Entrevista. Saint Caboclo: “Queremos colocar Lisboa no mapa para todas as pessoas pretas e queers que decidam visitar Portugal”
Um dos aspetos mais interessantes de um clube noturno é a criação de uma comunidade. Um grupo de pessoas que se junta em algum lugar, ao mesmo tempo e partilha o propósito: diversão. O que as conecta a esses lugares pode ser a música, a dança e as outras pessoas que lá encontram com quem partilham interesses. Escolhem-nos como pontos de encontro para convívio e celebração. Mas também elas, as pessoas, estão sujeitas a ser escolhidas ou preteridas.
Cada espaço de diversão noturna tem uma ideia de quem pertence a esse espaço. Definem quem lá pode celebrar, o que se celebra e como. Lá dentro, a música pode ser convidativa a uma grande seleção de jovens que se procura divertir a uma sexta-feira ou sábado. No entanto, à porta há uma política de pertença a ser cumprida e pessoas sujeitas à exclusão.
A resposta a esse drama vivido por muitos na noite portuguesa chega por Saint Caboclo e a sua equipa no trabalho feito com o Dengo Club. Natural do Pará, este jovem de 23 anos propõe uma revolução nas oportunidades de diversão noturna para os seus pares que, como ele, não se encaixam no padrão de cliente das discotecas mainstream. Movidos pela interseccionalidade, o objetivo é oferecer um espaço seguro para pessoas queer, pretas e não binárias se divertirem em alternativa ao que já existe.
Como foram as tuas primeiras experiências na noite de Lisboa?
Lisboa sempre foi uma incógnita pra mim. Havia noites em que me conseguia divertir e outras em que me sentia completamente desprotegido nos círculos frequentava. Havia alguns espaços para pessoas LGBTQ+ em Lisboa, mas acredito que tanto a música como as pessoas para quem estes espaços eram feitos, não iam de encontro com a minha realidade ou as minhas referências.
Entre as experiências na noite como clubber e dj, quando é que percebeste que era possível criar o Dengo Club?
Acredito que hoje em dia todo mundo gosta de funk e que se tornou algo muito comum nas noites do mundo todo. Em Lisboa lembro-me de uma época onde eu e a Kamila [King Kami] éramos duas pessoas que não tinham um grande público por escolher tocar esse estilo. Comecei a tocar em 2018, quando Funk não era visto como é agora. Toquei em muitos espaços onde senti que as pessoas não entendiam o meu estilo e até mesmo tinham esse certo preconceito com a música que eu sentia que me representava. Eu pensei que a melhor forma de fazer com que nunca me sentisse assim era encontrar o público que pensava como eu, mas não sabia onde estava um lugar como esse.
Juntando isso com todas as crenças que eu tenho numa união interseccional preta, queer e feminista, a Dengo Club hoje é a festa “black queer-owned” de Portugal.
Tenho o orgulho de provar que algo feito por pessoas pretas e queer para esse mesmo grupo é uma festa que tem dos maiores alcances possíveis com apenas 7 meses de existência. Notei que era possível a Dengo Club existir quando percebi o quão carente eu e o meu grupo de amigos estávamos por algo que fosse feito para nós.
“Criar safe spaces que englobam pessoas pretas, queer e mulheres é um trabalho muito difícil pois a desinformação e o preconceito existem até mesmo dentro da própria comunidade.”
Saint Caboclo
Dengo Club é um projeto identitário e político que quer fazer transformações. Como é que os espaços a que se dirigem vos têm recebido?
Os espaços não estão preparados para algo como a Dengo. É complicado explicar para Lisboa que tem como ser lucrativo e ter uma mensagem política de união e respeito. Poder monetário também é importante e saber que existem pessoas que não podem experienciar algo assim por não ter dinheiro é uma preocupação nossa. Pedimos sempre para as pessoas se organizarem, pedirem guest list na lista BIPOC/Trans com antecedência e sempre avisarem se não podem comparecer para passarmos o spot ao próximo.
Há reações de outros agentes da noite ao vosso crescimento, como promotores e donos de estabelecimentos?
