A influência do mitologista Joseph Campbell na forma como se contam as histórias

por Miguel Rico,    17 Julho, 2023
A influência do mitologista Joseph Campbell na forma como se contam as histórias
Joseph Campbell / “The Power Of Myth – The Heros Adventure” / DR

O mitologista norte-americano Joseph Campbell (1904-1987) dedicou a sua vida ao estudo das narrativas míticas e ao seu simbolismo. O seu trabalho é amplo e permanece uma referência incontornável em áreas como antropologia, literatura, teologia e estudos fílmicos. A sua obra The Hero with a Thousand Faces tem vindo a tornar-se uma das obras mais influentes na área do storytelling e do guionismo. Cada vez mais escritores e autores de ficção para filmes, séries, livros e videojogos reconhecem os padrões estabelecidos por Campbell, servindo-se deles para enriquecer as suas obras e a estrutura dos seus enredos. Os exemplos são inúmeros e vão desde a célebre saga de George Lucas, Star Wars, e da trilogia Batman, de Christopher Nolan, até aos episódios das séries Breaking Bad e Rick and Morty.

Ainda que o “monomito”, descrito por Campbell, constitua uma ideia celebrada e intemporal, o mesmo não pode
ser dito relativamente a algumas convicções pessoais e políticas do autor. A 2 de Dezembro de 1989, o jornalista e
crítico de cinema Brendan Gill publicou, no The New York Times, um artigo
onde confessava desprezar algumas das opiniões e comentários do mitologista, frequentemente antissemitas, enquanto este lecionava na Universidade de Sarah Lawrence, que Gill frequentava.

Quem foi Joseph Campbell?

Joseph John Campbell nasceu em 1904 na cidade de White Plains, no estado de Nova York. Desde criança, inspirado pela apresentação itinerante de Buffalo Bill, Wild West show, que Campbell desenvolveu um grande fascínio pela figura indígena. A curiosidade pela cultura nativo-americana cresceu e chegou a criar, mais tarde, algumas tensões com a sua fé. Criado por um casal de católicos, Joe (como era chamado na altura) sentiu algum conflito entre as mitologias dissonantes destas tradições culturais. Aos 10 anos, Campbell retoma a sua paixão pela etnologia e começa a frequentar o Museu Americano de História Natural. Trabalhava em cintos wampum, típicos das tribos ameríndias, funda uma pequena “tribo” em homenagem aos Lenapes e desenvolve um interesse por totens, máscaras e a sua respetiva simbologia.

Anos mais tarde, após ser transferido da Universidade de Dartmouth para a Universidade de Columbia por falta de rigor e aproveitamento académico, Campbell termina, em 1925, a licenciatura em Literatura Inglesa e, dois anos depois, conclui o mestrado em Estudos Medievais com notas excecionais. Durante este período, Joe integrou, ainda, uma banda de jazz e tornou-se um atleta profícuo, ganhando várias competições de corrida e atletismo. 

Bill Moyers, George Lucas, Joseph Campbell durante as filmagens de “The Power of Myth” (1985) / DR

Após o término do mestrado, e graças às suas contribuições em Arthurian Studies, Campbell recebe uma bolsa para dar continuidade aos seus estudos na Universidade de Paris, onde estudou durante um ano. De 1928 a 1929, viajou até à Alemanha onde retomou o percurso académico na Universidade de Munique. Foi durante o tempo que passou na Europa, e sem nunca perder a sua paixão pela mitologia, etnologia e antropologia, que Campbell foi influenciado pelas obras dos modernistas Picasso, James Joyce e Thomas Mann, mas também pelo pensamento de Sigmund Freud, Friedrich Nietzsche e Carl Jung, que, como veremos, acabou por marcar profundamente o seu trabalho mais tarde. 

