Comparações descabidas: Certificado COVID vs. Certificado Ariano
Nestes últimos dias, navegando pelas redes sociais, tenho encontrado várias pessoas que citam, sem aparente honestidade, as atuais restrições de entrada em certos espaços e eventos, em vigor para quem não possui o certificado de vacinação, comparando-as depois com as restrições de acesso aos espaços para quem não detinha o “certificado de arianismo”, ou “Ahnenpaß“, na Alemanha Nazi.
Este é muito possivelmente o argumento mais absurdo e desonesto que estas pessoas poderiam usar contra as restrições. Mais facilmente um “reductiu ad hitlerum” destes seria usável e instrumentalizável contra negacionistas e opositores de medidas de contenção da pandemia. Bastaria lembrar que eram precisamente os nazis que defendiam que os elos mais fracos deveriam ser deixados para trás pela sociedade (e eventualmente eliminados até), uma vez que, sob a óptica fascista, a maioria da população não deveria ser jamais empatada pelos mais fracos. Enfim, tratava-se da defesa da lei do mais forte (derivada das aberrações que eram o Darwinismo social e o might makes right), contrária aos princípios mais básicos de cooperação e empatia humana, onde por princípio ninguém é deixado para trás ou abandonado à sua sorte, por mais débil e vulnerável que seja.
Argumentar-se-ia muito mais facilmente, reforço, que genocida e eugénico é aquilo que líderes como Bolsonaro têm promovido em países como o Brasil: a desconsideração da situação de emergência pandémica, a negação da necessidade de encarar com seriedade o vírus, logo desde início, ainda antes deste entrar nas fronteiras; ou a desconsideração pelas máscaras e distanciamentos, vacinas, quarentenas, confinamentos e cercas sanitárias.
Não satisfeito ainda com os óbitos que ocorreram no Brasil, destoando da maioria dos países no mundo, junta-se o insulto à injúria e responde-se com um “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?” quando jornalistas lhe perguntam o que acha dos altos níveis de mortalidade, recusando reconhecer qualquer postura contraproducente da sua parte, recusando qualquer responsabilidade pelos comportamentos por ele explicitamente incitados.
Quando confrontados, há quem pergunte “qual é o problema do Brasil? Há países piores, com mais mortos por cada milhão de habitantes”. Pois há, mas eu ajudo: o problema do Brasil e do Bolsonaro é que é péssimo que um país com 212 milhões de habitantes esteja lá no topo, em 8° lugar a nível mundial neste momento, a rivalizar com países como o Peru (33 milhões), Bulgária (7 milhões), Bósnia e Herzegovina (3,2 milhões), Montenegro (679 mil, ou seja, menos de um milhão), Hungria (9,75 milhões), e República Checa (10,7 milhões).
Trocando por miúdos, o problema do Brasil é que um país com uma população massiva subiu ao top 8 de número de óbitos por milhão de habitantes. Implicado nisso está uma realidade de escalabilidade que se traduz mais concretamente num total de óbitos que ascende aos 612 mil. Nenhum outro país tão massivo está sequer no top 15 de óbitos per capita. Curiosamente, os EUA são o país massivo que surge a seguir, na 17ª posição. Também ele liderado até há bem pouco tempo por Donald Trump, cujas posturas negligentes não divergiram muito das posturas do Bolsonaro.
Tenho ainda algumas coisinhas a apontar sobre as comparações de certificados:
1 – Comparar as restrições nazis com as atuais não faz grande sentido, até porque no primeiro caso estamos a falar de uma política inserida num programa de extermínio racial, enquanto que na segunda estamos a falar de restringir pessoas que ESCOLHERAM (sublinho: uma escolha) rejeitar a vacinação. Se calhar o extermínio racial não depende propriamente de escolhas, no sentido em que ninguém poderia escolher deixar de ser racializado como alguém pode escolher ser vacinado hoje mesmo. Começa logo por aí a falácia de falsa equivalência. Mas não é a única falha crassa.
2 – A grande diferença que não pode ser desonestamente ignorada: o certificado de arianismo buscava auxiliar, em última instância, o extermínio de uma parte da população. Já o certificado de vacinação serve, muito pelo contrário, para tentar reduzir o número de óbitos, numa tendência claramente positiva que se pode registar e comprovar nos vários países mais vacinados da Europa. Propósitos que não podiam ser literalmente mais opostos entre si.
3 – Estamos a falar de um conjunto de pessoas que dizem ser contra a desinformação, contra a desonestidade, contra o mau jornalismo e o alarmismo. Contudo, são as primeiras a espalhar desinformação, a fazer comparações destas. Acabam por ser piores do que o que criticam no que toca a “notícias” bombásticas, descontextualização de assuntos, entre tantos outros podres do yellow journalism, e revelam um fetichismo hollywoodesco, um autêntico sharkanado de sensacionalismo, indiferenciável das narrativas de quem partilha teses rebuscadas sobre o 5G, para além de roçar uma certa desonestidade cada vez mais cultista, dogmática.
Aproveito ainda para lembrar àqueles que afirmam que “não faz sentido vacinar mais do que os grupos de risco”, e que alegadamente “a vacina não reduz a transmissibilidade”, que não é bem assim: