A bossa nova (e o sentimento brasileiro) nas composições de Tom Jobim
Para internacionalizar a música brasileira no estrangeiro, a presença e as notas de António Carlos Jobim (conhecido de perto como Tom Jobim) foram fundamentais. Conheceram o mundo enquanto se foram procurando pelos outros países, de onde vinham as grandes influências do jazz e da própria música erudita. Tudo isto contribuiu para que as fundações da bossa nova, que tão bem Vinicius de Moraes e João Gilberto souberam corroborar, se mostrassem ainda mais firmes e perenes. Jobim mostrou-se, desta feita, um músico de nomeada crescente, ao ponto de se encontrar com artistas, como Frank Sinatra ou Stan Getz, para gravar discos. Entre lendas confirmadas e outras por se confirmar, o músico soube-as ligar, cimentando o seu pleno e devido legado.
António Carlos Brasileiro de Almeida Jobim nasceu a 25 de janeiro de 1927, no Rio de Janeiro, partindo 67 anos depois, em Nova Iorque, a 8 de dezembro de 1994. O apelido Jobim advinha do seu trisavô, José Martins da Cruz Jobim, natural de Jovim, em Gondomar, Portugal. Eternizar-se-ia, desta feita, o apelido na sua linhagem. Nasceu no bairro da Tijuca, mas partiu desde cedo para o Ipanema, onde cresceu. Embora uma infância sem grandes sobressaltos, sempre se ressentiu da ausência do pai, o que lhe viria a pautar a música que foi criando nas décadas seguintes da sua vida, com uma melancolia e um romantismo que marcariam as suas notas. Foi aprendendo alguns instrumentos musicais no entretanto, como o violão e o piano, com o acompanhamento do compositor Hans-Joachim Koellreutter, que deu a conhecer o dodecafonismo (um sistema de articulação de notas musicais) ao Brasil.
Não obstante, tratava a música como se fosse um hobby. Queria ser arquiteto, inicialmente, chegando a entrar na faculdade e a trabalhar num escritório, mas mudou de ideias. Assim, encaminhou a sua vida para o piano, que já conhecia há algum tempo. Casar-se-ia cedo, aos 24 anos, com Thereza de Otero, tendo Paulo e Elizabeth como filhos. A controvérsia na sua vida conjugal viria à tona, contudo, quando conheceu a fotógrafa Ana Beatriz Lontra, em 1976. Jobim tinha já 49 anos, mas Ana Beatriz tinha a idade da sua filha, 19. No entanto, casaram-se no ano de 1986, dando à luz João Francisco (nasceria antes do casamento e morreria com 19 anos) e Maria Luzia. A sua vida era feita nos bares de Copacabana até ao ano de 1952, quando foi contactado e se juntou à editora Continental. As funções passavam por fazer os arranjos e por transcrever as melodias de compositores para a escrita musical, isto é, para as pautas. Gravou a sua primeira algum tempo depois, “Incerteza”, por intermédio da voz de Mauricy Moura, numa colaboração com o também músico Newton Mendonça. Foi também com este que viria a gravar o êxito “Desafinado”, em 1958.
Mudou de editora uns anos após esta gravação, passando a trabalhar na Odeon. Apesar de menos tempo para as suas peças, foi compondo alguns sambas, dos quais se destaca “Tereza da Praia”. O ano de 1953 trouxe-o mais assiduamente para o palco das gravações da sua autoria em “Faz uma Semana” e “Pensando em Você”. Essa assiduidade levou-o ao conhecimento do compositor Vinicius de Moraes, para quem produziu as canções da peça deste, “Orfeu da Conceição” (1956); e também para o filme “Orfeu Negro” (1959), de Marcel Camus, com a colaboração dos músicos Luiz Bonfá e Antônio Maria. É nesta fase que a bossa nova começa a dar os seus primeiros passos, contando com os contributos da tal melancolia, que não se sentia pesada mas mais descomplexada do que nunca. Era uma entrega à música e a uma certa coloquialidade que permitia dar a usufruir dessa leveza, dessa tonalidade mais suave e pacífica.
Permanece, assim, unido a Vinicius, sendo um duo fundamental nas fundações deste género musical. “Canção do Amor Demais”, de 1958, une os engenhos de ambos os compositores, para além do talento ao violão de João Gilberto. A originalidade da orquestração e dos seus elementos constituintes, por entre melodias e harmonias, consolidam o percurso que a bossa nova vai fazendo até ao momento. Sentia-se uma abertura ao que se fazia no exterior, pela Europa e pelo resto da América, sem esquecer o samba tão identitário e a diversidade subjacente ao ser brasileiro. Desenhava-se uma dialética única entre o popular e o erudito, entre o vernacular e o lírico, entre o furor e o método. “Chega de Saudade” (1959) é um exemplo prático dessa ambiência, na qual João Gilberto também oferece a sua voz, para além do violão.
