Daniel Faria: a aparição de um poeta místico

por Lucas Brandão,    28 Maio, 2022
Daniel Faria: a aparição de um poeta místico
Daniel Faria / DR

Nascido a 10 de abril de 1971, um sábado de aleluia a aguardar a chegada da Páscoa, Daniel Augusto da Cunha Faria deambulou pelo distrito do Porto, entre a sua terra natal, Baltar (em Paredes), o Marco de Canaveses (mais concretamente à paróquia de Fornos) e ao Porto, onde desenvolveu os seus estudos na Universidade Católica, em Teologia. Viria a ingressar no Seminário (Maior do Porto), com vista a ser sacerdote. No entanto, a paixão pelas letras foi-se revelando, ingressando na Faculdade de Letras da cidade para estudar Estudos Portugueses. Foram as vocações que nunca se sobrepuseram, já que, para Faria, a vida sacerdotal e a literária e cultural eram perfeitamente conjugáveis, vias de comunicação do sagrado, do amplo, do belo. Foi uma sensibilidade que foi transpondo para a poesia que escreveu e para o teatro que encenou. Porém, a sua vida seria fugaz. A 9 de junho de 1999, na véspera do Corpo de Deus, com somente 28 anos, faleceria após um acidente no Mosteiro de Singeverga — trocara o rumo do sacerdócio pelo do monastério —, em Roriz, Santo Tirso, enquanto finalizava o seu percurso de noviciado e, como tal, prestes a tornar-se monge.

Contudo, a vida quis algo diferente deste agora mitificado ser humano. Mais do que o seu legado pastoral, perdurou e perdura o seu literário. Este não deixa de ser profundamente significativo, já que ilustra as suas mundividências, visões do mundo de alguém anormalmente culto e contemplativo para a idade. Mais do que apregoar o misticismo, interpretava-o e fazia dele parte de si. Por mais que fosse discreto no seu quotidiano, pendurava essa discrição de lado na poesia que redigia e na transcendência que tanto vislumbrou e escreveu. Exemplos remontam a livros já publicados, como “Explicação das Árvores e de Outros Animais” (1998, onde indaga o vivo e o sagrado), “Homens que São como Lugares Mal Situados” (também de 1998) ou “Dos Líquidos” (2000, já póstumo), para além de outros avulsos que iam sendo publicados e que seriam, futuramente, compilados, como em “Poesia” (2003). Também “Sétimo Dia” (2021) mergulha nas origens do ser e na mudança da existência, indo da meramente humana e carnal até à mais transcendental, sendo, talvez, a que traduz mais o testemunho que Faria mais quis que se tornasse profético e idílico. Este seria editado por Vera Vouga, professora da Faculdade de Letras que o acompanhou nos primeiros passos pela literatura.

Desde que nos deixaste o tempo nunca mais se transformou
Não rodou mais para a festa não irrompeu
Em labareda ou nuvem no coração de ninguém.
A mudança fez-se vazio repetido
E o a vir a mesma afirmação da falta.
Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa
Nem se cumpriu
E a espera é não acontecer — fosse abertura —
E a saudade é tudo ser igual.

“Explicação das Árvores e de Outros Animais”

Foi um caminho que já foi encontrando enquanto criança, quando iniciou e realizou na sua vila de Baltar, tendo crescido num ambiente bucólico, repleto de terras e de campos, no lugar de Alto Trigais (então Além-do-Rio). Crescia numa família de quatro filhos, que deambulava entre a terra e a urbanidade, já que o seu pai era um dos muitos operários que iam lavorando por lá. A sua apetência por ir mais longe, por ir além, ia ao encontro da vocação sacerdotal que vinha demonstrando, enquanto se rendia aos livros, ao mesmo tempo que não abdicava das típicas interações com a Natureza e com os seus frutos. Um gosto grande pela luz e pelas suas diferentes emissões foi tomando de assalto o coração de Faria. Uma necessidade intrínseca de iluminar e de clarear. Algo que fez com a sua poesia.

Foi, assim, que, por insistência sua, aos onze anos, entrou no Seminário do Bom Pastor, em Ermesinde, e entrou em convivência com a poesia de Sophia de Mello Breyner, de Luiza Neto Jorge de Eugénio de Andrade, por intermédio de formadores seus, que o acompanhariam na sua mudança para o Seminário de Vilar, em 1986, aos 15 anos de idade. Um período no qual se sentiu pleno, enquanto ia usufruindo da envolvência frondosa do Bom Pastor, repleta de árvores e de uma extensa área verde. Ia ganhando gosto por uma vida regrada, disciplinada, maravilhando-se nas mais diversas expressões artísticas, continuando a escrevinhar a poesia que já fazia nos tempos do ciclo. Enquanto seminarista em Vilar, foi quando ingressou na Escola Secundária Rodrigues de Freitas, já no Porto. Na transição para o Seminário Maior, entrou na Faculdade de Teologia da Universidade Católica, onde começou os seus estudos superiores.

