“The Death of Slim Shady (Coup De Grâce)”: será mesmo?
Na edição de 13 de Maio de 2024 do jornal Detroit Free Press, foi publicado um obituário para Slim Shady. Poderia passar despercebido para a maioria das pessoas, não fosse Slim Shady uma pessoa fictícia criada por Marshall Mathers e tudo isto uma campanha de promoção para o seu mais recente álbum, The Death of Slim Shady (Coup De Grâce) (TDOSS).
O artista norte-americano mais conhecido como Eminem chega à dúzia de álbuns a solo com um projecto em que pretende acabar com Slim Shady, um personagem criado por Mathers que é imaturo, insolente e controverso e que lhe trouxe fama internacional no final dos anos 90 e na primeira década dos anos 2000. É óbvio que Eminem não chegou onde chegou sem demonstrar o seu enorme talento com a caneta, mas depara-se agora com uma encruzilhada: conseguirá o rapper livrar-se do seu inseparável alter ego?
Com uma carreira de quase três décadas, Mathers aposta numa narrativa curiosa em TDOSS. Ouvimos uma luta interna entre Eminem e Shady, esbatendo a barreira entre homem e criação. Depois de em “Renaissance” Eminem abrir o álbum em boa forma a distribuir veneno para todo o tipo de haters, no início de “Habits” ouvimos Slim Shady a tomar conta das rédeas. O refrão invoca uma interessante dualidade, uma relutância do autor em livrar-se da personagem que criou, como se de uma adição se tratasse. Mas a mudança de tom nota-se logo a partir da primeira estrofe, o início de um desfile de insultos e injúrias contra uma sociedade que, segundo o próprio, está demasiado woke. A solução de Slim Shady é procurar a ofensa com frequência e de língua sempre afiada, por vezes no ponto certo como no caso da erma “Evil” de beat sombrio e negrume na voz ou de forma mais tonta como é o caso de “Brand New Dance”, em que parece encerrar de uma vez por todas a piada recorrente que fez ao longo da sua carreira sobre Christopher Reeve, actor que fez de Super-Homem e ficou paralisado após um acidente a cavalo. Mais à frente no álbum descobrimos que “Brand New Dance” foi gravada em 2004 para o desapontante Encore. E não é o único momento do álbum em que Eminem faz uma viagem ao passado.
O que soa refrescante na abordagem do rapper em TDOSS é que em algumas das músicas sente-se a alma de outros tempos, a sonoridade de certas músicas remonta ao auge da carreira de Mathers. “Lucifer” começa com um throwback a The Eminem Show mas com uma vivacidade do presente auxiliada por humorosas barras e a espevitada “Antichrist” tem uma cadência e entrega que nos relembra que o demónio de Slim Shady continua a assombrar pelo menos uma pessoa. São exemplos em que Mathers celebra o passado sem nunca se apoiar nele para catapultar o presente. Mas no caso de “Houdini” o artista agarra-se fortemente a interpolações do passado, suas e de outros artistas, acabando por criar uma música inócua e sem grande interesse com um refrão que se aloja na mente, mais por facilidade para tal do que por gosto. E há temas que, apesar de terem as suas valências, fazem pouco sentido na narrativa do álbum como “Head Honcho” ou “Fuel”, este último em que nem uma grande forma de JID consegue salvar um refrão arfado e sem carisma de Eminem.
Após quase 30 minutos de audição chegamos ao momento chave do álbum. “Guilty Conscience 2” é mais um piscar de olhos à discografia passada do artista, referenciado esse clássico tema de The Slim Shady LP apenas em nome. Trata-se de uma discussão acesa entre Mathers e Shady, uma sessão raivosa de terapia que culmina na morte metafórica do alter ego pela mão do seu criador. Está aplicada a sentença, mas ainda falta um terço do álbum. As emocionais baladas “Temporary” e “Somebody Save Me” mostram uma pessoa diferente, mas a estática “Tobey” ou a sonolenta “Bad One” cintilam com o olhar fogoso de Slim Shady, a energia desta personagem permeia os temas. Pode ser encarado como uma metáfora para o facto de Shady nunca estar longe do seu dono, mas essa mensagem não é transmitida de forma clara pelo autor.
TDOSS é um álbum inchado, com alguns destaques que não justificam a audição do projecto na íntegra. Um dos maiores magos das palavras não tem feitiços suficientes para cobrir mais de 60 minutos de música. Demonstra a sua boa forma literária e leva até à exaustão malabarismos vocais intrincados e complexos ou alucinantes esquemas rimáticos. Mas não é só a extrema perícia que faz um artista, é também através da capacidade do intérprete cativar o ouvinte. E se a destreza está à vista de todos, o interesse dissipa-se ao fim de algum tempo.
Ainda que o alcance de Eminem seja massivo, a sua hegemonia na cultura popular diminuiu desde os tempos de “Without Me” ou “The Real Slim Shady”. E há uma parte de Eminem que procura essa relevância, insultando tudo e todos sem papas na língua e revelando-se contra uma sociedade que aparentemente está à procura de o cancelar. Como mestre da palavra, poderia reconhecer que a língua está em constante evolução. Mas Slim Shady e o seu desdém convidam a ignorar convenções sociais e a disparar escárnio. E é por isso que este personagem será sempre tão imortal quanto o seu autor. Infelizmente, ambos já soaram mais cativantes.