A presença literária e histórica de Sérgio Buarque de Holanda

por Lucas Brandão,    12 Junho, 2019
A presença literária e histórica de Sérgio Buarque de Holanda
Miúcha e Sérgio Buarque de Holanda

Um dos principais rostos teóricos do Brasil no século XX foi jornalista, crítico, historiador e um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores. Foi também pai dos músicos Chico Buarque e Miúcha, assim como um importante olho retrospetivo do seu país. Foi Sérgio Buarque de Holanda, que possuiu uma escola formativa relevante no seu país e que permitiu que esta ainda se reforçasse mais, com mais argumentos para formar mais e melhores teóricos, com um pouco mais de perceção sobre o que foi e é o Brasil. 

Sérgio Buarque de Holanda nasceu em São Paulo, a 11 de julho de 1902, morrendo 80 anos depois, na mesma cidade, a 24 de abril. Foi cidade onde fez a sua educação primária, saindo de lá só com 19 anos, quando foi com a sua família para o Rio de Janeiro. Foi cidade em que pôde contactar de perto com o emergente movimento modernista da literatura e das artes brasileiras, dialogando com Mário de Andrade e Oswald de Andrade e iniciando a sua incursão nas humanidades. Viria a formar-se, pouco tempo depois, na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, tornando-se bacharel em ciências jurídicas e sociais. No entanto, foi como jornalista que iniciou a sua vida profissional, deslocando-se para Berlim no final dos anos 20 e ficando por lá até 1931. De regresso, exerceu jornalismo até ao ano de 1936, no qual se tornou professor assistente na Universidade do Distrito Federal. Foi um ano marcante na sua vida, casando-se com Maria Amélia de Carvalho Cesário Alvim, mãe de sete filhos seus, entre os quais Chico e Cristina Buarque, Ana de Hollanda e Heloísa Maria, mais conhecida por Miúcha.  

Nesse mesmo ano, foi autor de “Raízes do Brasil”, também nesse ano, tratando-se de um ensaio em que aborda questões da cultura brasileira, nomeadamente tocantes à formação da sua sociedade. A herança colonial permanecia como um entrave, na sua ótica, para a plena afirmação da democracia no país, herança que se perpetuava pelo tempo e que não se havia curado, fruto das relações sociais que ainda subsistiam desse período. Ainda presa aos costumes rurais e patriarcais, era uma sociedade ainda amarrada aos meios de produção que dependiam dos escravos e dos grandes proprietários feudais. O processo de transição entre a monarquia e a república foi de tal forma abrupto que, para Holanda, eram resquícios que pesavam na forma de ser e de estar dos grupos e dos seus indivíduos. No entanto, havia uma linha que se tornava comum a esse ser brasileiro: o conceito de homem cordial, que o historiador apresenta como sendo a generosidade e a hospitalidade parte da sua identidade, identidade essa que remonta para os ancestrais e para a sua ligação ao próximo. É da forma natural de ser e de estar que o canarinho considera que gera tanta intimidade e tão pouca concordância com os registos formais que a sociedade impinge. As relações familiares, de certa forma, acabam por conduzir a conduta deste povo, que olha para o Estado com menor sentido formal e institucional. 

Após redigir este livro, e se manter em funções de docente assistente na universidade, começou a assumir cargos burocráticos até ao momento em que, nos anos 40, se dirigiu aos Estados Unidos, onde se tornou professor visitante em algumas das suas principais universidades. A sua experiência foi-se avolumando enquanto foi escrevendo, nomeadamente artigos e ensaios redigidos como jornalista. “Cobra de Vidro”, “Monções” (1945, que narra as expedições dos bandeirantes no Sudeste e no Centro-Oeste do Brasil, delimitados pelo Rio de Prata e o Rio Paraguai) e “Caminhos e Fronteiras” (1957, explicitando os métodos e percursos dos bandeirantes para a ocupação territorial do Brasil, não esquecendo as pequenas práticas quotidianas na articulação entre o indígena e o bandeirante europeu) são alguns dos exemplos dessas obras, que reúnem textos que abordam a colonização da América portuguesa entre o século XVII e o XVIII.  

