A linguagem da pandemia

por João Jacinto,    9 Abril, 2020
A linguagem da pandemia
Ilustração de Simone Roberto / CCA

As medidas necessárias.

O inevitável parece ter finalmente acontecido. A pandemia veio em força e alastrou-se por todo o planeta tal como previsto. Tinha até agora sido sempre uma possibilidade; ora estávamos perante a gripe aviária, ou talvez fosse suína, depois já era uma outra mais exótica que a anterior. Sabia-se contudo que iria acontecer, e finalmente aconteceu.

O mundo encontra-se há cerca de um mês a tentar estudar, conter, atrasar, salvar vidas, tudo ao mesmo tempo. Uns fazem-no melhor que outros; ou por terem mais recursos ou por já terem lidado com epidemias locais como o MERS e o SARS. O que parece contudo ser comum a grande parte dos intervenientes nesta situação é o facto de todos estarmos numa “guerra” contra o vírus. É precisamente sobre o tipo de comparações feitas em relação a este vírus que convém refletir. As comparações, metáforas e truques de linguagem utilizados para descrever a situação presente são na sua maioria, bélicas. É uma luta, é um ataque, estão em risco vidas e tudo tem que ser feito no sentido de aplanar a curva.

A situação que vivemos, apesar de geracionalmente única, não é nova. Outras pandemias para as quais a humanidade também não estava preparada existiram. Temos como exemplo semelhante ao atual a gripe espanhola. Contudo, outro tipo de epidemias foram identificadas como por exemplo a cólera, a febre tifóide, os vários subtipos da gripe, o HIV/SIDA e tantas outras que não são possíveis enumerar aqui.

No ensaio de Susan Sontag “A doença como metáfora” de 1978, a escritora reflete sobre o perigo de se atribuir misticismo à doença, por meio da linguagem, mais concretamente através do uso de metáforas. Sontag avalia duas doenças, a Tuberculose e o Cancro, e mais tarde em 1989 inclui o HIV/SIDA em “SIDA e as suas metáforas”. O entendimento destas enfermidades, ou mais concretamente a falta dele, acabou por mistificar as mesmas. Existem vários exemplos da utilização de uma e de outra por parte de escritores, por exemplo a tuberculose tem um papel central na “Montanha Mágica” de Thomas Mann e também Tolstói faz uso de uma doença terminal para o conto “A Morte de Ivan Ilitch”.

Esta mistificação tomou várias formas. O cliché mais óbvio no início do século XIX era a conexão entre tuberculose e a criatividade. O tuberculoso teria, sem sombra de dúvida, um carácter melancólico e desse modo era superior, sensível e criativo. Foi também pretexto para as viagens dos mais abastados. Os sanatórios existiam ora nas montanhas, ora na praia ou no campo, e foram utilizados como pretexto para um retiro por vários, onde ali podiam dar azo à sua criatividade e expressão artística. O bacilo só haveria de ser identificado perto do final do mesmo século por Robert Koch e com o conhecimento da causa as associações acabaram por se desvanecer.

É relevante como ainda hoje é possível fazer o paralelismo entre a tuberculose e a doença mental. Ambas necessitam de um tipo de confinamento com regras especiais. E hoje já não é o tuberculoso que é especialmente criativo mas sim o insano. O desconhecimento das causas de variadas patologias mentais continua a dar azo a mistificações.

O cancro segundo Sontag nunca teve este tipo de associação, contudo é por ela considerado uma doença especialmente punitiva e individual. Ninguém pergunta porquê que apanhou uma gripe, contudo é comum ouvir “porquê eu?” quando diagnosticados com uma neoplasia. A uma gripe todos estamos sujeitos, um cancro aparentemente já não segue as mesmas regras. Os fumadores, alcoólicos, obesos, depressivos e todos os que quiserem incluir em categorias cada vez mais abrangentes falharam de algum modo e acabam punidos.

