A liberdade plena é irreversível
A melhor definição de liberdade chegou-me pela voz de Nina Simone, pianista afroamericana. Categórica, disse que a “liberdade é não sentir medo”. Assimilei rapidamente o conceito. A segurança passou a ser sinónimo de ser livre e reconheci que todas as lutas de libertação foram contra o medo de viver sem dignidade.
Em 1974, os portugueses libertaram-se de décadas de uma ditadura fascista. Os povos de Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique e São Tomé libertaram-se do jugo colonial, que os sufocou durante séculos. Depois dessa libertação institucional, sobrava a libertação cultural e mental — a descolonização. Um processo de compreensão do alcance das práticas coloniais e a sua erradicação. Seria a criação de um novo imaginário coletivo.
No mesmo sentido, os portugueses também teriam como missão distanciarem-se duma portugalidade imaginada e disseminada durante o Estado Novo. Uma identidade nacional que tanto se quis de grandeza, com sua expansão para outras latitudes, que se traduziu em opressão e desrespeito pelos direitos humanos. Era necessário ressignificar o ser português, porque a história recente do país não deixava margem para orgulho. Não era apenas a história da Coroa, do Estado ou de um regime — era a história nacional.
Sob da aura revolucionária, elaboraram uma constituição que apontava para esse caminho. A restituição dos direitos e liberdades fundamenteis aos portugueses foi conseguida. No entanto, na memória coletiva, resistiram as criações do fascismo: o individualismo, a desconfiança e o pudor. Restou isso num povo que aprendeu a denunciar-se a si próprio. Na ausência de uma catarse, foi impossível uma grande mudança nas novas instituições democráticas e na mentalidade dos portugueses.
O país não se resolveu com o seu passado e a democracia liberal e o capitalismo, acentuaram-se as construções sociais, umas com bases mais abstratas que outras, mas com repercussões bem concretas. Seja a raça, a nacionalidade, o género, a orientação sexual ou a classe, todos são rótulos que tornam os indivíduos alvos de discriminação.
As pessoas racializadas têm medo. O racismo manifesta-se todos os dias, através das grandes desigualdades ou nas relações interpessoais. As comunidades negras e ciganas têm pior acesso à habitação, educação, saúde e mercado de trabalho. A brutalidade policial assombra, os racistas mandam deputados para a sua terra e matam em plena luz do dia.
Os imigrantes têm medo. São explorados nos campos do Alentejo, nas cozinhas de restaurantes, nas limpezas de casas particulares e na construção civil. Contribuem com centenas de milhões para a segurança social, sem que tenham uma proteção equivalente.
As mulheres têm medo. A violência sobre o género feminino é desoladora. Essa posição de subalternidade está intrínseca na sociedade portuguesa. São violentadas por aqueles que acham ter direito sobre os seus corpos, desde o assédio ao homicídio. Mesmo aquelas com níveis de qualificação mais elevados, sofrem com a desigualdade salarial.
A comunidade LGBTI+ tem medo. São perseguidos numa sociedade que protege a heterocisnormatividade como valor inegociável. O respeito máximo por outras formas de expressão de género e orientação sexual não existe. Adultos queer vivem na clandestinidade e os jovens têm receio de serem postos na rua pelos próprios pais.
Os pobres têm medo. Representam um quinto da população portuguesa, mas o orgulho das pequenas coisas nem os deixa reconhecerem-se, ou serem reconhecidos, como tal. Um terço desses pobres tem trabalho estável, mas a precariedade impede-os de sair da pobreza.
A estes ainda se juntam outros grupos fragilizados: os idosos e a população do interior, que têm a solidão como denominador comum; os estudantes, que são asfixiados com o custo dos estudos e a ansiedade num futuro incerto; a classe média, que está mais perto de se tornar sem abrigo do que na próxima história de sucesso no empreendimento.
Este é o retrato de um país que falhou naquilo a que se propôs com após a revolução de abril de 1974 — garantir a liberdade de todos. Desse período até agora, criou condições para novos enclausuramentos. A extrema direita tem assento parlamentar e o seu discurso é normalizado na comunicação social. A sua ascensão é o resultado da não materialização completa dos valores de abril. Tal como falhou na erradicação da pobreza, no reconhecimento dos horrores do colonialismo e na emancipação da mulher.
É prioridade reverter essa tendência e cumprir os compromissos de abril. Tem de se alcançar uma democracia pluralista de verdade. É necessário que os portugueses também se libertem dos seus preconceitos, para que possam lutar pela libertação do próximo. Como disse Martin Luther King, em Carta de uma prisão em Birmingham, “Estamos presos numa inexorável rede de mutualismo, entrelaçados numa só trama do destino. O que quer que afete uma pessoa diretamente, afeta todas indiretamente”. A luta pela liberdade é constante, plural e progressista. A sua conquista só é plena quando se torna irreversível.