Das virtudes e defeitos da vida não vivida de André Aciman

por Paulo Rodrigues Ferreira,    27 Setembro, 2021
Das virtudes e defeitos da vida não vivida de André Aciman
“Call Me by Your Name” (2017), filme de Luca Guadagnino

Em Find Me (2019), sequela de Call Me By Your Name (2007), Elio, músico italiano que viveu um romance na adolescência com Oliver, um investigador americano mais velho que é agora professor universitário nos Estados Unidos, fala de tempos remotos como se tivessem ocorrido dois dias antes. Envolve-se com um advogado chamado Michael, mas é em Oliver, seu primeiro amor, que ainda pensa, é o seu nome que sussurra no escuro. Castiga-se por não lhe ter telefonado ou escrito. Dez anos depois de o ter visto pela última vez, sente que nada mudou, que nada mudará, e que outras aventuras amorosas por si vivenciadas foram meras sombras ou rascunhos da sua relação com Oliver. Diz que dialoga com a parede e que, se esta lhe respondesse, afirmaria: procura-me, encontra-me.

O passado não termina e o presente traz a tristeza de se saber que aquilo que foi já não é. Apesar de não se terem visto novamente, os antigos amantes gastam os anos pensando que não há nada como aquele sentimento que nem o silêncio, nem a distância corroeram. É preciso voltar para trás, recuperar os beijos e a intensidade da juventude, reerguer a fé nas coisas impossíveis. Voltar ao passado porque nunca de lá saíram: “The rest of me here has been like the severed tail of a lizard that flays and lashes about, while the body’s stayed behind all the way across the Atlantic in that wonderful house by the sea.” A separação como a cauda decepada de um lagarto que se contínua a sacudir, enquanto o corpo ficou do outro lado do oceano, no lugar com o qual a alma segue sonhando. A metáfora não poderia ser melhor: a cauda que ainda mexe é na verdade a pessoa que sente não ter razões para viver, mas que se arrasta pela espuma dos dias, carregando um corpo que já não está bem vivo e que apenas cumpre formalidades necessárias para a sobrevivência.

André Aciman / Fotografia de Shawn Miller – Library of Congress

Numa recensão publicada na New Yorker, em Outubro de 2019, Katy Waldman regista que a sua experiência de leitura de Find Me foi de profundo disattunement e que, não obstante pretenda ser íntimo e profundo, o livro roça a superficialidade. Concordo que a leitura desta obra, repleta de situações implausíveis, como a da jovem modelo que se apaixona no comboio por Samuel, o velho professor (e pai de Elio), de aforismos sobre a existência e sobre o amor e de diálogos quase ao estilo platónico cujo fim parece ser poetizar acerca das relações amorosas, traz dificuldades associadas à falta de acção. Por outras palavras, se a rememoração de eventos passados constitui o centro da narrativa, se na verdade muito pouco ocorre neste livro que já não tenha sido contado em Call Me by Your Name, se em certa medida o amor surge nesta obra para nos apresentar a vida como uma pintura deixada melancolicamente a morrer num museu, pode o leitor perguntar-se se existem argumentos a favor deste tipo de entender a escrita e a literatura. Find Me é um livro ao qual falta dinâmica, movimento. Não se adentrando em pormenorizadas descrições de personagens ou de situações, Aciman faz da sua força uma escrita que agrada, mas não inova. Por muita beleza que tenha — e não se questiona a beleza e o alto sentido estético proporcionado por Find Me — nada substitui a dinâmica da escrita, a capacidade de um escritor de invocar diferentes vozes e linguagens e de cortar com uma certa ambiência burguesa tão criticada por Roland Barthes, a qual parece contentar-se com formas para deleitar o leitor médio, habituado a maneirismos e convenções. Os livros de Aciman não cortam com a norma, não diferem de fórmulas antigas, e parece ser este o sentido da superficialidade apontada por Waldman.

Em entrevista disponibilizada no YouTube, André Aciman desabafa que lhe custa a comprar livros de novos autores por tudo lhe parecer muito inferior a Proust. O leitor de Aciman poderia dizer algo semelhante acerca de Find Me: não foi escrito por Proust. Porém, aceitando que os humanos continuarão a viver e a publicar livros após a morte dos génios, talvez seja necessário reconhecer que a referida obra apresenta qualidades e subtilezas que, embora não neutralizem os seus defeitos, nos fazem questionar os sentidos das nossas próprias vidas, os sentidos de todas as peripécias, falhanços e triunfos que nos conduziram a uma condição de inevitável frustração. Aciman alerta-nos que isto — escrever e trabalhar, por exemplo — não é viver, que o tempo é o preço a pagar pela vida não vivida. Como o próprio assinala, quando aprendemos a viver, é demasiado tarde. O amor passou, as rugas apareceram. Visitamos jardins em Roma já sem a namorada de há vinte anos. Transformamo-nos gradualmente na pessoa que nos aparecia em pesadelos. Duvido que Find Me se torne num clássico da literatura ou que Aciman seja um dia equiparado a um grande nome da arte, mas vale a pena sublinhar que nem sempre procuramos o melhor de todos os tempos nos livros que lemos. Por vezes, basta o coração bater mais depressa e lembrar-se daquilo que ficou nas ruínas do prazer que já não volta.       

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