Campbell regressa aos Estados Unidos em 1929, durante a Grande Depressão, sem perspetivas de encontrar um trabalho no ensino. Após algumas divergências com os seus orientadores na Universidade de Columbia, ao mostrar ter ampliado os seus interesses de investigação, Campbell desiste da ideia de realizar o doutoramento. Em 1931, decide viajar pelo país em busca de um rumo para a sua vida e carreira. Passou um ano em São Francisco, na companhia de John Steinbeck e da sua esposa, Carol, enquanto tentava candidatar-se a uma posição de professor em várias universidades, porém, sem sucesso. Foi apenas em 1933 que Campbell conseguiu uma posição na Canterbury School. Em 1934, após um ano dedicado somente à escrita e à leitura, recebe um convite do departamento de Literatura da Universidade Sarah Lawrence, onde lecionou durante 38 anos até à sua reforma. Em 1938, casa com Jean Erdman, uma das suas alunas, que veio a tornar-se uma conhecida dançarina e coreografa de dança moderna.  

Nos anos 40, Campbell conheceu Swami Nikhilananda que o apresentou ao indólogo Heinrich Zimmer, com quem estabeleceu uma amizade. Após a morte inesperada de Zimmer, em 1943, Campbell ficou responsável pela publicação do seu trabalho póstumo. Enquanto isso, continua a trabalhar nas suas contribuições para a Fundação Bollingen, local onde começara a trabalhar a convite do seu falecido amigo. Em 1944, numa coautoria com Henry Morton Robinson, publicou A Skeleton Key to Finnegans Wake, um trabalho de crítica literária dedicado ao escrutínio da obra de James Joyce. A acrescer às suas contribuições para a Fundação Bollingen, Campbell editou, ainda, obras de Maya Deren e Alan Watts

Ainda na década de 40, Campbell ganha uma forte notoriedade enquanto orador. As suas palestras tornaram-se conhecidas e a sua presença era frequentemente requisitada por diferentes audiências e instituições de renome. A sua perspicácia e o dom da sua oratória elevaram o reconhecimento internacional do mitologista e as suas ideias sobre o mito folclórico influenciaram muitos aspetos da cultura popular.

Joseph Campbell morre de cancro do esófago em 1987, na sua casa em Honolulu, mas antes, grava um conjunto de entrevistas com Bill Moyers para a série The Power of the Myth, transmitida na PBS um ano após a morte do mitologista. Filmado no “Rancho Skywalker”, de George Lucas, na Califórnia, Campbell partilha com Moyers algumas das suas ideias sobre o papel que a mitologia desempenha no pensamento e na sociedade. Esta série documental é, até hoje, um dos maiores sucessos da televisão pública norte-americana [1].

Durante o seu percurso, Campbell deixou uma vasta obra dedicada ao estudo da etnologia, mitologia e antropologia e o seu trabalho é prezado por académicos, professores e estudiosos nas diferentes áreas do conhecimento social, humano e artístico. Entre alguns dos contributos mais pertinentes da sua vasta obra encontram-se títulos como Goddesses: Mysteries of the Feminine Divine (2013) e os quatro volumes de The Masks of God (Primitive Mythology, Oriental Mythology, Occidental Mythology, e Creative Mythology), mas a sua obra mais célebre é, incontestavelmente, The Hero with a Thousand Faces (1949).  

A jornada do herói ou o “monomito” 

Publicado pela primeira vez em 1949 através da Fundação Bollingen, O Herói das Mil Faces (no original, The Hero with a Thousand Faces) é uma obra seminal sobre mitologia comparativa pensada à luz da psicologia jungiana e de Sigmund Freud, ideias de Friedrich Nietzsche e noções etnográficas de Arnold van Gennep [3]. Ainda que constitua uma indispensável ao estudo da mitologia comparativa, é também reconhecida por exercer uma grande influência em áreas como antropologia, literatura, teologia e estudos fílmicos, tendo inspirado obras de ficção como Dune (1965), de Frank Herbert ou na saga Star Wars, de George Lucas. 

“Uno é o mito, mas não por se referir a uma só pessoa, como creem alguns, pois há muitos acontecimentos e infinitamente vários, respeitantes a um só indivíduo, entre os quais não é possível estabelecer unidade alguma (…)” 

(Aristóteles, 2007: p.97) [2]

Em The Hero with a Thousand Faces, Joseph Campbell descreve os padrões ancestrais, universais, transculturais e intemporais do mito heroico. Através de um estudo comparativo de mitos em diferentes culturas, Campbell identificou uma estrutura semelhante entre as histórias contadas. Campbell apelidou este modelo de monomito, um termo emprestado a James Joyce da obra Finnegans Wake. De acordo com o monomito de Campbell, o padrão reconhecido na jornada do herói mitológico está inscrito em todo o ato narrativo [3] e a principal razão para tal encontra-se na tese abordada por Carl Jung que defende a existência arquétipos do inconsciente coletivo.