É uma fase em que começa a frutificar consistentemente toda essa vocação pela poesia e pela literatura. Para além de organizar círculos de leitura e de convidar alguns autores ao Seminário (entre eles, o próprio Eugénio de Andrade, corria o ano de 1991), vai mergulhando em outros, como Herberto Helder — a sua maior paixão —, Ruy Belo, García Lorca ou Rainer Maria Rilke, para além do teatro de Shakespeare ou a poesia brasileira de Carlos Drummond de Andrade e de Cecília Meireles. Mesmo enquanto adolescente, já fazia questão de expandir os seus horizontes literários, muitas vezes abdicando das futeboladas pelos livros e metendo-se em empreitadas das quais resultavam recomendações para os seus colegas, que, por norma, retribuíam com música. Apesar de ter este caráter dinâmico, sempre foi, em essência, alguém recatado, dado ao seu quadrado de sossego, mas com olhar arguto e claro, capaz de descodificar os segredos de um silêncio sempre sábio. Não deixava, não obstante, de trocar missivas com os seus colegas, partilhando muito do que ia sabendo e descobrindo, inclusive traduções de filosofia helénica, pré-socrática, para além da poesia que escrevia e, amiúde, publicava. Foi assim com “Oxálida” (1992) e com “A Casa dos Ceifeiros” (1993), os primeiros que concluiu e que integrariam os que seriam publicados formalmente no seu último ano de vida, em 1998.

Amo o caminho que estendes por dentro das minhas divisões.
Ignoro se um pássaro morto continua o seu voo
Se se recorda dos movimentos migratórios
E das estações.
Mas não me importo de adoecer no teu colo
De dormir ao relento entre as tuas mãos.

“Dos Líquidos” (2000)

Foi o reforço destes hábitos que o conduziu a um desvio de percurso, depois de concluído o curso em Teologia. Ao invés de ir ao encontro da ordenação, em 1994, aos 23 anos, inscreve-se na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e licencia-se, como referido, em Estudos Portugueses. O chamamento por uma vida monástica intensificava-se, procurando uma vida frugal e de comunhão, fomentando a contemplação e a oração, a santificação dos outros e do mundo. Passa a viver e a ajudar no dia-a-dia da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição – comumente conhecida como a do Marquês -, onde era pároco o seu orientador, o futuro D. Carlos Moreira Azevedo, que muito alimentou as iniciativas de Faria no Seminário Maior, nas funções de diretor espiritual, e, aos fins-de-semana, ocupava-se na paróquia de Santa Maria de Fornos, no Marco de Canaveses, onde era pároco o também poeta Nuno Higino Cunha. As afinidades entre ambos resultaram em várias iniciativas artísticas, desde peças de teatro a desenhos e colagens. Com este, também viajaria a Nova Iorque e à Ilha do Sal, em Cabo Verde, experiências que aproveitou para ainda aprofundar mais o seu virtuosismo e a sua irreverência tímida.

Antes de entrar em Singeverga e de concluir os estudos em Letras, ainda chegou a viver no Mosteiro de São Bento da Vitória, não muito distante da faculdade. Aproveitava a vida de estudante para se enriquecer culturalmente, indo assiduamente ao cinema, onde espreitava o cinema do sueco Ingmar Bergman ou do russo Andrei Tarkovsky; mas também frequentando o teatro, muitas vezes na companhia de Carlos Azevedo. Singeverga seria a sua última casa, já que faleceria no ano de 1999, depois de dar entrada no Hospital de São João depois do mencionado acidente. Uma queda aparatosa numa noite chuvosa levou-o a contrair um traumatismo craniano e, na madrugada, a ser levado para o hospital. Apesar de uma TAC que o manteve em observação, Faria entraria em estado de coma, por ter uma hemorragia cerebral. A operação que o tentou resgatar não o lograria, já que se formaram novos coágulos e Daniel Faria morreria nove dias depois, mesmo antes dos 30 anos.

Voz pisada como o vinho
De onde bebo
A perda dos sentidos

Silêncio tão pisado que não verte
O verbo
Silêncio encruzilhado

Na voz do homem calado no caminho

“Poesia” (2003)

Havia-se perdido um membro que gostava de ajudar na vida diária da comunidade, apoiando a vindima e engarrafando o famoso licor de Singeverga, fazendo as limpezas e o restauro e encadernação de livros. Porém, o seu espírito inovador nunca foi silenciado e, como tal, continuava a fazer com que o teatro não esmorecesse e mobilizava os seus companheiros a escrever, a encenar e a representar. Já granjeando alguma reputação, chegou a conceder entrevistas pontuais sobre a sua poesia e sobre o modo como se encontrava na criação artística.

A sua tese de licenciatura em Teologia, defendida em 1996, que versa sobre o frade capuchinho e poeta Frei Agostinho da Cruz, que viveu entre os séculos XVI e XVII, seria o baluarte do seu percurso académico. Na sua cela de Singeverga, havia ficado a regra de São Bento — que disciplinava o modo de ser e de estar de grande parte das ordens religiosas mendicantes —, a poesia de Santa Teresa de Ávila e de São João da Cruz, os dois pensantes da ordem carmelita, manuais de literatura, a poesia de Luiza Neto Jorge, entre outras dezenas de livros e de manuscritos/papéis. De igual modo, um pequeno rádio, onde sintonizava na Antena 2 e na TSF para poder usufruir da capacidade transcendental que a própria música transporta.

