Temos de falar de EU.CLIDES
Temos de falar de EU.CLIDES, de seu nome Euclides Gomes Jr., e que visitou o Porto, nomeadamente o M.Ou.Co. Radicado em Paris mas com o coração por cá, foi alguém que tivemos o privilégio de entrevistar, mas ainda não de assistir, de escutar, de experienciar, de por lá ficar de corpo e alma. Antes de surgir a oportunidade de o entrevistarmos, já o tínhamos ouvido, admirado, adorado. Mesmo antes do sensacional e tocante álbum “DECLIVE”, já os seus atos isolados (os singles “Terra Mãe”, “Ira Para Quê?”, “Morto-Vivo” e o premiado EP “Reservado”), acrescendo ao “Tempo Torto” que ele e Branko viveram e traduziram em vídeo, traziam uma sensação muito especial. Uma sensação de algo profundamente melódico e que assenta que nem uma luva à medida do coração.
O génio produtivo de PEDRO (da Linha) cada vez dá mais à nova lufada de música portuguesa [a saber, entre outros, créditos na “Nova Lisboa” de Dino d’Santiago, no “Hei” de Profjam ou “Por Este Rio Abaixo” com Pedro Mafama]. Este seu talento alia-se à capacidade lírica muito atual, um tanto ou quanto inusitada e sui generis de Tota [Jónatas Pereira] (que também se vai afirmando a solo) e aos retoques sonoros de Sessa Nascimento, o brasileiro responsável pela mistura e masterização de som.
EU.CLIDES junta à sua presença, em todas estas etapas, a voz, a guitarra (foi nesta que tudo começou, desde o Conservatório em Aveiro até Paris), o sintetizador e uma presença que, embora não tão irreverente como a de Dino ou explosiva como a de Branko, tem a sua forma de se fazer sentir. Aliás, “DECLIVE” proporciona 11 temas que se inspiram em parábolas cristãs — fica o convite para o ouvinte fazer a correspondência —, parábolas essas que desencadeiam as histórias desenhadas por Tota e EU.CLIDES. São testemunhos de um percurso marcado pela gestão emocional, perante crises de ansiedade e de stress, onde a moral cristã não está ausente — daí nuances do gospel —, com base na educação que ambos tiveram.
Mas temos de falar de EU.CLIDES, guitarrista de raiz mas convertido em músico em toda a dimensão, à luz daquilo que os artistas acima mencionados, ao lado de nomes como Rita Vian, Branko [visite-se o seu disco “SDDS” e o trabalho internacional que tem feito com a sua editora Enchufada] ou Ana Moura, têm trazido à referida lufada de música. Trazem muito de muitos mundos, tantos das suas origens, como das suas viagens (físicas e emocionais), aliando o que se faz por essa Europa, fora as heranças africanas que marcam a história do ser português. Multiétnico, multifacetado, multidimensional na raça, na religião, na cultura, na forma de ver e de saborear a vida.
EU.CLIDES encarna mais um desses exemplos do que a música vive do seu cosmopolitismo, com ares que trazem experiências áridas e outras recheadas da vida, vagueando, no seu caso, entre Lisboa e Paris. A transmutação decorre por intermédio da sua arte e com o recurso a um ADN tão expansivo e diverso, que traz acordes de guitarra à portuguesa, expressões idiomáticas do idioma, sonoridades do pop e da ampla música caboverdiana, entre outros. São testemunhos que traz do seu percurso, que o uniu a nomes como Mayra Andrade, mas também aos senegaleses dos Daara J Family, e que justificam algumas comparações ao belga Stromae, embora, com EU.CLIDES, se note mais cuidado lírico e uma certa melancolia, embora viva e fértil.
Mal soubemos que vinha ao Porto — ainda por cima numa sala tão pouco experimentada como a do M.Ou.Co, distante da centralidade gentrificada — apresentar o seu doce e catártico “DECLIVE”, quisemos estar lá para o apreciar e o acarinhar pessoalmente. Aliás, só fazia sentido lá estarmos, depois de tanto nos deleitarmos a descobrir (e a dar a descobrir) o seu caminho, que tão bem explica na entrevista que nos deu. Foi alguém que, mesmo sem o saber, se tornou muito pessoal para nós, pelo acompanhamento que fez nestes três meses a partir do “DECLIVE”, em especial neste último mês. Não nos vamos alongar sobre ele (para isso existe a entrevista), mas antes partilhar o que vivemos nesta noite ainda soalheira que o tão especial junho portuense trouxe.
EU.CLIDES voltou, assim, a uma sala onde havia estado há pouco mais de um ano, por força do Suite Music, um pequeno festival de música somente portuguesa acolhido por este M.Ou.Co, que dispõe de um espaço que merece ser apresentado. Com menos de dois anos de vida, trata-se de um espaço híbrido, que tem a vertente hoteleira e a vertente cultural a ter, como ponte, um muito agradável bar, restaurante e respetiva esplanada. Complemento serviu o grande espaço exterior, no qual se podiam ouvir passarinhos e até sentir o cheiro a sardinhas.