Jung define um “arquétipo” como a padronização do comportamento humano. Os arquétipos são elementos recorrentes em contos literários e compreender o seu propósito favorece o desenlace da história [4]. Inspirado pelo pensamento de Jung e pela tese do inconsciente coletivo, Campbell descreve os símbolos mitológicos como manifestações espontâneas da psique, produções intrínsecas do ser humano e intocáveis desde a sua origem. O autor apela, no capítulo Myth and Dream de The Hero with a Thousand Faces, à importância que os escritos de Jung e Freud tiveram no estudo da mitologia, referindo que, tanto estes mestres da psicanálise como os seus seguidores, desempenharam um papel importantíssimo ao evidenciar a subsistência destes elementos característicos do mito heroico na contemporaneidade.

A premissa proposta na conceptualização de um monomito reforça a ideia de que contar história é um processo profundamente enraizado na espécie humana. A partir da sua análise multidisciplinar e transcultural da tradição oral, em específico do mito heroico, Campbell conseguiu extrair a essência do processo narrativo ao categorizar as etapas da jornada do herói num modelo estrutural [3].

“Joseph Campbell foi um dos primeiros a compreender a influência que os mitos ancestrais exercem sobre as fábulas modernas. Por exemplo o modelo do herói monolítico que adopta em The Hero with a Thousand Faces (O Herói das mil Faces) encontra-se em todas as culturas de todas as épocas” 

(Altier, 2004, pp. 54,55) [5]

O modelo idealizado por Campbell explora a ideia de que todas as histórias seguem um conjunto de padrões universais. Na obra The Writer’s Journey: Mythic Structure for Writers (1993), Christopher Vogler propõe esclarecer esses mesmos padrões no contexto da escrita de um argumento cinematográfico, ao listar o conjunto de etapas plasmadas na Jornada do Herói, proposta por Campbell [5]

Numa primeira fase, Campbell descreve o processo de afastamento do mundo em que o herói se insere inicialmente até que um percalço lhe revela um mundo insuspeito ao qual o herói se sente atraído por forças, até aí, incompreensíveis. Esta etapa é descrita pelo autor como “Apelo à Aventura”. Para Christopher Vogler, este é o plano em que o argumentista deve contrastar dois contextos distintos, o “mundo vulgar”, reconhecido pelo herói pelo quotidiano e um novo e estranho mundo. Segundo o seguidor de Campbell, este apelo inicial estabelece e clarifica as principais ambições do herói, assim como consciencializa relativamente ao que é requerido para alcançar esses objetivos. 

No entanto, o herói de Campbell recusa inicialmente este invoco, mantendo-se intransigente ao “apelo à aventura”. Segundo Vogler, o herói enfrenta, durante esta fase, o medo mais paralisante de todos: o do desconhecido. No entanto, perante a sua relutância, é incentivado e preparado por um mentor para que consiga transpor os obstáculos que o esperam. “For those who have not refused the call, the first encounter of the hero-journey is with a protective figure (often a little old crone or old man) who provides the adventurer with amulets against the dragon forces he is about to pass” (Campbell 2008: p.57). A figura do mentor é das mais recorrentes em mitologia, segundo Vogler (2007), “It stands for the bond between parent and child, teacher and student, doctor and patient, god and man.” (p.12).

Diagrama de “The Hero’s Journey” (via Wikipedia)

Na próxima etapa, descrita por Campbell como “Crossing of the First Threshold”, o herói mitológico transgride o limiar entre o seu mundo (familiar e reconhecido) e o desconhecido, rumo ao perigo e à escuridão. Este é o momento em que a aventura realmente tem início e em que o herói aceita, inevitavelmente, as consequências do apelo à aventura [3]. Campbell descreve a transposição do limiar entre mundos como “The Belly of the Whale”, uma ilustração simbólica de imersão por parte do desconhecido, um local canalizador para um ponto de ressurreição em que o herói é “engolido pelo desconhecido”.

