Só o samba poderá ser Presidente do Brasil
Estou a viver há poucos meses no Rio de Janeiro, mas se me dissessem que estava aqui há anos eu acreditaria.
Família e amigos perguntam-me se está tudo bem. Não, não está. Mas não está nada bem mesmo. Não posso estar bem quando na rua vejo crianças pequenas a venderem doces entre carros a circular a 80km/h. Não posso estar bem quando sei que os meus alunos por vezes não podem sair de casa porque há tiroteios na rua deles. Não posso estar bem quando vou à praia e crianças tentam vender-me biscoito globo para poderem livrar-se do saco que carregam para irem brincar com os amigos. Não estou bem quando vou para a faculdade e encontro ônibus (autocarros) vandalizados no meio da rua ou quando acontecem assaltos no passeio à minha frente. Não posso estar bem quando vou trabalhar para a escola e ouço numa conversa entre três meninas: “me dá lápis cor de pele”, interpelo-as e depois de conversarmos, uma delas diz: “tio André, elas não acham que são negras”. Nada disto está bem.
Família e amigos interrogam-se e com razão. Cheguei ao Rio de Janeiro em Julho para um intercâmbio de pesquisa de seis meses, com o objectivo de estabelecer uma parceria com grupos de trabalho da faculdade e colaborar com uma escola municipal, mas as prioridades acabaram por ser outras. É impossível, neste momento, estar no Brasil com uma postura passiva perante tudo o que se vê, se ouve e se sente. São muitas as provocações, são muitos os discursos, são muitas as vivências que provocam tensão.
Uma hegemonia cultural insiste, persiste e fere. Estou a viver há poucos meses no Rio de Janeiro, mas se me dissessem que estava aqui há anos eu acreditaria.
O que é que de tão errado andamos a fazer para que crianças que deviam estar na escola estejam a trabalhar? O que é que de tão errado andamos a fazer para que os meus alunos tenham de saber quais são os períodos em que é seguro sair de casa? O que é que de tão errado andamos a fazer para que o transporte, que é de todos, seja vandalizado e deixado no meio da rua? O que é que de tão errado andamos a fazer para três jovens passem por mim a sorrir e segundos depois estejam a assaltar o casal que passeia atrás de mim? O que é que de tão errado andamos a fazer para que crianças de seis anos desenhem um auto-retrato com as cores rosa e amarelo para pintarem a sua pele e o seu cabelo? O que se anda a fazer de tão errado é a reprodução de sentidos e significados. Os tempos em que o Brasil viveu períodos de imposição e de maus tratos figura hoje noutro capítulo.
Vou ficar a viver mais uns meses no Rio de Janeiro e tenho a certeza de que vão parecer anos.
Família e amigos perguntam-me se vai ficar tudo bem. Sim, vai ficar. Mas vai ficar bem mesmo. Vai ficar tudo bem porque as pessoas acabam por encontrar formas de ficar mais fortes e mais esclarecidas sobre si mesmas e exaltam quem são e os ideais que defendem. Vou ficar bem quando nos botecos (estabelecimento comercial onde se vendem bebidas) por onde passo se conversa sobre quem vai ser o próximo Presidente e o que isso significa. Sei que vai ficar tudo bem quando vou para a escola e vejo os professores a mobilizarem-se para a celebração da cultura afro-brasileira. Sei que vou estar bem quando sempre que vou à faculdade encaro uma grande faixa preta “Marielle presente” e participo numa mesa redonda sobre feminicídio com a sua irmã. Por tudo isto, sei que vou ficar bem.
Família e amigos interrogam-se e com razão. Estou no Rio de Janeiro e aqui todos os dias encontro pessoas que vivem e o som que habita nelas traduz-se no seu movimento. É muito bonito quando vejo na escola professores a dançarem entre salas e alunos a saltarem para chegarem até ao refeitório. Ouço ensaios de bateria de samba. Sinto-me feliz. Sei que eles também estão, nem que seja por momentos.
Parece estar tudo errado, sei que pouco está resolvido, mas também sei que ninguém está parado. Vou ficar aqui a viver mais uns meses no Rio de Janeiro e tenho a certeza que vão parecer anos.
O que andamos a fazer de tão certo é continuar a permitir que pessoas possam se reunir, discutir e problematizar! O que andamos a fazer de tão certo é permitir que as crianças possam ir para a escola, onde tomam o pequeno almoço, lancham, almoçam, lancham de novo e jantam. O que andamos a fazer de tão certo é criar espaços para que na escola se converse sobre o que é ser-se negro e ser-se criança! O que andamos a fazer de tão certo é poder haver manifestações e a exigência contínua de respostas àquilo que se considera ser um crime! O que andamos a fazer de tão certo é a reflexão e consciente produção de sentidos e significados. O som, a cor e o sentimento prevalecerá.
Só o samba poderá ser Presidente do Brasil.
Crónica de André Freitas
Professor de Expressão Artística e Investigador em Educação na Universidade do Porto, onde desenvolve a sua tese de Doutoramento sobre a Expressividade do Corpo na Escola. Considera-se também mais um apaixonado.