E se houvesse uma epidemia de votos em branco?
Em 2004, já com uma vasta obra aclamada em todo o mundo e com o Prémio Nobel da Literatura no bolso, José Saramago publicava o seu décimo terceiro romance intitulado Ensaio Sobre a Lucidez. O livro relata o decorrer de umas eleições, num país qualquer, onde numa manhã chuvosa são muito poucos os eleitores a irem às urnas. As autoridades eleitorais preocupadas chegaram a supor que haveria uma abstenção gigantesca e que as eleições seriam um autêntico fracasso. Durante a tarde as condições climatéricas melhoram e, quase no encerramento da votação, fazem-se filas enormes havendo muitos a considerar que a forte afluência faria com que aquele fosse um dia histórico para a democracia. Contudo, e apesar da baixa taxa de abstenção, a contagem apontaria para uma percentagem elevadíssima de votos em branco, cerca de setenta por cento, um resultado nunca antes visto em nenhuma eleição posterior.
Desta forma as entidades políticas acabariam por perder a credibilidade perante uma população que viria a exercer massivamente o seu direito de voto. O voto em branco tornar-se-ia numa manifestação silenciosa perante os actos praticados por políticos pertencentes aos partidos da direita, da esquerda e do meio, nomes dados aos partidos que vão a votos no livro. As votações repetem-se e a percentagem de votos em branco aumenta. O país mergulha num cenário nunca antes visto onde existem forças policiais a actuar, conspirações e até mesmo perseguições, com situações que conseguem fazer lembrar o célebre 1984 da autoria de George Orwell. No decorrer da história, após diversas passagens, há mesmo quem coloque a hipótese de os votos em branco serem uma espécie de surto, tal como um surto de cegueira branca que acontecera há alguns anos atrás e que lançou o caos em todo o mundo.
De algum modo Ensaio sobre a Lucidez acaba por ser uma sequela de Ensaio Sobre a Cegueira, onde algumas personagens dessa obra acabam também por emergir na história, tratando-se também de uma espécie de distopia à volta de um sistema político que cai com uma adesão massiva ao voto em branco. Um surto de votos em branco, tal como acontecera com o surto da cegueira branca, altera um país por completo, colocando-o próximo de uma situação apocalíptica onde reinam o caos, a incerteza e onde a democracia corre sérios riscos de se extinguir. Quem acaba de ler Ensaio sobre a Lucidez encara logo com uma questão sem resposta imediata e que, apesar de não se apresentar na obra, começa a ser uma evidência à medida que o leitor percorre as páginas do livro: “E se houvesse uma epidemia de votos em branco?”.
O voto em branco é, de um modo geral, uma arma de protesto em relação às opções políticas que nos colocam à frente. No fundo o voto em branco representa uma total desaprovação face aos partidos ou candidatos que podemos escolher e que temos que seleccionar no boletim de voto, por diversas razões que variam de eleitor para eleitor. Muitos julgam que a quantidade de votos em branco nas nossas eleições (ou nas eleições de outro país qualquer no geral) é algo quase desprezável, o que não é verdade. No último acto eleitoral que houve em Portugal ainda este ano, nomeadamente nas eleições para o Parlamento Europeu, apesar da elevada taxa de abstenção foram 4.25% (cerca de 140 mil) os eleitores que optaram por votar em branco, valor esse que ficou apenas atrás do valor percentual de votos do último partido a conseguir eleger eurodeputados. Nas últimas eleições legislativas, em 2015, os votos em branco foram a quinta opção mais votada, contando com mais de 120 mil votantes, valor que não é de todo desprezável. Deste modo o voto em branco apesar de ser uma opção válida poderia ter uma utilidade maior tendo em conta o seu significado e a sua adesão que até é bastante significativa.
Há quem defenda, por exemplo, que os votos em branco deveriam dar direito a lugares vazios na Assembleia da República, o que faria com este tivesse uma maior utilidade e possivelmente também uma maior afluência. Enquanto que o voto em branco apresenta uma total reprovação em relação às opções no boletim de voto e a abstenção a falta de interesse ou de informação por parte de quem decide não votar (ou até mesmo um impedimento), o voto nulo tem uma análise que é tudo menos exacta. Apesar de ter praticamente o mesmo valor que um voto em branco, não é possível comparar ambos. Seleccionar um ou mais partidos, ou escrever frases e desenhar coisas obscenas no boletim de voto, tal como grande parte das vezes acontece, demonstra uma certa complacência e falta de noção face à seriedade do acto eleitoral. Infelizmente a finalidade do voto nulo e do voto branco no nosso sistema eleitoral é praticamente o mesmo pois o seu valor é desprezável.