Após transpor o limiar entre o seu “mundo vulgar” e o espaço desconhecido, o herói integra uma fase de “Testes, Inimigos e Aliados” [3]. “Once having traversed the threshold, the hero moves in a dream landscape of curiously fluid, ambiguous forms, where he must survive a succession of trials.”  (Campbell 2008: p.81). Enquanto começa a conhecer os cânones do mundo desconhecido [3], o herói recorre aos conhecimentos transmitidos pelo mentor para sobreviver a variadíssimas formas de demandas, provas e desafios. Nesta etapa, o herói alcança vitoriais, epifanias e contempla “vislumbres momentâneos de uma terra esplendorosa” [6].

“The hero comes at last to the edge of a dangerous place, sometimes deep underground, where the object of the quest is hidden.” (Vogler, 2007, p.14). O herói avizinha-se daquilo que é, por norma, a procedência do antagonista, local que Vogler descreve como “Inmost Cave”. É nesta etapa de “aproximação” que o protagonista se prepara para o derradeiro confronto com a frente antagónica. Em matéria mitológica, a aproximação corresponde ao confronto com os guardiões do templo no qual o adorador pretende entrar, neste espaço o devoto atravessa uma metamorfose.

“Approach covers all the preparations for entering the Inmost Cave and confronting death or supreme danger.” (Vogler, 2007: p.14). É na sequência da “aproximação” que o herói confronta aquilo que mais teme e enfrenta uma “prova suprema” [3]. Campbell (2008) referia-se a este ponto, âmago do desconhecido, como Belly of the Whale. “The hero, instead of conquering or conciliating the power of the threshold, is swallowed into the unkown, and would appear to have died” (p.74). Esta fase é marcada por um momento de suspense em que se desconhece o estado do herói, que tanto pode viver ou morrer. Desta forma, a superação desta etapa desafiante é vista como o ato alegórico de renascer [3]. Ainda segundo Vogler (2007), “Our emotions are temporarily depressed so that they can be revived by the hero’s return from death. The result of this revival is a feeling of elation and exhilaration” (p.15).

Após enfrentar o derradeiro desafio e sair vitorioso, o herói deve reivindicar a sua recompensa. Essa retribuição não tem necessariamente que materializar-se em algo concreto, pode representar, por exemplo, uma reconciliação amorosa ou outros aspetos figurativos que ilustrem uma retribuição ao protagonista, como o conhecimento ou a experiência necessária para conciliar e compreender melhor esforços hostis [3].

Em seguida, é o momento de o herói percorrer o caminho de retorno à familiaridade e enfrentar as consequências da “prova suprema” que superou. Nesta fase, motivadas pela vingança, as forças antagónicas perseguem o herói com o objetivo de reconquistar o que o protagonista usurpou [3]. “When the hero — quest has been accomplished, through penetration to the source, or through the grace of some male or female, human or animal, personification, the adventurer still must return with his life-transmuting trophy.” [Campbell, 2008: p.167]. 

Transpondo, novamente, o limiar entre “mundo desconhecido” e “mundo vulgar”, o herói atravessa uma nova “ressurreição” através um momento catártico, resultante da sua jornada pelas profundezas do desconhecido [Vogler, 2007]. “The hero is transformed by these moments of death-and-rebirth and is able to return to ordinary life reborn as a new being with new insights” (Vogler, 2007: p.17).

O herói, agora transformado, encontra-se na última etapa da sua jornada, o “regresso com o elixir” e regressa à familiaridade do mundo do qual partiu com mais experiência e conhecimento [3]. Nesta fase, Campbell descreve o herói como o “Mestre de Dois Mundos”, que possui liberdade para transgredir entre mundos sem alterar os princípios de um em detrimento do outro e, ainda assim, conhecendo ambos.