Sim. Nem todo mundo está feliz com o nosso crescimento. Negamos muitas oportunidades em espaços que não estão dispostos a entender os nossos ideais. Porém é nítido o quanto a Dengo Club está influenciando Lisboa. Todas as festas agora querem ser um safe space para pessoas pretas ou usufruir disso. No último mês vimos muitos espaços repetirem a nossa mensagem, o sistema de vendas e listas e até mesmo a nossa comunicação digital. Eu criei todo esse sistema sozinho quando estava morando num Hostel. Acredito que o crescimento da Dengo Club tem a ver com a falta de esforço das discotecas que estão presas na mesma coisa há anos e não conseguem pensar no futuro. Se uma pessoa sozinha consegue criar algo tão simples e que funciona isso é a prova de que os donos de bares e discotecas LGBTQ+ não estão sequer tentando melhorar os seus serviços.
Sabemos que o vosso projeto também tem uma vertente social, como bilhetes a preços acessíveis para pessoas com menos possibilidades que queiram desfrutar da noite ou colaboradores que prestam auxílio em situações de assédio, por exemplo. Como é que conciliam o aspeto comercial com essa sensibilidade, estando em ascensão?
Essa é a parte mais complicada de todo o processo. Num espaço com 800 pessoas é extremamente difícil controlar o que acontece, mas isso não é uma desculpa para não tentar. Usamos todos os meios de comunicação e tentamos o máximo fazer com que esse sistema funcione. A chave é ouvir o seu público e ter a certeza de que elxs sabem que você se importa. A comercialização da Dengo Club é importante, porque pessoas LGBTQ+ e mulheres merecem uma plataforma com poder e influência. A nossa tentativa é ser para esse grupo de pessoas uma oportunidade grande como é um Boiler Room ou um festival que muitas vezes não tem uma representação muito boa para pessoas queer e pretas que tocam ritmos que vão para além do techno.
Como um projeto que se propõe a criar safe spaces essencialmente para pessoas negras e queer, o que é que esperam dos aliados?
Criar safe spaces que englobam pessoas pretas, queer e mulheres é um trabalho muito difícil pois a desinformação e o preconceito existem até mesmo dentro da própria comunidade. Nós tentamos fazer com que o máximo de informação possível chegue às pessoas, mas nunca conseguimos fazer com que as mesmas leiam essa informação.
Acreditamos que a Dengo não é um espaço perfeito, mas é o único espaço que tem uma mensagem tão pública e forte. Pedimos para os nossos aliados para que tenham paciência e que entendam que todos vamos cometer muitos erros até alcançar o que se espera de uma ideia tão crua que só existe agora em Portugal, pois um jovem decidiu criar algo que noutros países era comum.
Quais são os objetivos para um futuro próximo e a longo prazo?
A Dengo Club é uma marca criada por Saint Caboclo, que pretende trazer para Lisboa coisas especiais para uma comunidade específica que precisa de espaços como esse. Nós queremos colocar Lisboa no mapa para todas as pessoas pretas e queers do mundo que um dia decidam visitar Portugal. A Dengo Club neste momento vai evoluir para uma agência com o nome DNGCLB, sairemos em tour durante este ano ainda para Madrid, Berlin, Londres e em 2023 vamos para o Brasil. Esse movimento é algo que vai para além de popularizar a marca, mas sim conhecer diferentes realidades de pessoas pretas, queer e mulheres para futuramente recebermos artistas na nossa agência. Temos planos para o primeiro festival de música eletrônica preta e LGBTQ+ em 2023 e assim acreditamos que vamos abrir espaço para outros artistas queer terem a chance de crescer dentro de Portugal.
Dengo Club avança para a sétima edição já este sábado, dia 4 de junho. A celebração desta vez será no Lisboa Ao Vivo, das 22h30 às 6h e vai contar com a presença do fenómeno do funk proibidão MC Carol. Para além da artista brasileira, o lineup é composto por Fvbricia, Cigarra, Sampaio, Mendi, Saint Caboclo b2b Von Di, Circa Papi e Raul. Os bilhetes podem ser adquiridos através da plataforma Shotgun.