“6 Meses, 6 Tesouros Literários”. Meio ano a oferecer livros
Ainda em 2018, a Comunidade Cultura e Arte, o Crónicas da Madrugada e a Livraria Miguel de Carvalho firmaram uma profícua parceria de onde resultou a iniciativa “6 Meses, 6 Tesouros Literários”.
Durante (pouco mais de) meio ano, oferecemos seis edições antigas de obras de particular relevância na literatura nacional, escolhidas a dedo pelo alfarrabista Miguel de Carvalho.
Todas as escolhas foram contextualizadas pelo punho do livreiro, nos artigos que acompanharam os passatempos. E não faltaram contextos. Houve primeiras edições, livros virgens, páginas com fotografias inéditas de poetas, edições de colecionador, biografias raras e até obras proibidas por Salazar.
Estes foram os vencedores que levaram para casa esses tesouros literários:
“A Caverna”, de José Saramago: Hugo Veiga (Lisboa)
“Escrita da Terra”, de Eugénio de Andrade: Rodrigo Esteves (Lisboa)
“Mário Sá Carneiro”, de Maria Alhiete Galhoz: Pedro Sousa (Lousada)
“Refúgio Perdido”, de Soeiro Pereira Gomes: Tiago Cunha (Viana do Castelo)
“A Lã e a Neve”, de Ferreira de Castro: Bruna Oliveira (Lisboa)
“Batalha Sem Fim”, de Aquilino Ribeiro: Ana Branquinho (Viseu)
Livro bónus: “Monsieur Cesariny”, de Susana Paiva: Maria Fisteus (Porto)
Durante todo este tempo perdurou uma sensação gratificante à medida que íamos enviando cada uma destas obras. Queríamos oferecer algo especial nesta iniciativa. Encerramo-la hoje, oficialmente, com um sentimento de dever cumprido. Em jeito de balanço, ficam as palavras dos autores parceiros.
Testemunho de Rui Soares / Director da Comunidade Cultura e Arte
Actualmente, e infelizmente, não há tempo para quase nada. E ler, que foi quase sempre prioridade de poucos, é essencial para organizar o nosso raciocínio com principio, meio e fim, e, claro está, para acrescentar substância ao corpo que passeamos.
O “6 Meses, 6 Tesouros Literários” foi uma iniciativa bem sucedida para contrariar o tempo que é cada vez mais digital. O Crónicas da Madrugada, projecto do Victor Melo, que é um apaixonado por livros e histórias, e a Livraria do Miguel de Carvalho, que é um devoto do Livro, aproximaram as pessoas de vários livros que dificilmente colocariam as mãos. A curadoria do alfarrabista Miguel foi essencial para concretizar esta ponte entre entusiastas e os autores que, infelizmente, ou foram esquecidos ou ninguém os recorda/apresenta como o Miguel o faz (porque é importante a forma como nos dão a conhecer um objecto, ainda para mais se for funcional como um livro pode ser).
Quando criei a Comunidade Cultura e Arte queria despertar e abrir horizontes para a Cultura e Arte, hoje, e com o sucesso de iniciativas como esta, só me resta continuar esse caminho e se possível com pessoas como o Victor e o Miguel.
Testemunho de Victor Melo / Autor de Crónicas da Madrugada
“É intemporal, o meu fascínio por alfarrabistas. Tenho boas recordações de tardes inteiras em Londres, Barcelona ou Porto a explorar os seus corredores labirínticos, as suas prateleiras imensuráveis, os seus sótãos ou caves amontoadas com palavras antigas.
Algumas dessas visitas inspiraram reportagens, que hoje testemunham casas que já não existem.
Numa tarde de Março de 2018 descobri a Livraria Miguel de Carvalho em Coimbra. Descobri-a tarde demais. No final desse mês ia fechar as portas. Numa mísera tentativa de redenção, resolvi contar a sua história. Esse texto foi um feliz preâmbulo de uma iniciativa que viria a nascer entre a Livraria Miguel de Carvalho, a Comunidade Cultura e a Arte e o meu blog literário Crónicas da Madrugada. Lançámos o concurso “6 Meses, 6 Tesouros Literários”, onde oferecemos seis livros especiais de autores nacionais.