Em Star Wars: A New Hope (1977), de George Lucas, [spoilers] o protagonista, Luke Skywalker encontra-se no planeta Tatooine, o seu “mundo vulgar” até que R2D2 lhe transmite uma mensagem que deve ser entregue a Obi-wan Kenobi. Ao encontrar-se com o mestre jedi, Luke descobre a verdade sobre o seu passado, mas recusa seguir a proposta de Kenobi com receio de deixar a familiaridade do seu “mundo vulgar” e os seus tios. Após o homicídio dos seus familiares em Tatooine, Skywalker decide juntar-se a Kenobi para aprender os segredos da “força” e tornar-se um jedi, à semelhança do seu pai. Mestre e aprendiz conhecem Han Solo e o seu sidekick, Chewbacca, que os ajudam com o seu percurso. É também neste momento do enredo, que Kenobi coloca as habilidades de Luke à prova ao conceder-lhe um lightsaber. O protagonista aproxima-se da Death Star, quando o planeta Alderaan é destruído e Obi-Wan é morto, mas ressuscita através da “força” para guiar Luke. Skywalker resgata Leia, que possui os planos que possibilitam a destruição da Death Star e o grupo regressa ao território familiar, a Rebel Base. Para destruir a Death Star, o herói vê-se obrigado a abandonar o “rapaz” que ainda é, para assumir o jedi em si, num momento de “ressurreição”. Luke e os seus aliados regressam à Base com o conhecimento da “força”. 

Ainda que Star Wars, Dune, Batman, Harry Potter e Senhor dos Anéis possam constituir alguns dos exemplos de “jornadas do herói” mais celebrados no cinema, é possível encontrar esta estrutura um pouco por todo o audiovisual, incluindo nas novas apostas de ficção nacional para a Netflix. Atente-se, como exemplo, ao protagonista da série Glória (2022), João Vidal, que entra num mundo desconhecido — o da espionagem — incentivado pelo seu mentor Alexandre. Vidal infiltra-se enquanto engenheiro na RARET, uma rádio americana na Glória do Ribatejo que transmitia propaganda anticomunista. Também na mais recente aposta portuguesa da Netflix, Rabo de Peixe (2023), o protagonista, Eduardo, precisa de fazer dinheiro para pagar a operação do seu pai e emigrar para os Estados Unidos. Quando um barco dá à costa de Rabo de Peixe, uma das aldeias mais pobres da Europa, situada nos Açores, Eduardo e o seu grupo de amigos decide recolher a droga à deriva no mar e vendê-la. Ambos os protagonistas das séries possuem uma necessidade, entram num “mundo desconhecido”, fazem inimigos e aliados, são guiados por mentores, testados por obstáculos e, o mais importante, mudam. 

As novas jornadas do herói

Saber como uma história é edificada e porque funciona um guião é um estímulo que permite desfrutar tanto ou mais do enredo de uma série ou filme, à semelhança de um músico que, ao conhecer uma pauta musical, reconhece o quão difíceis são as proezas que a orquestra enfrenta durante a interpretação da peça. A “jornada do herói” de Joseph Campbell é um dos primeiros passos para entender a estrutura de um enredo, sendo que as etapas enumeradas pelo mitologista, posteriormente adaptadas por Vogler à escrita do argumento cinematográfico, deram origem a outros modelos que cruzam este e outros paradigmas como a “Pirâmide de Freytag” ou a “Morfologia do Conto” de Vladimir Propp. Manuais como Save the Cat!, de Blake Snyder, Into the Woods, de John Yorke, Screenplay, de Syd Field e Story, de Robert Mckee, recorrem aos ensinamentos de Campbell e aos princípios aristotélicos da Poética para propor formas inovadoras de (re)utilizar a jornada heroica e o paradigma em três atos. 

