“Tercer Cielo”, de Rocío Márquez e Bronquio: o terceiro céu do flamenco

por Jorge Pinto,    9 Agosto, 2022
“Tercer Cielo”, de Rocío Márquez e Bronquio: o terceiro céu do flamenco
Rocío Márquez e Bronquio / DR
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Não sabia bem o que esperar quando, num sábado quente de Verão na cidade de Málaga, me sentei no auditório do Teatro Soho para um concerto de Rocío Márquez acompanhada do DJ Bronquio. Nessa noite, a dupla apresentaria na cidade andaluza o seu recém-editado projeto Tercer Cielo, numa sala praticamente cheia de apaixonados pelo flamenco. Sabia, no entanto, o que não esperar, avisado que fui por um conhecido que bem conhecia o projeto: um concerto de flamenco clássico, assente nos cânones e no cancioneiro andaluz que tornou Rocío Márquez uma das cantaoras mais respeitadas de Espanha. Terminado o espetáculo, percebi imediatamente que tinha assistido a algo revolucionário e que marcará certamente o flamenco e a música espanhola nos próximos anos. 

Sem as guitarras e sem cajón a marcar o ritmo, Márquez é apenas acompanhada pelos instrumentos digitais comandados por Bronquio, oscilando entre batidas mais ou menos rave e, por momentos, ritmos minimalistas. Não se pense, no entanto, que esta inclusão pelo digital e pelo experimentalismo nos afasta irrevogavelmente do flamenco; muito pelo contrário, no âmago das batidas está sempre um ritmo intrinsecamente flamenco, com o seu compasso característico. 

Este não é mais um projeto de fusão de estilos, digamos na linha de Rosalía ou das galegas Tanxugueiras. É, sim, um trabalho e uma obra de flamenco, eventualmente não puro, mas certamente duro. E é isso que torna tão único Tercer Cielo, estranhando-se na primeira escuta, crescendo a cada vez que se percorrem as dezassete canções que compõem o álbum do início ao fim. “Afinal, isto é mesmo flamenco, apenas isso”, pensei eu após algumas escutas.

As palavras, relativamente parcas, que alimentam as canções parecem ter sido escolhidas a dedo para dizer, sem exageros mas também sem qualquer falta, tudo o que há a dizer. Nas letras encontramos a pena de autores como Federico García Lorca, Miguel de Unamuno ou contemporâneos como a poeta Carmen Camacho, o andaluzista Antonio Manuel e a própria Rocío Márquez. 

A crítica parece convencida, com o jornal El País a afirmar que este álbum entrará “seguramente nos melhores discos espanhóis da temporada e nas listas de final de ano”. No jornal digital El Diário vão ainda mais longe, afirmando, numa expressão de difícil tradução, que Tercer Cielo “es el más allá del más acá” desde o álbum Omega, de Enrique Morente e que representou um marco e uma rutura no mundo do flamenco clássico.

Mas este é também um espetáculo com forte componente visual com um trabalho de luzes verdadeiramente impressionante que, infelizmente, a simples escuta do álbum não conseguirá nunca transmitir. A cena preenche-se apenas com uma grande mesa onde se instala o equipamento de Bronquio, circundado por duas enormes paredes compostas de cortinas brancas, partindo de um ponto único e abrindo-se em direção ao público. Rocío Márquez, longe da figura estática da cantaora clássica, move-se permanentemente pela cena, numa representação quasi-teatral que a vê a trocar de roupa ao longo do espetáculo, a subir à mesa de Bronquio ou a cantar fora de cena. 

O melhor e mais simbólico momento da vertente teatral é, porventura, a abertura do concerto, onde, num palco que se vai iluminando progressivamente, Rocío Márquez começa a cantar rastejando, arrastando o seu corpo pelo palco, antes de se levantar e levantar as almas de todos os que assistimos. Como um flamenco a passar da forma larvar a uma bela borboleta que não está mais limitada a um mundo de duas dimensões. Não sei se o simbolismo foi intencional, mas foi essa a grande mensagem que o concerto me passou. Tercer Cielo é Rocío Márquez a abrir uma nova porta ao flamenco. Resta-nos saber o que mais há nesse futuro que agora nos foi aberto. 

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