A versão de Inverno da enciclopédia sazonal de Knausgård
Karl Ove Knausgård alcançou fama mundial quando se dispôs a narrar a sua vida, com um registo híbrido entre memória e ficção, num conjunto de livros ao qual deu o nome de A Minha Luta. Com uma totalidade de seis volumes e cerca de três mil páginas – quatro dos volumes estão já publicados em português, pela Relógio d’Água – este projecto chocou o mundo, ou parte dele, pelo menos, pela forma como o norueguês não poupou qualquer detalhe nem ninguém aos seus retratos do quotidiano. Praticamente todos os seus familiares são englobados nessa obra de larga escala, e quase nenhum sai de lá com uma imagem propriamente positiva, como também não sai, aliás, o próprio autor. Mas, se a atenção recaiu sobre ele em parte motivada por esses factores mais escandalosos, o mérito reconhecido foi o da forma meticulosa como o autor descreve episódios do seu quotidiano e da sua vida, uma exploração descritiva ao máximo.
Após esse projecto, o escritor norueguês decidiu ser ainda mais ambicioso e, ao invés de tentar abarcar em diversos volumes toda a sua vida, pôs mãos à obra para, em quatro diferentes livros (cada um referente a uma estação do ano), fazer como que uma enciclopédia, onde, por entre cartas à sua filha em gestação na barriga da sua mulher, descreve todo o tipo de coisas, desde objectos a estados de espírito, desde pessoas a personagens mitológicas. Em textos que são um híbrido entre descrição informativa e profundas reflexões filosóficas motivadas pela coisa que dá título ao texto, o mais interessante é a forma como o autor, com grande mestria, é capaz de, partindo de um ponto, chegar, no final do texto de duas ou três páginas, a algo que, inicialmente, nos poderia parecer completamente distante ou não relacionado.
No Inverno é o segundo volume deste projecto publicado em Portugal (o primeiro, No Outono, publicado no final do ano passado), pela Relógio d’Água. Como seria de esperar pela estação do ano que lhe dá nome, as entradas desta enciclopédia são agora mais relacionadas com factos particularmente invernais. ‘Neve’, ‘Frio’, ‘Prendas de Natal’, ‘Fogo de Artifício’, ‘Botas’; estas são algumas das coisas sobre as quais os textos incidem. Longe de ser um livro só ligado a motivos invernais, a época sazonal não invalida a existência de textos completamente independentes dela, como serão por exemplo os casos dos sobre ‘Procissão funerária’, ‘O desejo sexual’, ‘Cotonetes’, ‘Tampas de Esgoto’ e ‘Canos’.
Neste último, Knausgård monta toda uma linha de pensamento que nos leva desde os banais canos, que nos trazem a água, até toda uma tese acerca de redes de alimentação (das quais fazem parte, além da da água, também a da eletricidade, por exemplo), que não são mais que prolongamentos do nosso ser que expõem a nossa dependência, “porque o que é o cano que termina na torneira senão um prolongamento da garganta, o cano que sai da retrete senão um prolongamento do intestino grosso e da uretra, o cabo que transporta as imagens para a televisão senão um prolongamento dos olhos, e o cabo que transporta a informação para o computador um prolongamento do cérebro?”
Também esta enciclopédia sazonal é um prolongamento de A Minha Luta, acima de tudo na obsessão com o quotidiano e corriqueiro. Tal como no seu magnum opus, o foco está em mostrar que a nossa vida como humanos é, acima de tudo, só isto, mas que só isto, que parece ser tão banal, é afinal capaz de proporcionar momentos de elevada reflexão e, acima de tudo, de uma beleza efémera, como a das alterações sazonais que se repetem umas às horas, em balanços tão quotidianos como os que nos regem a nós.