Ensinam-nos, desde cedo, que todas as histórias possuem um princípio, um meio e um fim ou uma introdução, um desenvolvimento e uma conclusão. No entanto, é raro mencionar que esses três atos se alteram e fragmentam constantemente. A linearidade deste modelo basilar é apenas uma fórmula utilizada para ilustrar um conjunto de paradigmas complexos e em permanente mutação. Ao invés de “princípio, meio e fim”, é fundamental refletir sobre “preparação, confronto e resolução”, conforme o estabelecido no paradigma em três atos de Field. Cada uma dessas fases do enredo altera-se através de “pontos de viragem” (plot points), o primeiro descreve o “incidente desencadeador” (inciting incident) da ação narrativa, que serve de ponto de rotura entre a “preparação” e o “confronto” e o segundo, já próximo do término da história, traduz o momento de crise que incita o clímax narrativo [7]. A linearidade, por sua vez, é apenas um acessório utilizado para estruturar o pensamento daqueles que começam a entender os princípios básicos de como edificar um enredo, no entanto, é igualmente relevante compreender que, tão importante quanto seguir uma estrutura, é quebrar regras e convenções. “O cinema é uma história com princípio, meio e fim, mas não necessariamente por esta ordem”, disse Jean-Luc Godard

Christopher Nolan colocou à prova a premissa de Godard em Memento (2000), ao optar [spoiler], por inverter o paradigma em três atos e estruturar o filme de trás para a frente. A cadeia de eventos sucede, deste modo de forma inversa para contar a história de forma subjetiva. Memento é baseado num conto de Jonathan Nolan (irmão de Christopher Nolan) e a intenção inicial era contar a história na perspetiva do protagonista, mas enquanto na literatura é possível fazê-lo através da primeira pessoa ou da voz ativa, no cinema, um meio visual, consegui-lo exige um trabalho acrescido. Para alcançar esta ideia de subjetividade, os irmãos Nolan optaram por alterar a estrutura do enredo para que o espectador, à semelhança do protagonista, se aperceba do que “já aconteceu” ao invés do que “está a acontecer”. Através de flashbacks sucessivos e de uma dicotomia entre momentos objetivos e o subjetivos, diferenciados pela linguagem audiovisual (paleta cromática, voz offs, enquadramentos), Memento experimenta a elasticidade da jornada heroica e dos paradigmas de estrutura de enredo para transmitir um estado de espírito e a confusão mental do protagonista e colocar o espectador no seu lugar.

É pertinente constatar que, embora a “jornada do herói” seja um compasso para muitos dos modelos de estrutura narrativa plasmados em manuais de escrita de argumento cinematográfico, as etapas enumeradas por Vogler em The Writer’s Journey não são uma fórmula para um enredo de sucesso, tão pouco para uma boa história. Os estudos levados a efeito por Campbell, posteriormente explorados por Vogler, são ferramentas de trabalho que viabilizam o entendimento de guionistas, argumentistas e escritores relativamente aos processos narrativos intrínsecos ao ser humano através do escrutínio e da padronização de elementos verificados em mitos. “Nem todos os enredos seguem estritamente esta estrutura em 12 etapas. Algumas destas etapas podem ser suprimidas ou transformadas em função das necessidades do enredo ou da personagem. No entanto, no seu todo, o relato narrativo, nomeadamente o relato narrativo contemporâneo, inscreve-se todo na mesma temática.” (Altier, 2004: pp.56, 57).

O criador da série Rick and Morty, Dan Harmon, simplificou a jornada heroica em oito passos narrativos (1. You, 2. Need, 3. Go, 4. Find, 5. Take, 7. Return, 8. Change), um modelo que ficou conhecido por “story circle”. Inicialmente, para Harmon, é fundamental estabelecer um protagonista (1. You), uma personagem central que se encontre na sua zona de conforto ou, como foi referido anteriormente, no seu “mundo vulgar”. O protagonista sente uma necessidade (2. Need) e, em consequência, entra numa situação pouco familiar (3. Go) ou no “mundo desconhecido”, conforme Campbell. Após adaptar-se ao seu novo contexto, conseguir o que procurava e realizar a sua necessidade (4. Find), a personagem central “paga um preço” (5. Take). Por fim, o herói retorna ao seu mundo familiar (7. Return), mas encontra-se mudado pela experiência da sua jornada (8. Change).  

A estrutura circular, ao invés de linear, ilustra os momentos emocionais do enredo. O protagonista atinge o seu pior momento (low point) quando sofre as consequências da sua jornada no passo 5) “Take” que coincide com a parte inferior do círculo. Em oposição, o “mundo familiar” encontra-se no topo, pois trata-se do ponto de partida do enredo e, a partir daí, existe uma “descida” ao “mundo desconhecido”, o herói volta a ascender no regresso ao “mundo vulgar”, porém, mudado.

