Vodafone Paredes de Coura (dia 2): emoções à flor da pele com Beach House, Indigo de Souza e Idles
Depois de um primeiro dia inteiramente dedicado à música portuguesa, o Vodafone Paredes de Coura voltou ao seu modus operandi normal, com a variedade de géneros e artistas que já é seu apanágio. Ainda assim, o primeiro concerto a que assistimos foi novamente de uma artista portuguesa. MEMA. teve a honra de abrir o palco principal com um concerto que se calhar se teria enquadrado melhor no dia anterior, tanto pelo clima nublado mais adequado à sua música melancólica, como pela diferente abertura do público do primeiro dia. A artista ainda tentou levantar o público que se sentava na encosta relvada, mas não o conseguiu demover de aproveitar o facto de a relva estar seca pela primeira vez neste festival.
Rodeada de luzes cujo efeito se perdia na luz, MEMA. apresentou-se sozinha em palco para mostrar a pop alternativa do seu primeiro EP, Cidade de Sal, e do álbum de estreia que sairá no próximo ano. As suas batidas profundas não estiveram à altura da dimensão do palco, que as diminuiu à redundância, apesar de sabermos que o seu alinhamento tem mais detalhe que aquele que ouvimos em concerto. “Outro Lado” ainda quebrou o padrão com uma ponte de guitarra mais pesada, chamando a nossa atenção, mas foi uma excepção num concerto morno que precisaria de mais momentos assim.
O palco Vodafone.fm recebeu o concerto de Porridge Radio, um dos mais aclamados conjuntos de post-punk vindos do Reino Unido. Depois do lançamento de Every Bad, em 2020, pareciam prontos para dominar a cena, mas acabaram por sumir um pouco da blogosfera musical. A primeira metade do concerto justificou essa indiferença, pela monotonia sónica do alinhamento que não exaltava paixões. A entrega de Dana Margolin deve bastante ao rock alternativo dos anos 90, mas parecia relativamente domada tendo em conta o drama que a caracteriza em estúdio. No entanto, a partir de “Eugh”, canção que revisitou Rice, Pasta and Other Fillers, o primeiro trabalho da banda, o concerto ganhou uma nova dimensão arrebatadora.
O segmento da já mencionada “Eugh”, “Birthday Party” e “The Rip” repetiu uma fórmula que funcionou na perfeição: um crescendo sonoro até aos ápices das canções, nos quais Dana repete frases acutilantes cujo efeito cumulativo é dilacerante — “I don’t wanna be loved”, “And now my heart aches”… aí sim sentimos a força negra que guia as confissões musicais da banda. Já perto do final, foi a avassaladora “Sweet” que nos prendeu, com uma distorção digna de hard rock. Por trás da banda, uma projecção da capa do mais recente Waterslide, Diving Board, Ladder to the Sky torcia-se e retorcia-se, tornando-se progressivamente menos reconhecível: era como se a víssemos debaixo de água, depois como uma pintura impressionista, como fumaça 8-bit e, por fim, como uma alucinação psicadélica. Poeticamente, pareceu ser uma metáfora para as diferentes facetas que os Porridge Radio nos mostraram.
Outro concerto com diversas facetas foi o de Alex G. Aninhado entre os horários de Porridge Radio e Indigo de Souza, acabámos por apanhar um segmento mediano meio bizarro e errático. O músico anunciou que tinha estado a aprender canções portuguesas e procedeu a tocar uma rapsódia de canções hard rock com segmentos que pareciam saídos de ópera rock ou de um álbum dos Sparks. Não reconhecemos nenhuma das canções, por isso a ideia com que ficámos foi de que o moço é um brincalhão. Felizmente, o concerto voltou à pop íntima que caracteriza a sua música, com a doce e branda “Sportstar”. Algures durante a canção, entoa repetidamente “I play how I wanna play / I say what I wanna say”, funcionando como mote para o estranho pedaço de concerto que vimos.
O concerto de Indigo de Souza foi um daqueles trunfos que o festival costuma ter. Tendo em conta a multidão de gente que esteve presente neste segundo dia, foi relativamente pouco populado, tornando-o num daqueles segredos escondidos que alguns festivaleiros poderão partilhar entre si. A sua música continuou o trabalho dos Porridge Radio, inserindo-se no género de sad girl, mas aprofundando-o ainda mais. É difícil fazer a ligação da artista, do seu sorriso genuíno e da sua voz angelical com a música profundamente confessional e plena de distorção grunge que ela faz.
Balançando a doçura de “What Are We Gonna Do Now” com o sofrimento de “Real Pain” ou a impassível emoção de “How I Get Myself Killed”, o espectáculo imprevisível foi consistentemente cativante e surpreendente. A artista elogiou o facto de olhar para o público e não ver um mar de telemóveis, procedendo depois a dizer que o Vodafone Paredes de Coura é o festival mais bonito onde já tocou. Torna-se difícil não acreditar em alguém que se abre tanto nas suas canções, ainda para mais quando nos olha com os seus expressivos e impressionados olhos. Ficámos encantados.
Apesar da mudança à última hora do concerto de BADBADNOTGOOD (BBNG) para este segundo dia, devido a problemas com os voos da banda, a encosta do rio Taboão estava pejada de gente para ver a banda canadiana no seu regresso ao festival depois do glorioso concerto de 2017. Mas os BBNG são agora uma banda diferente. Depois da saída acrimoniosa de Matty Tavares e de cinco anos, a energia que nós chamámos de “imberbe” está agora mais domada e focada, mas o virtuosismo mantém-se. Talvez muito do público esperasse mais do cruzamento com hip hop característico dos álbuns prévios a este último Talk Memory, mas a verdade é que os músicos que compõem os BBNG vêm da escola do jazz. O palanque criado pela fama dos discos anteriores permitiu-os chegar ao patamar que provavelmente sempre quiseram desde o início: criar discos de jazz texturizados e colaborar com grandes das suas áreas, como Arthur Verocai, Laraaji, Terrace Martin ou Karriem Riggins.
“Signal From the Noise” abriu o concerto como o faz em disco, como uma declaração de intenções da proposta da banda. Essa proposta é a de pacientemente construir canções a partir de rascunhos de teclas ou do sensual saxofone de Leland Whitty, sem transições aparentes. Se nos distraímos por um instante, eventualmente já estamos numa nova fase da canção sem que soe pouco natural. “Beside April” foi acompanhada de belíssimas projecções em 16 mm de viagens pelo Japão e de uma guitarra eléctrica calorosa. Já perto do final, temos o único lamiré do passado da banda em “Lavender”, a faixa colaborativa com Kaytranada tocada numa versão adaptada a este novo som dos BBNG, mas com a repetição do grande momento de 2017, em que o público se agachou e depois levantou em êxtase colectivo, guiado pelo carismático baterista Alex Sowinski. Foi, mais uma vez, uma delícia.
Em modo pára-arranca, o concerto dos Idles teve um início estranhamente conturbado, com pausas demasiado longas e pouca interação que tornavam cada explosão punk invulgarmente asséptica, particularmente quando entramos no terreno de Ultra Mono, o menos interessante terceiro álbum da banda. A partir das brutais “Mother” e “Divide and Conquer”, o espectáculo engrenou e o que se seguiu foi a efusão a que a banda já nos foi habituando.
Poupando-nos a uma certa positividade exagerada ou discursos panfletários, Joe Talbot contentou-se em elogiar o público português, dizendo que este é o seu local preferido para tocar, pois a nossa energia é incomparável. Somos sinceros: nós acreditámos. O público respondeu com moches imparáveis e um entusiasmo difícil de replicar, potenciado pela música dos Idles, que incita à comunhão e a uma libertação conjunta. O momento maior veio com “Danny Nedelko”, a canção pró-imigração de refrão orelhudo como um cântico de futebol, preambulada por uma exortação à aceitação, empatia e abertura a novas ideias. É uma mensagem sempre bonita de se ouvir.
Depois da necessária pausa para hidratação, um dos momentos mais ansiados do dia foi protagonizado por outros retornados, que tocaram precisamente no mesmo dia que os BADBADNOTGOOD em 2017, os Beach House. A banda apareceu em topo de forma, dando um concerto muito focado que mais que compensou o atraso e problemas técnicos que assolaram a última passagem da banda por Paredes de Coura. Elogiando o festival e assumindo que não queriam estar em qualquer outro lado, Alex Scally e Victoria Legrand passaram por uma boa parte do seu novo e extenso álbum, Once Twice Melody, intercalando-o com outras canções mais reconhecidas do público.
Iluminada por pouco mais que a luz de uma Lua quase cheia e avistando Júpiter e Saturno no céu estrelado, a banda de Baltimore estendeu o seu dream pop ao psicadelismo de “Lemon Glow”, à valsa esvoaçante de “PPP” e à teatralidade de “Pink Funeral”. O espectáculo de luzes simples mas certeiro enfatizou os momentos mais emotivos, como os clímaces de “Myth” ou de “Over and Over”, a nova canção de eleição para terminar os concertos. O facto de que apenas se vejam as silhuetas da banda contribui para um certo misticismo, alimentado pelas teclas estelares de Victoria e pela reverberação da guitarra de Alex. É essa combinação sónica que torna a sua música tão instantaneamente reconhecível e envolvente. Poderíamos revê-los todos os anos, desde que os concertos corram tão bem como este.
Já no after hours, o feitiço deixado pelos Beach House foi prontamente quebrado pelo punk aguerrido dos Viagra Boys. A banda sueca deu um concerto mais apurado que nas duas anteriores passagens pelo nosso país, incitando mais alguns moches abaladiços com a batida industrial de “Ain’t No Thief” ou o pós-punk matemático de “Ain’t Nice”. Sebastian Murphy, o fogoso vocalista, continua de língua afiada mas mais focado, talvez ajudado pelo facto de este ter sido o primeiro concerto de apresentação de Cave World, o mais recente disco da banda. Apreciamos a atenção.
Este segundo dia terminou ainda com o set da australiana HAAi, uma das novas promessas do techno e bass londrinos.
Hoje há mais Paredes de Coura para experienciar, com Turnstile, Parquet Courts, L’Impératrice, Donny Benét, The Comet Is Coming, Yellow Days, Molchat Doma, Nu Genea, Surprise Chef e John Talabot.