De acordo com o site da Comissão Nacional de Eleições, “Os votos em branco, bem como os votos nulos, não sendo votos validamente expressos, não têm influência no apuramento do número de votos obtidos por cada candidatura e na sua conversão em mandatos. Ainda que o número de votos em branco ou nulos seja maioritário, a eleição é válida e os mandatos apurados tendo em conta os votos validamente expressos nas candidaturas”. Tal definição despreza por completo o significado que o voto em branco deveria ter, e torna-o quase numa “não-opção”. Uma epidemia de votos em branco poderia ser algo distópico como descrito no livro de José Saramago caso o voto em branco fosse encarado de forma a corresponder ao seu significado, e poderia provocar situações semelhantes às que o leitor se depara no desenrolar da história. Contudo, tal epidemia não poderia ser interpretada como um ataque à democracia, mas sim a certas entidades que se julgam que donas desta. As maiores vítimas dessa epidemia seriam os partidos que tendem a obter poder e até mesmo regalias ao estarem no poleiro, havendo assim uma dependência total do voto do eleitorado para a sua subsistência. Tal como o nome do livro, estaríamos perante uma epidemia de lucidez, lucidez essa que levaria os cidadãos a optar por votar massivamente dessa maneira por estarem descontentes ou com o sistema, ou com as políticas exercidas, ou com os partidos que vão a votos e que não apresentam as soluções para resolver os problemas do seu país.
Ainda se debate em Portugal se o voto deveria ser obrigatório ou não, de modo a evitar as elevadas taxas de abstenção que hoje se verificam. De facto, a abstenção continua a ser um dos grandes perigos para a democracia. Um povo que se desinteressa pelo seu futuro, corre o risco de que, sem dar conta caia, num sistema político que possa colocar a democracia em causa. Todavia, sabe-se que os cidadãos que exercem o seu direito de voto têm à partida as razões próprias que justificam a sua escolha, sejam elas no Partido A ou no Partido B ou até mesmo votando em branco pois, mais do que um direito, votar deve ser encarado como um dever cívico. Na altura em que Ensaio sobre a Lucidez fora publicado estavam eminentes em Portugal umas eleições europeias e meses mais tarde, em Março de 2005, umas eleições legislativas. A sensibilização ao voto em branco foi tema recorrente, no qual o próprio José Saramago chegou mesmo a proferir “Não se abstenham, votem em branco!” de forma a incentivar os eleitores a protestar contra um sistema político que, apesar de democrático se torna repetitivo e algo vicioso, onde apenas são duas as forças que têm a possibilidade de ganhar as eleições e de governar. Não deixa de ser curioso que, perante tal campanha, o partido vencedor dessas mesmas eleições legislativas conseguiria obter pela primeira vez na sua história uma maioria absoluta.
Numa era em que as taxas de abstenção são cada vez maiores, onde há cada vez menos pessoas a procurar informação sobre os assuntos deixando-se levar pelos títulos de notícias que são superficiais, uma epidemia de votos em branco em pleno acto eleitoral seria uma prova inequívoca da lucidez dos eleitores. Os eleitores que votam em branco sentem que devem cumprir o seu dever enquanto cidadãos ao exercer o seu direito cívico, optando por se manifestar através do seu voto. Independentemente das razões que levam a quem queira votar em branco, tal acto demonstra que aparentemente existe uma razão que os leva a não confiar nas opções políticas apresentadas. A lucidez dos votos em branco representaria a vontade dos eleitores em mudar o sistema onde ganham sempre os mesmos e onde também são sempre os mesmos a perder. Esta continua a ser uma maneira democrática e legítima de alguém exprimir o descontentamento político, perante uma altura em que existe uma epidemia de opacidade e de penumbra que é traduzida nos mesmos partidos a terem sempre hipóteses de governar e em abstenções altíssimas que não ajudam a alterar um sistema que se torna cada vez mais vicioso.