Para além disso, apresenta uma musicoteca (com vinis, discos e livros) para os mais curiosos e apaixonados — não tivemos oportunidade de visitar, mas ficará para uma outra chance — e, claro está, um palco. Ora, numa noite de verão com esta, a sua funcionalidade revelou-se: dispõe de luz natural e de acesso para o exterior, o que permite ser arejado e francamente mais confortável de se usufruir dos convidados que recebe. Outro aspeto diferenciador deste espaço é a forma humana como olha para o seu pessoal, com técnicos de saúde física e mental à disposição deste, conforme reportado pelo Público.
Consigo, trouxe a sua entourage, composta por TOTA (embora se dê bem de guitarra nos braços, sentou-se ao sintetizador e deu ajuda nos vocais) e pelo percussionista Ricardo Coelho mas também pelos responsáveis pelo som, Berto Pinheiro e Daniel Carvalho (invisíveis mas presentes). O concerto no Lux Fragil, em Lisboa, embora com um mês de distância, havia corrido bem. De igual modo, a aparição no Festival Micro Clima, na Sociedade Musical União Paredense (na Parede, também situada na Área Metropolitana de Lisboa), elevava a expectativa, uma expectativa alimentada até pelo “nosso” bom amigo Insónias em Carvão.
As letras acabaram por ser tornar preces, preces essas que foram recitadas por nós — é o que dá torná-las tão pessoais — após a sua chegada ao palco. Quinze minutos depois de baterem as nove da noite, EU.CLIDES e companhia receberam uma ovação muito intensa de um palco que estava repleto e disponível para ouvir e se entregar à sua música. Tivemos a oportunidade de estar ao lado do filho do baterista, que, entretanto, adormeceria, por mais que o concerto se fosse tornando crescentemente disponível e familiar. Vimos gente muito jovem, mas também alguns mais velhos que até sabiam as letras e cantaram com os demais. EU.CLIDES saudou o público, reconhecendo algumas caras suas familiares e abrindo o seu “DECLIVE” para todos.
Por mais que as letras ainda não estivessem decoradas, isso não impediu o público de se sentir contagiado e envolvido por um repertório que se tornou ainda mais diferenciado ao vivo pelos acordes de guitarra dados pelo vocalista. Foram pormenores que se tornaram em “pormaiores” ao longo da apresentação de um disco que, conforme o próprio assumiu, “apesar de não parecer, deu muito trabalho”. “Té Menos Um” ou “Venham Mais Sete” seriam as que mais energizariam a audiência, sem esquecer os habitués dos seus atos isolados, como “Tubarão Azul”, “Desmancha-Prazeres” e “Ira Para Quê?”.
A prece que mais nos ficou no ouvido, contudo, seria a “Avé Maria” da faixa “4ª Feira”, que mostrou uma faceta de EU.CLIDES bem mais interativa com o público, colocando de parte a timidez que começa a ser menos comum na sua apresentação em palco. De igual modo, a dedicatória à mãe, em “24”, que apesar de, nas suas palavras, “não compreender bem o que estou a fazer”, é a sua maior inspiração. Fica a sugestão de EU.CLIDES poder trazer também, de futuro, a “Meia-Luz” e o “VOLTE-FACE”, porque poderiam, também, ter resultado muito bem neste concerto.
“S.Eu”, a música mais pessoal de todas, fecharia o alinhamento de praticamente uma hora com chave de ouro, deixando o final do concerto a cargo dos seus fiéis compinchas, mostrando que, afinal de contas, muito deste disco também é deles. O forte abraço que os três trocaram no remate do concerto mostrou o sentimento de irmandade e de missão cumprida deste espetáculo, que mostrou o artista EU.CLIDES (que não quer ser vedeta, mas antes fazer e dar a conhecer a sua arte) e companhia a almejar voos mais altos. Exemplo será o futuro MEO Kalorama, que se avizinha e que o terá num dos seus palcos. Neste M.Ou.Co, a caixa na qual nos dispusemos trouxe-nos um som limpo e certo, sem deixar de parte o trabalho de luzes que poderia beneficiar de um maior intimismo. Aliás, poderíamos ter cadeiras para nos sintonizarmos ainda mais com essa profundidade musical e com o lirismo a si subjacente.
Temos de falar e falamos de EU.CLIDES como voz do presente e do futuro. Sentimos tudo aquilo que esperávamos sentir, a conexão profunda do ouvir e do estar em presença plena. Fomos do “Sufoco” até aos tempos em que íamos ser tudo e ficamos com tantos destes sons no ouvido. No coração levamos a confirmação de que EU.CLIDES faz parte do nosso caminho e que, nesse sentido, também o queremos ver a crescer e a evoluir. Este “DECLIVE” em que derrapamos fez-nos ver lugares de partilha e de sintonia, dos quais as palmas e as ovações são exemplos prementes. Tínhamos de falar de EU.CLIDES? Já falámos, agora ficamo-nos por o sentir.