Teixeira de Pascoaes: “Sem Poesia não há Humanidade”
Teixeira de Pascoaes foi um saudosista por natureza e pela sua letra. Aquilo que escreveu representou esse estado de espírito, que o transpôs para o atribulando tempo republicano, vivendo-o assim como experienciou também o monárquico e o ditatorial. Atravessando estas três partes constituintes da história nacional, contactou com diversos outros nomes grandes da literatura portuguesa, mas foi nos seus aposentos a norte que se foi firmando, tornando-se num dos mais curiosos metafísicos da literatura lusa. No entanto, e de forma irónica, a saudade esqueceu-o, tornando-se um dos autores menos relevados desta profícua época nos tempos que correm. Porém, a sua obra permanece alastrada em diferentes nomes contemporâneos, e que se sentiram influenciados pelos tributos e perspetivas desta ilustre figura.
Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos nasceu a 2 de novembro de 1877, em Amarante. Segundo de sete irmãos, desde cedo se revelou muito introspetiva, embora sensível, no seio desta família da aristocracia rural. O seu irmão João seria, também, escritor, tendo viajado para África e, lá, escrito, “Memórias Dum Caçador De Elefantes” (1924). O seu pai, culto e abastado, tornou-se numa das mais importantes influências e num dos catalisadores para o seu interesse pela vida literária e intelectual, para além da própria geografia e da natureza influírem na sua construção identitária. No entanto, não era bom aluno, apesar de se fechar em copas durante a fase boémia coimbrã, remetendo-se às leituras e à prática de escrever.
Para efetivar a sua formação, que decorreu essencialmente em Amarante, deslocou-se para Coimbra, onde finalizou o ensino secundário e se licenciou em Direito, com 23 anos. Este foi o sustento profissional de Pascoaes até 1913, exercendo, tanto na sua cidade-natal onde chegou a juiz substituto, como no Porto. Em simultâneo, foi escrevendo, dando o pontapé de saída nas obras criadas com “Sempre” (1897), uma coletânea de poesia, à que se juntou “Bello” (dividido em duas partes, lançadas respetivamente em 1896 e 1897), e “Terra Proibida” (1899). Também aqui, personifica em pleno o isolamento no qual viveu durante tanto tempo, percecionando o mundo a partir do abstrato e do religioso que há em todas as coisas, para além de procurar inspirar-se na metafísica daquilo que morava para além do que via e do que sentia. A saudade surgiu naturalmente, como a viagem que nunca existiu, e a fantasia que nunca visitou. A saudade das coisas que sentia que conhecia, apesar de nunca as ter obtido ou usufruído.
A necessidade de trabalhar nunca se pôs, pois a sua família era de posses, e passou a residir em tempo inteiro no solar dos seus parentes, em São João do Gatão, pertencente aos seus ascendentes. Vivendo com alguns dos seus irmãos e com a sua mãe, passou a gerir as propriedades associadas à família, e desvendou crescentemente a Natureza. Esse prazer, que o levou a nutrir uma paixão de grandes proporções pela Serra do Marão, levou-o a desdobrar-se na sua prática literária. Também o seu pendor introvertido e íntimo levou a que assumisse a vida de um eremita, tendo até sido descrito como um místico (sobre)natural. Era neste espaço que se reencontrava com a grandeza do ser e do viver, navegando por uma religião que, apesar de lhe ser invisível, se tornou inegável aos olhos com a sua poesia. Dava-se um fantástico processo de iluminação interior, voltando-se para a sua condição de esquecido do mundo, mas de sintonizado com o algo que havia de mais. Relativamente à moderna realidade, era um discurso que em nada se associava à mesma, voltando-se para uma dimensão muito íntima e própria, num exílio que, com gosto, decidiu perpetuar. Desta feita, o lugar onde Pascoaes vivia era um lugar que despertava o interesse de alguns dos mais notáveis autores portugueses, como Eugénio de Andrade e Mário Cesariny.
Em 1912, imbuído na sociedade intelectual nacional, fez parte da revista “A Águia”, de triagem bimensal, e que se focava em várias áreas do saber, incluindo a própria ciência, a crítica social, a arte, e a filosofia. Pascoaes foi o vulto proeminente desta redação sitiada no Porto, publicando esta somente material inédito nos prismas dos conteúdos criados em português. Dando o mote para a futura criação da revista Orpheu, esta publicação agregou vários nomes devotados ao nacionalismo literário, como Raul Proença ou António Sérgio. Grande parte da base desta iniciativa reside no movimento literário Renascença Portuguesa, criado em 1910, que aproveitou o ímpeto da chegada da república a Portugal, que foi sua contemporânea, e que necessitava de uma reconfiguração da sua identidade. Esta regeneração dos padrões culturais nacionais era o grande objetivo de um movimento que valorizaria a vida numa constante dinâmica transformativa, e com o papel da crítica na reconstrução daquilo que é o mundo e as visões sobre este.
Foi neste período que formalizou aquilo que ficou conhecido como o Saudosismo, principal premissa do seu eu criativo, na busca do “eu” que vacilou na assunção da condição humana. Mesclando a preservação da alma com uma atitude messiânica nacional, visualizando a sua atitude como uma definição daquilo que era a “alma nacional”, acabou por dar largas à criação do Sebastianismo, que seria incorporado também por Fernando Pessoa. No entanto, a relação entre ambos nunca seria a mais pacífica, sendo uma relação tensa, pautada por críticas de Pascoaes à poeta do lisboeta. Frise-se que esse Sebastianismo tem, também, origens no trabalhado e reforçado sentido patriótico, este que ressurge após o Ultimato de 1890, feito por parte dos ingleses em relação a posses no continente africano. Para além da revista acima citada, também mostrou esses predicados em “Serões” (1901-11), “Atlântida” (1915-1920), e “Contemporânea” (1915-1926).
