Ano Saramago. “História do Cerco de Lisboa”: o maior romance

por Maria Pinto,    18 Julho, 2022
Ano Saramago. “História do Cerco de Lisboa”: o maior romance
Capa do livro “História do Cerco de Lisboa”, de José Saramago:

Este artigo faz parte da iniciativa Ano Saramago, no âmbito da celebração dos 100 anos do Nobel português José Saramago. Ao longo de 2022, e até Novembro, mês em que o escritor faria o seu 100.º aniversário, a Comunidade Cultura e Arte lançará um total de 11 artigos, um por cada mês, sobre 17 livros do escritor.

Não será a história um grande romance escrito a várias mãos? E se o é, poderemos duvidar que está bem escrito?

José Saramago decide, em 1989, escrever “História do Cerco de Lisboa”, estória essa que irá acompanhar a vida do revisor Raimundo Benvindo Silva que, ao trabalhar num livro sobre o Cerco de Lisboa de 1147, decide colocar um “não” numa das frases, alterando dessa forma a decisão dos Cruzados em apoiar os portugueses. É com esse acréscimo aparentemente tão pequeno, pois a palavra “não” seria mais um erro no conjunto de discrepâncias que Raimundo estava a descobrir na revisão do livro, que a vida deste revisor irá mudar drasticamente ao conhecer a sua supervisora Maria Sara, que propõe a continuação da escrita do Cerco de Lisboa, partindo da hipótese que a colocação da palavra “não” lançou.

O livro começa com a epígrafe: “Enquanto não alcançares a verdade, não poderás corrigi-la. Porém, se a não corrigires, não a alcançarás. Entretanto, não te resignes”, assinalando, logo abaixo, a sua proveniência: Livro dos Conselhos. Embora abra um mote que irá ser pertinente durante toda a estória, esta epígrafe esconde uma ambiguidade interessante, pois pode já ser uma mentira: o Livro dos Conselhos é algo fictício criado por Saramago, que mais tarde irá juntar-se ao Livro das Evidências (em “Todos os Nomes”), Livro dos Contrários (em “O Homem Duplicado”), Livro das Previsões (em “As Intermitências da Morte”), entre outros.

É interessante esse início, pois “História do Cerco de Lisboa”, um romance que contém vários romances dentro dele, parece afirmar que a história, tal como a conhecemos, é também um romance entre os outros, “(…) com uma continuada dúvida, com um afirmar reticente, sobretudo a inquietação de saber que nada é verdade e ser preciso fingir que o é.” “Pensarmos nós que nunca viremos a saber que palavras disse realmente D. Afonso Henriques aos cruzados, ao menos bons dias, e que mais (…)”. Raimundo, que não se resigna até encontrar a verdade, repara em vários erros cronológicos e de exatidão histórica durante a revisão, atrasando a entrega do livro, o que leva a editora a pressioná-lo, independentemente da qualidade. Recusando-se a rever o texto entregue pelo revisor, pois já basta de atrasos, é interessante repararmos que o que leva à colocação de uma errata na futura edição do livro sobre o cerco de Lisboa não são as discrepâncias nele contidas, mas sim a simples palavra “não”, nesse ato de rebeldia de Raimundo.  

É com este início conturbado que Raimundo abre a discussão sobre o que significa ser escritor, mantendo alguns paralelismos com “Manual de Pintura e Caligrafia”, nomeadamente com a chegada de Maria Sara (tal como “H” começa a mudar a sua perspetiva com a chegada de “M”). Podemos até questionar-nos se Saramago não estará a brincar com os leitores, mantendo a mesma letra inicial no nome destas duas mulheres tão idênticas, e adivinhando Raimundo, antes de o saber, que o nome de Maria Sara começaria por “M”: “(…) adormeceu na letra M, com o dedo sobre o nome de Maria, sem dúvida de mulher, mas a-dias, como sabemos, o que não exclui a hipótese de uma coincidência, num mundo onde elas são tão fáceis”.

Se as estórias são escritas para preservar um passado, e se a História é isso mesmo, deparamo-nos com duas formas de escrita aparentemente tão diferentes mas que, subtilmente, conversam entre si de formas tão idênticas. O que está escrito já foi. Não podemos mudar o rumo das personagens. Não podemos mudar a História. Podemos, no entanto, questionar, sabendo que a busca pela verdade é um trabalho sem fim.    

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