por João Diogo Nunes,    16 Fevereiro, 2023
“Season: A Letter to the Future”: um passado em vias de extinção
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No outro dia, notei que a tampa da frigideira que estava a lavar tinha uma pega diferente: era circular e precisava de pelo menos dois dedos para ser levantada, em vez de ter um arco e de precisar de apenas um dedo. Nesse momento percebi que usara outra tampa do mesmo tamanho para cozinhar. Não fez diferença nenhuma, verdade, mas pensei: “Ora cá está um exemplo de algo nunca contarei a ninguém, pois não tem relevância alguma. Esta memória da minha vida morrerá comigo”. Errei.

Season começa com uma premissa genial: de bicicleta, Estelle sai da sua vila remota nas montanhas para explorar o mundo pela primeira vez e recolher as memórias de como se vive no seu tempo antes que um cataclismo as leve. Ela deixa tudo para trás para alcançar um longínquo museu onde deixará o seu diário de viagem, repleto do que sentiu, viu e ouviu pelo caminho. Tudo é explicado num prólogo extraordinário, dos mais promissores que já tive o luxo de jogar.

Notas antigas no telemóvel, uma árvore bonita, uma notícia triste, ou a conversa espetacular com o Vieira naquele muro em Alfarrobeira de Cima que achavas que era eterna. Tudo o que temos são memórias em ruína. O tempo leva tudo para o desconhecimento, mas há sempre algo que resiste mais um pouco. Esse algo somos nós que escolhemos e Season é precisamente esse processo. A escrita tem as sua falências, como desequilíbrios na proporção dos eventos na narrativa ou alguns diálogos mais fracos, mas, ao mesmo tempo, acerta em cheio noutros momentos de comentário aforístico e cumpre as suas pretensões de sentimentalizar historiografia. O amor à vida que transmite é de levantar os cabelos. Mesmo sem subtileza, fá-lo com calma e cordialidade. Season é acerca de memória, dos rituais que a vinculam na nossa perceção e do valor disso tudo.

Poético e atento à minúcia de existir, é lento como uma vela. Tem de ser. Cabe ao jogador torná-lo mais lento ainda. Documentar será importante, mas viver o que documentamos será ainda mais. O estúdio canadiano Scavengers diz que são cerca de seis a doze horas de jogo, mas, com as quinze que levei, posso dizer que há espaço para ir ainda mais devagar. A jogabilidade consiste em vasculhar o mundo de bicicleta para fotografar e gravar áudio tanto do que quisermos como do pouco que está predefinido para avançar. Depois, devemos usar esse material que toma a forma de desenhos e de uma espécie de autocolantes para compor o nosso diário como bem entendermos.

Nem todos os locais que encontramos são necessários para prosseguir.

A meio do jogo há uma rede de áreas abertas a exploração, o Vale Tieng. Aqui vamos passar grande parte do tempo à procura de segredos para o diário. Apesar de interessante e variado, é possivelmente o capítulo menos sólido, não por demérito do próprio, mas pela excelência das duas pontas do jogo. Essas, mais lineares e guiadas, são mais sumarentas, mesmo que a secção final tenha maior densidade de problemas técnicos.

As falhas são numerosas e afetam moderadamente a experiência. O grafismo é colorido e cheio de beleza para se respirar, mas esconde centenas de problemas com a colisão (muitos já resolvidos numa atualização) e inúmeras paredes invisíveis que mancham o competente design de níveis. Há também um problema que modifica o que fizemos no diário após regressar ao jogo. As prestações vocais são claramente fracas e os efeitos sonoros fraquejam em detalhes, tal como na coerência dos passos nas superfícies. A otimização não é a melhor, sobretudo no PC, e algumas sombras e animações são pouco mais do que amadoras. As barras pretas para acrescentar excelência cinematográfica à experiência ocupam uma boa porção do ecrã e não se pode removê-las, o que, com a escolha atípica da câmara na terceira pessoa para um jogo deste tipo, deixa tudo bem pequeno no ecrã.

Autocolantes, desenhos, frases, documentos, fotografias e gravações preenchem o diário.

Com ou sem falhas, Season é para quem gosta de viajar dentro e fora de si, para quem gosta de calma, para quem ouve o chamativo sussurrar do mundo e da cultura humana, mas sabe que os grilhões da realidade nem sempre permitem mais. Para estes, o jogo terá mais significado e ocupará mais tempo. Enfeitar o diário da forma mais perfeita e digna de representar um passado em vias de extinção será um deleite para quem se entregar à responsabilidade historiográfica da protagonista.

As nossas pernas são só tão fortes quanto o chão em que se apoiam. O legado dos nossos antepassados pesa-nos na imaginação e guia-nos o corpo por esse mundo fora. É como ver uma obra de arte antiga num museu e receber aquela carga de vigor que nos faz pensar: este artista esteve lá, viu, sentiu e fez; e agora sou eu. Season quer ser isso, quer ser memórias a entrarem no futuro. Evidentemente, há a rotina da realidade, que vai sempre limitando a nossa vontade, mas são ficções destas que nos deixam cheirar um pouco dessa fantasia e passar por lá um bom tempo. No diário das minhas memórias, o que ficará na página de Season será a sua beleza lenta e relembrança do peso que a nossa existência tem pelos chãos deste mundo.

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