Não obstante, o seu exemplo e, em especial, para quem não o conheceu, a sua obra criou raízes e extensos caules. Assim, o que perdurou foi o que a sua poesia cultivou e criou, fruto de uma vida onde pontificou o espírito de amizade e de lucidez, com amplo sentido universal, mas também introspetivo e com lampejos de autoconhecimento. Seriam várias as honras que conseguiria arrecadar postumamente, desde prémios ao seu nome ser imortalizado em escolas, ruas e outros galardões, para além de projetos que havia sonhado, como o eremitério da Quinta da Cruz, na zona do Tabuaço. A própria tradução do seu trabalho escrito merece, ainda hoje, louvores e rasgados elogios, elogios esses que ecoam por muitos daqueles que o viram partir e que, seus compatriotas, se inspiraram na sua ida às raízes e às pequenas coisas para se reencontrar com as origens do que se é. De igual modo, o documentário “Daniel Faria: O Silêncio e a Palavra” (2021) celebrou os 50 anos do seu nascimento e foi realizado pela jornalista Marlene Maia.

“Diário

Seja o que for
Será bom.
É tudo.”

“Poesia” (2003)

A poesia como um método de se perguntar pelo mistério, mesmo sem o chegar a decifrar na totalidade. Um método que se foi construindo, pedra sobre pedra, daquelas que ia acumulando durante o seu percurso de vida. Desde as conchas da praia às que lhe iam dando consoante ia conhecendo o outro, enquanto algumas delas continuam conservadas na sua terra e no seu último mosteiro. Foram as pedras que acumulou no que percurso que viu e sentiu, num diálogo intenso com a presença de Deus e com o espectro da morte, sem esquecer a geografia real do Porto, as suas gentes, os seus lugares e campos, as suas relações.

A liberdade que sentia em relação ao outro, serena e bem resolvida, é, também, espelho da tal entrega e da dedicação que debruça sobre os seus, colegas, familiares e amigos, numa experiência quase única com a dádiva. A sua facilidade mundana, com situações que, por vezes, aparentavam ser conflituosas, contrastava com a dificuldade com que acedia à mais elevada literatura e com que se rendia a escritos de autores da sua mais alta consideração. Aqueles que o conheciam, da vida paroquial, iam tratando-o como mestre, com uma fragilidade que se simplificava nas preces e nas coisas que considerava “belíssimas”, que não eram poucas, mas, somente, pequenas. Como tal, passavam despercebidas. Nem sempre eram as coisas flutuantes ou fixas da Natureza. Muitas vezes, eram pequenas referências culturais, como CDs de música brasileira, poesia ou trechos de obras de prosa.

Creio que a importância da luz se prende com a permanente interrogação que se coloca quem, de algum modo, se sente chamado à vocação sacerdotal ou a uma vocação religiosa — creio que, como para nenhum outro, para esses se torna serena urgência a luz, o ver inteiro, a presença abundante, e nunca suficiente, dos sinais; outro exemplo — a “voz que bebo” é, antes de mais, a voz do poema; e o poema constrói-se a si mesmo, por isso eu disse que escrever é um exercício de obediência.

Carta de Daniel Faria a Francisco Duarte Mangas, 9 de junho de 1998

Exemplos da fraternidade que preconizava, espelhando as suas fragilidades e as suas limitações, desnudando os limites da sua presença. A poesia que escreveu foi essa mesma doação, um gesto de amor. Com tudo isto, a vida monástica era, enfim, o seu destino. Um lugar de profunda e direta comunhão com a Natureza e onde pôde imprimir a maior autenticidade e a mais bela fidedignidade à sua poesia. Um estado de graça absoluta, de felicidade fértil que lhe permitiu construi-la ou, por outras palavras, delapidar e eliminar enquanto se descobre a fragilidade e a realidade. O seguir de uma vocação, à imagem do que é seguir o caminho da divindade.

Daniel Faria personificou a morte que muitos lhe anteviam, já que o observavam como um anjo. Uma presença quase etérea, que se distanciava amiúde da realidade palpável e que procurava essa morte como uma libertação. Procurava um novo canto, uma nova dimensão, uma tal de transcendência. As pedras que acumulou eram o registo de alguém que captou a vida com limpidez e com tamanha genuinidade que só podia dar lugar ao sagrado. O plantar da poesia na terra como forma de frutificar a realidade e a humanidade, aberta ao encontro com a sua verdade. Foi o misticismo que Daniel Faria, na sua vida galopante, plantou como legado, inspirando no exemplo de Cristo, onde a morte é vencida através da reestruturação da vida e da compreensão de algo que vai além. É não mais do que a alegria, produto de um amor pelas expressões naturais e fraternas do espírito, que, em si mesma, é convite à sua multiplicação. Pois que a vida seja elevação e a alegria continuação.

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