O HIV/SIDA partilha algumas associações usadas com o cancro. Todavia para além de associado a uma falha de carácter, como afirmado por Sontag, o facto de inicialmente a comunidade homossexual ter sido especialmente atingida, fez com que fosse possível incutir ao infetado com HIV/SIDA também uma falha moral. O facto da sua transmissão ocorrer também por via sexual fez com que o julgamento moral fosse necessariamente pernicioso, pois o infetado é associado a um comportamento promíscuo, desviante e muitas vezes criminal. O que fez com que socialmente fosse mais difícil lidar com a doença, tanto com o tratamento como com a disseminação da informação sobre a mesma.

É importante entender que as associações feitas às diversas doenças têm consequências. E na sua grande maioria começam com uma versão do nós contra eles. Todas as epidemias vêm de outro local que não aquele que habitamos, podendo tornar-se simbólicas. Este é um perigo evidente que começa a surgir na pandemia atual sendo apelidada por alguns de “vírus chinês”. A valorização simbólica de “vírus chinês” é diferente de COVID-19, e tem consequências a nível social e político como começa a ser evidente por variados ataques violentos a indivíduos chineses ou de aparência asiática no mundo ocidental. Imediatamente a China afirmou que talvez esta pandemia tivesse sido criada pelos EUA. Não sejamos ingénuos, o mesmo tipo de situação aconteceu com o HIV/SIDA entre os EUA e a URSS, pouco antes da dissolução da última.

Felizmente o COVID-19 não deverá ser associado a nenhum tipo de moralização, tal como a gripe não o é. Porque o critério da moralização não é medido pelo maior número de mortes mas sim pelas escolhas do indivíduo, como no cancro, ao falhar em ter comportamentos saudáveis , ou no HIV/SIDA por ser transmitido sexualmente.

Não deveremos contudo enquanto sociedade baixar a guarda. Se algo é óbvio na história das epidemias é que existe um aproveitamento político por parte de regimes com tendências autoritárias para vincularem a sua missão. É neste contexto que usar metáforas bélicas se torna especialmente perigoso. O “estamos a ser invadidos” pressupõe o fecho das fronteiras, o fecho das cidades e de nós próprios porque os inimigos reais ou imaginários devem ficar de fora. Obviamente estas medidas terão que ser postas em prática mas não esquecer que têm também que ser contidas no tempo. A imagética militar, especialmente quando se trata de saúde e doença, tem consequências.

A sobrevivência da nação e da nossa sociedade está em risco, e esta emergência irá requerer medidas drásticas é o discurso do momento. Estas mesmas medidas drásticas já começaram a aparecer ou a ser discutidas. Nos EUA houve quem defendesse que a economia não podia parar, mesmo que isso tivesse implicações graves para os mais idosos ou grupos de risco para o COVID-19. É importante entender que uma sociedade que aceita deixar alguns para trás – entenda-se, morrer – para a Economia não parar, é uma sociedade que já morreu. Na Europa não houve casos expressos deste tipo de atitude, contudo houve tomadas de decisões que poderão vir a ser perigosas. Na Hungria o primeiro ministro Viktor Orbán tem possibilidade de governar por decreto sem qualquer fim à vista. Na Bélgica aconteceu o mesmo mas só durante 6 meses. Em França, Emmanuel Macron tem também mais poderes para lidar com esta pandemia. No Reino Unido, a polícia tem neste momento mais poderes e funções do que antes. A par destas decisões há também a utilização de dados dos nossos telemóveis por parte da Alemanha e da Áustria com o pretexto de estudar as movimentações de cada um de nós, e desse modo atrasar a evolução da epidemia. Até ver, no continente europeu a utilização destes dados foi feita de forma a que a identidade do utilizador se mantivesse anónima.  Não discuto a validade ou necessidade destas medidas. É, porém, e apesar da urgência, necessário medir e pesar estas decisões. A pandemia irá passar, mas os precedentes abertos depois de ocorrerem mudarão o mundo em que vivemos.

Não nos esqueçamos: não estamos a ser invadidos, não nos encontramos num campo de batalha. Nem todas as decisões serão válidas face a esta pandemia. Isto não é uma guerra contra um inimigo invisível pois não há um propósito no COVID-19. O vírus faz simplesmente o que os seus pares de bases o mandam fazer: replicar-se.

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