Jobim começa a ser requisitado, no sentido em que são várias as suas peças musicais que são interpretadas por outros artistas, como Sílvia Telles em “Amor de Gente Moça”, álbum de 1959, onde se enquadra a canção “A Felicidade”. A bossa nova vai crescendo e vai encontrando a repercussão internacional desejada, ao ponto de se organizar um Festival de Bossa Nova no Carnegie Hall, no coração de Nova Iorque. Por mais que Jobim assumisse o protagonismo deste certame, a canção que mais se popularizou só seria composta no ano seguinte, em 1963. “Garota do Ipanema” nasceu dos esforços combinados da lírica de Vinicius e da musicalidade de Jobim, dando lugar a inúmeras interpretações de artistas nacionais e internacionais.
A fama seria tanta que arrecadaria o Grammy de Música do Ano, no ano de 1964, perante a competição dos Beatles, dos Rolling Stones e de Elvis Presley. Entre outras, nasciam também “Insensatez” (uma canção que, na sua composição, se aproxima de uma peça de Chopin), “Samba do Avião”, “Ela é Carioca”, “O Morro Não Tem Vez” ou “Vivo Sonhando”. Parte destas canções fariam parte do primeiro disco individual que gravou nos Estados Unidos em “The Composer of Desafinado Plays” (1963, lançado um ano depois no país em que o produziu), para além de participar em vários espetáculos por esse país. A carreira corria-lhe de feição, ao ponto de dar origem à sua própria editora, Corcovado Music, destinada à música daquela bossa que já havia arrebatado mesmo os mais céticos. Músicos, como Dizzy Gillespie, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan ou Count Basie, interpretaram vários dos seus êxitos nas suas carreiras.
O regresso estaria marcado logo para o ano de 1967, e logo ao lado de Frank Sinatra, um dos mais carismáticos cantores de jazz que iam surgindo naquele período. “Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim” seria também candidato ao Grammy do Ano, embora perdessem para os Beatles. O álbum era composto pelas versões em inglês das composições de Jobim, averbando grande parte dos seus sucessos numa plataforma cada vez mais internacional. Esta famigerada década terminaria com o lançamento de “Wave” (1967) e catapultá-lo-ia para a vitória no Festival Internacional da Canção ao lado de Chico Buarque, com “Sabiá”; embora pese a contestação do público, que preferia “Pra não Dizer que não Falei das Flores”, de Geraldo Vandré, marcada pela contestação ao regime militar no Brasil.
Jobim procurou, neste período, tornar-se discreto na fase em que a Música Popular Brasileira (MPB) apontava as baterias aos constrangimentos sociais e políticos, e foi em busca de se formar mais na música erudita. Encontrou as composições de Claude Debussy e de Maurice Ravel, às quais se afeiçoou mais, nomeadamente pelas estruturas que o impressionismo usava na sua música. A harmonia que lá encontrava era paralela à que vinha incutindo nos seus trabalhos, passando o manto da leveza e da elegância por cima daquilo que eram peças crescentemente complexas e intrincadas. Numa dimensão mais popular, procurou estudar ainda mais as composições de Heitor Villa-Lobos, de Radamés Gnatalli e de Ary Barroso, seus conterrâneos.
O intimismo que a sua música possibilitou, assim como a lírica de Vinicius, abriu as portas a que os outros músicos desse tempo tivessem mais predisposição a abrir o seu coração e a colocá-lo ao serviço da arte e da emotividade inerente. Era um intimismo que Jobim, pessoalmente, queria que se tornasse universal e que se tornasse entoada pelo povo, das mais pequenas às maiores comunidades. Enquanto isso, ia articulando com trabalhos meramente instrumentais, onde unia o jazz às fragrâncias auditivas da antropologia e da cultura brasileiras. “Stone Flower” (1970) capta esta bagagem com sucesso, assim como “Urubu” (1976).
As colaborações também continuaram, entre os quais se destaca “Elis & Tom” (1974), ao lado de Elis Regina, que brotou o sucesso de “Águas de Março” (desenhada em 1972 e estreada no álbum “Matita Perê”, de 1973), assim como consolidou o de “Inútil Paisagem” (composta em 1964). Por entre algumas causas às quais se juntou à escala mundial – fez parte do coro da versão brasileira de “We Are the World” – foi-se destacando pela capacidade de integrar diferentes vozes, distintas entre si, na interpretação dos seus êxitos. No entanto, alguns problemas na harmonização das vozes e do seu enquadramento levaram a que se gerassem críticas à sua prática performativa.
Chegado à fase final da sua vida, foi experimentando algumas peças em contextos diferentes, como com bandas (“Passarim”, de 1987, junta Jobim à Banda Nova), até ao ano de 1994, o último da sua prolongada carreira em “Antônio Brasileiro”. Pouco antes de falecer, em 1991, chegaria a ser nomeado doutor honoris causa pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Após a sua morte, seria homenageado com a renomeação do Aeroporto do Rio de Janeiro com o seu nome.
Esta seria a eternidade granjeada por Tom Jobim, compositor musical que conquistou toda a extensão da América e que marcou a bossa nova no seu âmago. Emprestou as notas e a voz para que se tornasse ressonante a uma escala cada vez maior, abrindo o coração de Copacabana e de todo o Brasil a um mundo ainda com questões sobre aquele povo. Dissolvidas as dúvidas, ficou a música e a certeza de algo que transcendeu as pautas, que uniu os corações e que os fez replicar e trautear as canções não só feitas do típico sambar, mas de um exercício pleno e convicto de compor no romancear.