A mudança é um dos elementos centrais da jornada heroica. Ver o protagonista alterar e adaptar o seu comportamento a novas situações é um dos aspetos centrais que faz o espectador compenetrar-se e investir emocionalmente numa série ou filme. Acompanhar a jornada do herói é um exercício de empatia que deve ser reforçado pelo conflito moral ou filosófico intrínseco às personagens. Entender as motivações do protagonista é fundamental para estabelecer um elo entre o espectador ou leitor e o texto cultural, mesmo que os fins do herói se incompatibilizem completamente com os da audiência. É, deste modo, indispensável compreender o motivo que leva o protagonista a transpor o “mundo vulgar” para entrar no “mundo desconhecido”.

Na célebre série Breaking Bad, de Vince Gilligan, o protagonista Walter White (Bryan Cranston) é diagnosticado com cancro do pulmão e decide utilizar o seu conhecimento de química para produzir e vender metanfetamina de forma a deixar algum dinheiro à sua família. No decorrer da série [spoiler], o protagonista, um professor de química pacato e humilde, torna-se num druglord, implacável e ganancioso. Acompanhar o arco de transformação desta personagem é o verdadeiro “motor da série” e as suas motivações são o aspeto central que incentiva a audiência a assistir com regularidade e os argumentistas a dar continuidade dos episódios. 

https://www.youtube.com/watch?v=KAjrFu7doNg&ab_channel=JustanObservation

O protagonismo é uma convenção narrativa, na realidade do nosso quotidiano não existe uma distinção entre o protagonista, personagens secundárias e figurantes. Durante anos, o protagonismo das jornadas heroicas no cinema era atribuído a um homem branco, altamente masculinizado, com carisma e uma forte presença. Atualmente, é cada vez mais frequente olhar para jornadas heroicas diversificadas e inclusivas. A “Jornada do Herói” de Campbell é universal e pode ser aplicada a qualquer contexto ou realidade. Neste sentido, é importante realçar que as etapas de Campbell e Vogler não são “regras” ou uma checklist que deve ser imperativamente completada aquando da escrita de uma história, mas antes auxiliares à construção de um enredo. O modelo de Campbell não deve servir o propósito de enaltecer as qualidades heroicas de determinado grupo, mas antes universalizar e engradecer cada jornada interior. Cabe a cada autor e leitor pensar no trabalho do mitologista através de uma lente crítica que examine o “monomito” e o modifique de forma a diversificar a ficção cinematográfica e literária.  

Ainda que a “Jornada do Herói” se distancie, em grande medida, do nosso quotidiano e realidade, é relevante compreender que as histórias são, como refere Robert Mckee, “breves guias para a vida” [8]. A mudança é uma qualidade universal da biologia e da psicologia humana que é constantemente reforçada em ficção. Em cada jornada (heroica ou não), repleta de obstáculos e mudança, é importante recordar o conselho do mitologista que mudou o cinema: “follow your bliss”. 

Referências Bibliográficas utilizadas para o artigo

[1] Joseph Campbell Foundation. About Joseph Campbell – Joseph Campbell Foundation.
[2] Aristóteles (2007) Poética. Edições da Fundação Calouste Gulbenkian.
[3] Vogler, C., & Montez, M. (2007). The Writers Journey: Mythic Structure for Writers, 3rd Edition (3rd ed.). Michael Wiese Productions.
[4] Jung, C. G., & Hull, R. F. C. (1991). The Archetypes and the Collective Unconscious. Psychology Press.
[5] Parent-Altier, D. (2004). O Argumento Cinematográfico. Edições Texto & Grafia, Lda.
[6] Campbell, J. (2008). The Hero with a Thousand Faces. New World Library.
[7] Field, S. (1979). Screenplay: The Foundations of Screenwriting.
[8] McKee, R. (2005). Story: Substance, Structure, Style and the Principles of Screenwriting (Methuen Film) (Reprint. ed.). Methuen Publishing.

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