Porém, esta posição literária agregada foi sol de pouca dura, que culminou no fim da Renascença. Uma perspetiva mais utópica e especulativa resultaria também no início de um novo grupo, denominado Seara Nova. Este viria a agregar antigos membros do grupo acima mencionado, tais como Jaime Cortesão e Proença, responsável pela formação deste núcleo; e outros novos, nomes da literatura como Raul Brandão, Aquilino Ribeiro ou Adolfo Casais Monteiro. No fundo, era um novo intento de consagrar a regeneração dos pilares sociais e criativos lusitanos, procurando ter uma ação doutrinária e pedagógica no que era publicitado.
Para além das mencionadas atrás, as obras da sua autoria individual que se destacam são:
- À Ventura (1901, poesia);
- Elegia da Solidão (1920, poesia);
- A Nossa Fome (1923, prosa);
- O Homem Universal (1937, prosa).
Ainda na saudade como argumento literário, esta entrou a partir da sua própria experiência, conferindo à sua poesia um ar carregado de nostalgia e de dor no próprio ser, este consciente da finitude e da imperfeição. Como motor da sua convicção literária, via-a como a expressão ulterior da alma nacional, tanto no sentido passado da lembrança, como futuro do desejo. No sentido estrutural da sua poesia, entregava-se à longa amplitude das frases, repousando e suspirando no seu alcance prolongado e clássico; para além de não se aventurar em metáforas, e de se posicionar com simplicidade e clareza na elaboração poética. Uma abordagem simples e recatada, mas desmesurada e impulsionada no que não se via mas se sentia, no que não se deslocava mas que estava, numa presença celestial e orbital. Um espírito que se abre e reabre à diversidade de figuras incorpóreas mas divinas, mesmo que não identificáveis, discutindo-se a sua presença ou a sua ausência. Tudo isto a partir das paisagens nortenhas do Marão, partindo da ideia onírica e idílica que esse portal lhe proporcionava, e integrando neste as pessoas, e o melhor que estas demonstram ser.
“Sem Poesia não há Humanidade. É ela a mais profunda e a mais etérea manifestação da nossa alma. A intuição poética ou orfaica antecede, como fonte original, o conhecimento euclidiano ou científico. E nos dá o sentido mais perfeito e harmónico da vida. Aperfeiçoando o ser humano, afasta-o do antropóide e aproxima-o dos antropos. Que a mocidade actual, obcecada pela bola e pelo cinema, reduzida quase a uma fotografia peculiar e uma espécie de máquina de fazer pontapés, despreza o seu aperfeiçoamento moral; e, com o seu fato de macaco, prefere regressar à Selva a regressar ao Paraíso. E assim, igualando-se aos bichos, mente ao seu destino, que é ser o coração e a consciência do Universo: o sagrado coração e o santo espírito. Eis o destino do homem, desde que se tornou consciente. E tornou-se consciente, porque tal acontecimento estava contido nas possibilidades da Natureza. Sim, a nossa consciência é a própria Natureza numa autocontemplação maravilhosa. Ou é o próprio Criador numa visão da sua obra, através do homem. E, vendo-a, desejou corrigi-la, transfigurando-se em Redentor.”
Teixeira de Pascoaes, in “A Saudade e o Saudosismo – Dispersos e Opúsculos (1998)
A sua vida não seria composta de grandes novidades desde que se afeiçoara ao Marão já na sua idade adulta, fora a sua eleição para a Academia das Ciências de Lisboa (1923), e para a Academia de Coimbra (1951). Meses depois de ver a sua mãe partir, Pascoaes viria a morrer no dia 14 de dezembro de 1952, no solar da sua família, vítima de uma doença pulmonar. A sua numerosa obra acabou traduzida para diversos idiomas, assim como seria elogiada por alguns outros poetas e líricos.
Teixeira de Pascoaes foi um poeta místico, que vislumbrou o potencial da sua essência ao alcance dos vales e dos lugares da serra nortenha que o conheceu melhor que ninguém. No Marão, respira-se a divindade aludida e sentida pelo poeta, carregando em si uma compreensão que nenhum humano conseguiu reunir e assumir. No seu sentimento, carregou um vigoroso panteísmo, que se multiplicou em versos e em premissas de uma perceção única na literatura nacional. No âmago de tanta saudade, a esperança da alma renovada e reencontrada com o melhor de si, com o expoente clarificado pelos deuses que conheceram residência nas serras e nas terras líricas de Pascoaes.
“Quantas vezes, ficava a olhar, a olhar
A tua dôce e angelica Figura,
Esquecido, embebido num luar,
Num enlêvo perfeito e graça pura!E á força de sorrir, de me encantar,
Deante de ti, mimosa Creatura,
Suavemente sentia-me apagar…
E eu era sombra apenas e ternura.Que inocencia! que aurora! que alegria!
Tua figura de Anjo radiava!
Sob os teus pés a terra florescia,E até meu proprio espirito cantava!
Nessas horas divinas, quem diria
A sorte que já Deus te destinava!”Teixeira de Pascoaes, in ‘Elegias‘ (1912)