A poesia vanguardista de Paulo Leminski, um dos poetas mais importantes do Brasil
Em 44 anos de vida, Paulo Leminski deixou um legado único e sui generis, que o posicionou como um dos poetas mais vanguardistas do Brasil, enquanto os cânones ainda eram muito respeitados. De poeta a tradutor, crítico literário e professor, a sua predileção pela cultura japonesa levou-o a ser um judoka e a apaixonar-se pelos haikais (a poesia curta japonesa composta somente por uma estrofe de três versos — o primeiro e o terceiro com cinco sílabas métricas e o segundo com sete —, que resulta da junção de “hai” — brincadeira — com “kai” — harmonia ou realização). Para além disso, deu forma à poesia concreta, em que, para lá da palavra e do rigor poético, está a importância da sua apresentação e do seu valor pela forma como está disposta e reunida na superfície. Foi assim que Leminski se perpetuou, pelos tempos, como um notável dos subversivos.
Paulo Leminski Filho nasceu no dia 24 de agosto de 1944 em Coritiba, no Brasil. De ascendência polaca, pela parte do pai e indígena e portuguesa do lado da mãe, estudou num mosteiro em São Paulo, o de São Bento, aos catorze anos. Porém, encontrou o seu palco no primeiro congresso de Poesia Experimental Brasileira, na cidade de Belo Horizonte, em que conheceu Haroldo de Campos, um dos seus maiores amigos e uma das referências da sua poesia. De igual modo, ganharia o II Concurso Popular de Poesia Moderna. Leminski casar-se-ia aos 23 anos com a artista plástica Neiva Maria de Sousa, num enlace que perdurou durante sete anos. Neste período, apresentou ao público os seus primeiros poemas, em especial na revista “Invenção”, enquanto também se sustentava com as funções de professor de História e de Escrita Criativa, mesmo depois de não concluir qualquer bacharelato. A já mencionada predileção pela cultura japonesa também o levou a tornar-se num cinturão negro de judo, tornando-se sensei dessa arte marcial.
Pouco antes dos anos 1970 começarem, casou-se com a poetisa Alice Ruiz, com quem teve três filhos (um deles a escritora Estrela Ruiz Leminski), matrimónio este que se prolongou até 1988, um ano antes da sua morte. Vivia numa comunidade com grandes influências dos hippies, juntando-se à sua ex-mulher e ao seu companheiro de então. Com ela, viria a escrever diversas histórias em banda-desenhada de cariz erótico, contando com a colaboração de ilustradores, como Júlio Shimamoto. Foi nesses anos 1970 que lançou a sua primeira grande obra de poesia, “Catatau” (1975). Viajando entre a filosofia de René Descartes e a sua hipotética presença no Brasil no período das descobertas e das invasões holandesas, tornar-se-ia num romance de cariz totalmente experimental, numa poesia escrita em prosa, que se tornou célebre entre as falanges culturais da sociedade brasileira. É uma história que se torna quase impercetível, recheada de recursos estilísticos e linguísticos e de diversos estrangeirismos, em que, no fundo, se trata de um monólogo entre os pensamentos e as considerações de Descartes. Este seria o primeiro de dois grandes romances da sua autoria, sendo o outro “Agora É Que São Elas” (1984, em que desvirtua as noções estruturais de um típico romance).
“Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece
e as estrelas lá no céu
lembram letras no papel,
quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?”“Toda Poesia”, livro editado pela Imprensa Nacional
Da poesia, destacam-se “Caprichos e Relaxos” (1983, que trazem os grandes poemas de Leminski até então, para além de alguns inéditos), “Haitropikais” (1985, uma célebre coleção de vários dos seus haikais), “Distraídos Venceremos” (1987, englobando metapoemas — poemas sobre os próprios poemas —, da vida e do quotidiano e mais alguns haikais) e “La Vie en Close” (1991, lançado postumamente a partir de inéditos) como referências da sua escrita lírica. Esta escrita foi sintonizada com uma atividade profícua de tradução, dado o seu conhecimento e domínio do francês, do inglês, do espanhol, do latim e do grego e, claro está, do japonês; para além de se tornar biógrafo de nomes vários, como o poeta japonês Matsuo Basho, o grande mestre dos haikais, o político russo Leon Trotsky, Jesus Cristo e o poeta brasileiro João da Cruz de Sousa (estão reunidas numa obra denominada “Vida”, de 1998). De igual modo, escrevia para o Jornal de Vanguarda, um programa transmitido na TV Excelsior, para além de fazer obras para os mais pequenos, como “Guerra Dentro da Gente” (1988, sobre a questão da guerra e dos seus estados de espírito).
“em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenaso outro
que há em mim
é você
você
e vocêassim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós”Caprichos e Relaxos (1983)
Os seus problemas com o alcoolismo levaram-no a falecer a 7 de junho de 1989, após sucumbir perante uma cirrose no fígado. A sua poesia foi marcada por um discurso direto em primeira pessoa que se tornou único e destacado para a cultura popular e, ao mesmo tempo, para a mais intelectualizada. Entre trocadilhos, gracejos, ditados populares e os ditos haikais, tão desafiantes ao nível do encaixe das palavras, pautou-se por pequenos poemas que ganharam uma especial afinidade com o desenvolvimento da Música Popular Brasileira (MPB). Isto porque, na sua força contra-cultural, conseguia adaptar-se às suas metamorfoses entre mensagens sociais e políticas e uma certa ingenuidade que também pretendiam transparecer, denotando essa traquinice pura e verdadeira do Brasil. Aliás, esta associação colocou-o a escrever letras de músicas de artistas, como Caetano Veloso (“Verdura”) ou Moraes Moreira (“Valeu”), para além de uma convivência assídua com os demais músicos deste movimento. Reunia-os no bairro Pilarzinho, em Coritiba, numa casa que se tornou célebre por formar várias parcerias musicais e líricas. Leminski era, assim, para além de um poeta concretista, alguém ligado aos movimentos modernistas e, como tal, alguém vanguardista.
Também o seu recurso a uma poesia gráfica, que pudesse colocar em diálogo a palavra com a forma estética, foi uma forma de contestação à ditadura militar, em muito associada à Geração Mimeógrafo, que levou muitos poetas, então, totalmente desconhecidos a uma ribalta pouco previsível. Aproveitou, assim, os recursos da publicidade e a sua própria experiência no meio para, com a irreverência, mas também com um registo familiar e abarcante da dimensão popular do seu país, se tornasse tão querido dentro dele. Aliás, são estes predicados que o permitem permanecer tão atual e fresco, alinhado com a jovialidade das novas gerações e com o seu instinto subversivo das métricas e dos cânones, nessa miscelânea entre o humor, a publicidade, a música e a poesia. Toda essa poesia seria reunida em “Toda Poesia”, a grande antologia do autor brasileiro, que conheceu as bancas em 2013.
Paulo Leminski tornou-se, assim, numa referência nacional para a poesia irreverente e com sentido concretista. A forma e o espaço conheceram uma dimensão cada vez mais proeminente, embora pese a importância de um conteúdo que, também ele, consiga ser lírico e valioso. Nas suas diversas obras, entre as quais os romances experimentais, os haikus e os poemas visuais, está uma mente de quem se quis marcar pela diferença, pelo marco da virtude que congrega a arte do coração e o engenho da razão. Está uma intenção de provocar e de desconstruir, para reconstruir com a força da criação. Foram essas premissas que levaram à conclusão de que Paulo Leminski se imortalizou.