A rotina e não a razão abstrata foi o princípio que norteou os portugueses, nesta como em tantas outras expressões de sua atividade colonizadora. Preferiam agir por experiências sucessivas, nem sempre coordenadas umas às outras, a traçar de antemão um plano para segui-lo até o fim.

O seu trabalho foi reconhecido ao ponto de, no seu regresso a São Paulo, em 1946, ser dirigente do Museu Paulista, o mais importante da Universidade da cidade. Aqui esteve durante dez anos, enquanto esteve como professor na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, dando aulas de história económica. Entretanto, esteve também em Itália a lecionar estudos brasileiros na Universidade de Roma, para regressar e, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas de São Paulo, dar aulas de História da Civilização Brasileira. No decurso desta fase da sua vida, escreveu “Visão do Paraíso”, datada de 1959, onde volta ao tema da presença europeia na América e procura escrutinar o imaginário europeu na fase da conquista do continente. Um imaginário que olhava para a América como, para lá do El Dorado, o próprio jardim do Éden, transcendendo os limites que a Europa ia impondo. Avolumando, desde logo, um trabalho importante, tornou-se membro da Academia Paulista de Letras.  

Chegado à nova década dos anos 60, chefiou o projeto que resultou na “História Geral da Civilização Brasileira”, projeto esse que procurou efetuar a historiografia do povo brasileiro. São onze os volumes que preenchem esta obra, dividida por três tomos (época colonial, Brasil monárquico e Brasil republicano), abordando a administração, a economia, a sociedade e a cultura do país. Tornando-se presidente do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, partilhou os seus testemunhos e os seus saberes em vários institutos académicos chilenos, para além de regressar aos Estados Unidos; e encabeçou missões culturais da UNESCO em países de menor proporção, como o Peru e a Costa Rica. Contudo, e com o regime militar a cerrar fileiras e a restringir o trabalho de Holanda, decidiu, de forma surpreendente, terminar a sua carreira de professor no ano de 1969, após a reforma forçada de colegas de profissão, processo esse conduzido pelo Estado. Aproveitou esta fase mais conturbada da política e da sociedade brasileiras para dar seguimento à historiografia brasileira que havia liderado e lançar “Do Império à República” (1972). Originalmente pensado para fazer parte da coleção, tornou-se excecional no sentido em que, abordando a crise imperial brasileira do século XIX, apresenta, como justificação, o deteriorar do poder reservado à figura do imperador, que conduz às fundações da república. 

Aproximando-se do final da sua vida, continuou ativo na produção intelectual e histórica subordinada ao Brasil, sendo o responsável por volumes como “Vale do Paraíba – Velhas Fazendas” e os de “Tentativas de Mitologia”. Conquistou, de igual forma, vários galardões, como o Prémio Juca Pato e o Prémio Jabuti de Literatura, dois dos mais relevantes no contexto nacional. No entanto, a sua influência tornar-se-ia ainda mais evidente na sociedade civil, ao se tornar no terceiro a juntar à fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), no ano de 1980, após os nomes de Mário Pedrosa e de Antonio Candido. Aliás, a fundação responsável pela criação de projetos políticos e culturais do PT passaria a designar-se com o nome de Sérgio Buarque de Holanda, continuando a reunir documentação e outras fontes de memória até aos dias de hoje. 

Sérgio Buarque de Holanda é um nome relevante naquilo que é o contexto histórico e humanístico do Brasil no século XX. Mais do que a herança familiar que proporcionou ao seu país, nomeadamente na vertente artística, fez da sua atividade jornalística e académica um contributo importante para o entender da história e das memórias das comunidades indígenas. Mantendo o rigor científico e historiográfico, não se privou de manter uma posição política vincada, especialmente por via do regime que se impunha e que estimulava um discurso que fintasse os constrangimentos gerados. Antes de emergir o movimento popular, que catapultou as classes mais jovens e periféricas, Holanda deixou um testemunho válido e importante, que contribuiu para que os cantos e cânticos se fizessem conhecidos e reconhecidos. 

Para estudar o passado de um povo, de uma instituição, de uma classe, não basta aceitar ao pé da letra tudo quanto nos deixou a simples tradição escrita. É preciso fazer falar a multidão imensa dos figurantes mudos que enchem o panorama da história e são muitas vezes mais interessantes e mais importantes do que os outros, os que apenas escrevem a história.

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