Especiais não só pela sua significância na literatura portuguesa. Nem pelo facto de todas as edições escolhidas possuírem particularidades de valor e destaque no mundo bibliófilo. Não! A meu ver, o que os tornava ainda mais especiais eram a suas vivências. Por onde é que esses livros já tinham passado até chegarem às mãos dos vencedores do nosso passatempo? Quem os teria folheado? Há quantos anos ou décadas? Teriam atravessado fronteiras ou até continentes a acompanhar uma viagem? Teriam ajudado a preencher noites solitárias? Teriam inspirado alguém? Despertado aspirações? Ou amenizado corações destroçados?
Eram essas deambulações juntamente com essas capas enrugadas, essas páginas amarelecidas e cheias de cicatrizes que lhes davam um carácter especial. São livros com carácter.
Era isso que me movia e ao Rui quando apresentámos a ideia ao Miguel. Queríamos oferecer livros com carácter.
É curioso, eu costumo descrever o meu blog como um abrigo. Uma espécie de orfanato para crónicas e reportagens que, por um motivo ou outro, permaneceram até hoje na gaveta (literal ou mental), órfãs da atenção do autor e do afeto do leitor.
É assim que vejo estes livros. Estão num orfanato, um magnífico orfanato, onde são tratados com um carinho imaculado. Mas todos eles anseiam voltar a ser lidos. É esse o seu propósito, o seu desígnio mais puro. Foi um prazer enorme poder proporcionar-lhes isso. A eles e a vocês, companheiros leitores, que adotaram livros com carácter”.
Testemunho de Miguel de Carvalho / Proprietário da Livraria Miguel de Carvalho
“O evento com o qual colaborei como livreiro que patrocinou com alguns títulos da literatura nacional do século XX, por convite dos responsáveis da Comunidade Cultura e Arte e do Crónicas da Madrugada, teve para mim uma enorme e agradável surpresa, porque contraria o que no quotidiano nos quer dar a conhecer esta sociedade que tende a sustentar-se de forma eléctrica e electrónica: o de haver uma comunidade de leitores, sem definição nem competição de género, muito jovem que se interessa pela informação e conhecimento em suporte papel.
Obviamente que as ferramentas electrónicas, aka electrodomésticos-de-trazer-no-bolso, são apenas uma ferramenta que facilita o acesso básico ao livro: o de encurtar distâncias entre o leitor e o livro. Depois do referido encurtamento, vem a acção entusiasta de obter o objecto-livro. A surpresa, que não só foi no plano da estatística (x,y,z likes por hora, dia e mês respectivamente), foi também a da sua representatividade que traduz um interesse em autores maiores da criação literária já desaparecidos, sonegados, esquecidos.
Outra surpresa foi a do (re)conhecimento da Bibliofilia nestas faixas etárias mais jovens. Considero que estamos a caminho de uma “revolução astronómica”. Não me refiro obviamente aquela definida no século XVIII pela astronomia, relacionada com a rotação de um corpo em torno do seu próprio eixo, mas aquela revolução que está relacionada com o contrariar da própria tendência de uma sociedade, que dadas as dimensões dentro de uma amostragem que deixou de ser tão “minoria”, atinge uma dimensão de valor tendencialmente astronómicos, no seio da comunidade jovem. É a própria força da juventude descontente, ávida de ir mais além do que lhes é imposto, “formatado”, do real quotidiano. Para mim, pessoalmente, o verdadeiro retorno foi ter contacto com esta comunidade que confia nas minhas propostas livrescas, visões e profissão que dizem estar a desaparecer. Garanto-vos que não.
Com esta empreitada colectiva espero que possamos contribuir todos juntos, os parceiros e o público-leitor, para um endireitar da sombra com a construção de uma nova vara, que está cada vez menos torta, pois é pela sombra que se caminha em direcção de um mundo admirável e muito mais amoroso.
‘Um homem vem ardendo … um homem vem fundir geografias … vem fecundar as latitudes’ é um fragmento do texto de Ruy Duarte de Carvalho (in A Decisão da Idade, 1976). Com esta citação, uma espécie de ligeiro ‘levantar do véu’ , quero partilhar convosco, leitores, um esboço do projecto de sucessão em colaboração com o Rui e o Victor, projecto este que progride para um novo desafio: o de desvendar e reordenar horizontes geográficos mentais.”